Justiça: distinguir o essencial do acessório

O deficiente funcionamento da justiça põe em causa de forma insidiosa os pilares civilizacionais da nossa sociedade

De madrugada um advogado da capital dirigiu-se para uma comarca no interior profundo do país onde tinha um julgamento. Pelas 9h30, à hora marcada, cerca de 30 testemunhas, as partes e os seus mandatários legais estavam presentes para a diligência. Perto das 11h00 da manhã a secretaria avisa que a sessão não se realizará, porque o juiz titular esqueceu-se do processo e não veio. Entretanto, num tribunal de Lisboa, no âmbito de um processo, são desmarcadas cinco audiências, agendadas para diferentes dias, com recurso programado de videoconferências em meia dúzia de comarcas, com notificações realizadas, com a necessária planificação de tempo, de estudo e de disponibilidade dos interessados e dos seus representantes e tudo porque, em cima da hora, o julgador entendeu comparecer num congresso do seu interesse.Quando a aparente ficção terceiro-mundista invade a vida real, pergunta-se onde estão os direitos fundamentais dos cidadãos?
Quem trabalha em prol da defesa das pessoas verifica um crescendo envolvente de desqualificação e de desrespeito que se apodera do quotidiano, colocando em causa de forma insidiosa os pilares civilizacionais da nossa sociedade.
Uma justiça assente na discricionariedade dispositiva das vidas de terceiros e na proibitiva relação entre os custos judiciais efectivos e os benefícios quase nulos resultantes de decisões tardias e indecorosamente arrastadas no tempo, não cumpre a sua função de garantia de Estado de direito, revelando-se perigosa e arbitrária para quem se socorre da sua protecção ou em oposto é visado pela sua acção.
O bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto, simboliza uma voz legítima dos cidadãos e foi eleito pelos seus pares enquanto sua face visível.
Certamente que a grande maioria dos advogados pouco se interessa pelo vencimento alto ou baixo do bastonário ou, em alternativa, se os presidentes dos conselhos distritais supostamente exageram ou não nas despesas de representação. Nesta conjuntura, perder tempo com estas questiúnculas é ignorarmos o caos em que nos estamos a afundar.
Os advogados portugueses sabem distinguir o essencial do acessório em respeito das pessoas que representam e esperam do bastonário a liderança combativa que determinou a sua eleição. Ignorar a realidade e persistir em lutas fratricidas apenas nos vão conduzir ao caminho descendente do vazio.
A busca de respostas e de soluções para os dramas diários que afectam a justiça em Portugal exige a colaboração ou o confronto, se necessário, entre todos os agentes do nosso sistema judiciário, colocando-se de lado questões e problemas medíocres, concentrando-nos na defesa do Estado de direito, dos cidadãos e dos advogados, recuperando e assumindo, assim, a estatura moral e histórica da nossa classe profissional. António Marinho e Pinto, está nas suas mãos! Vice-presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados

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