Se David Fonseca não for exportável agora, é quando?

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Em Portugal é estrela pop. O que o leva a tocar para quem não o conhece e a fazer a primeira parte dos Keane, em Espanha?

Em Leiria toda a gente o conhece. Não espantaria se, chegado a um restaurante, lhe disponibilizassem a melhor mesa. No Porto, em Lisboa, no resto de Portugal, é capaz de não ser muito diferente, principalmente depois do êxito do último álbum, "Dreams In Colour". À escala do país, David Fonseca é uma estrela pop. Não custa imaginar que, no final de cada concerto, admiradores o queiram cumprimentar, tocar, fotografar.
Então, o que faz aqui, em Novembro, nesta pequena sala de lugares sentados, em Madrid, ele que conduziu um Coliseu de Lisboa, completamente cheio, ao delírio em Abril - e do qual resulta agora o DVD "Dreams In Colour Live "? Dois dias depois, em Barcelona, a mesma pergunta: o que o leva a fazer a primeira parte dos ingleses Keane, ele que em Portugal nunca se permitiria a tal? Não seria mais fácil saborear o sucesso?
Mas David Fonseca parece ter consciência que é quando se está no cume que se podem projectar novos desafios. Não é, como tem acontecido com assiduidade em Portugal, depois da fonte criativa ter secado que se responsabilizam as editoras, a língua, a concorrência, a pequenez do país e sabe-se lá o que mais, por não se ter conseguido vingar. Com a fragmentação da indústria, exportar já não é uma questão opcional. O mercado, exíguo, está cada vez mais pequeno. Para muitos, agora, e no futuro ainda mais, tratar-se-á de uma simples questão de continuidade.
Para uma elite, como Fonseca, a questão pode não ser a sobrevivência material. Mas é a sobrevivência criativa. É o desafio. O estímulo. É daqui a uns anos olhar para trás quando já se percorreu o pais de lés a lés e existe a sensação que se fez tudo - e permitir-se pensar que foi à luta. Que tentou projectar o futuro. Que se colocou em causa. Que não se acomodou.
Existe, por isso, qualquer coisa de saudável em vê-lo em palco, como se fosse a primeira vez, como nesta sala de Madrid, Galileo Galilei. "Buenas notes" solta ele. Talvez a cabeça ainda pensasse no que estava a fazer ali, mas o corpo já respondia vamos em frente. E foram. E foi um excelente concerto.
Em vez dos excessos do Coliseu, a focagem nas canções, na sua estrutura, naquilo que as sustenta e lhes atribui sentido. Isso, e uma atitude e um vigor, de todo o grupo, estupendos. E claro, também o saber estar de Fonseca. Mesmo quando não sabe em que língua comunicar - falou com o público em inglês, português e "espanholês" - é naturalmente elegante e polido.
A assistência, inicialmente sentada, rende-se. Bate palmas, assobia, grita. Canções como "4th chance", "Our heart will beat as one", "Silent void" ou as piscadelas de olho à memória popular em forma de versões ("Song to the siren", "Together in electric dreams" ou a introdução de "80's" com "Video killed the radio star") saem fluidas e certeiras. Percebe-se que o grupo quer conquistar, seduzir, provar qualquer coisa. Nem que seja a si próprio. No final, existe um sentimento de dever cumprido.
"Tentamos ter a mesma atitude em todos os concertos", diz Fonseca, "mas não conhecerem o meu repertório representa outro tipo de desafio. Em contraponto a tocar para pessoas que já conhecem o que faço é uma lufada de ar fresco, faz-me lembrar a razão pela qual tudo isto começou há dez anos. Sinto-me mais nervoso nestas alturas do que tocar num Coliseu a abarrotar de pessoas que conhecem o meu trabalho."  

A história desde o princípio

Em Abril, no Coliseu, estiveram responsáveis pela multinacional Universal da Grécia, Itália e Espanha. É nesses mercados que, para já, concentra atenções. Em Setembro actuou em Atenas, como convidado da MTV local, até porque o vídeo de "Kiss me, oh kiss me" estava na tabela de preferências da estação, o que motivou um concerto surpreendente, "pela forma entusiástica e conhecedora como fui recebido", afirma.
Antes, já havia estado em Itália, num "showcase", ao lado de Gabriela Cilmi e dos americanos OneRepublic, duas outras grandes apostas da Universal local. Agora é Espanha. O álbum foi agora colocado no mercado e, para além dos concertos, nos dias em que esteve no país, o cantor fez promoção e entrevistas, da MTV ao jornal "EL País", passando pela Rádio Nacional. "
A eles, tenho que lhes contar a minha história desde o princípio", diz por entre risos. "Quando ouvem os discos ou vêm os espectáculos percebem que não sou um estreante. É um mistério para eles. Perguntam-se sempre porque é que só agora estou ali. Respondo que nem sempre as coisas acontecem quando desejamos. Por outro lado, para ser sincero, nunca tentei fazer nada parecido ao que estou a fazer agora. Nunca tive tantas reuniões à volta desta ideia da internacionalização. É a primeira vez que o estou a fazer com alguma seriedade, também pelo facto de o último disco ter resultado muito bem em Portugal."
Durante anos imperou a narrativa que Portugal só poderia exportar aquilo que fosse exclusivo daqui. E lá vinham os nomes do fado ou com conexões para o justificar. Dos que faziam pop-rock em inglês, como os Gift, X-Wife ou WrayGunn, dizia-se que não valia a pena pensar nisso. A questão não era a música. Era haver grupos semelhantes. Não era uma questão de qualidade pelos vistos, mas de facilidade.
Ou seja, medo da concorrência e do que isso significa: projectar, organizar, arriscar, por vezes errar e até saber gerir a frustração de não se conseguir. O impacto internacional dos Buraka Som Sistema, apesar das especificidades, mostra que quando existem boas ideias elas podem vingar onde quer que seja, mesmo sem uma grande estrutura por trás. Outros, como os Gift em Espanha, ou os WrayGunn em França, também têm conseguido projecção. Não se trata de chegar ao primeiro lugar dos tops, mas de alargar o raio de acção, nem que seja mais um pouco.
Às vezes, como refere Fonseca, nem se trata de vender mais discos, fazer mais espectáculos, rentabilizar. Sim, isso é importante. Mas não é só isso. Ele percebeu-o, há dois anos, quando pisou pela primeira vez o palco do Festival SXSW, em Austin, EUA, essa montra onde evoluem, no mesmo plano, do grupo célebre ao ilustre desconhecido. Uma experiência tão marcante que regressou este ano e pensa voltar no próximo.
"Essa vontade de sair tem também a ver com descobrir outras formas de ver e imaginar a música. Este ano, no SXSW, actuei sozinho, espécie de 'oneman-show' e foi um desafio gigantesco. Essa experiência acabou por ser uma das coisas que mais me inspirou na feitura do último disco, a forma como surgiu, a rapidez com que foi feito, tudo isso resultou de uma espécie de febre que me contagiou quando regressei de lá."

Barcelona: o mais aceso

Agora, já estamos em Barcelona, sala Razzmatazz, uma das de maior prestígio na cidade, lotação esgotada há muito, não por causa de David Fonseca, que quase ninguém sabe quem é, mas pelos Keane. Se em Madrid tinha sido bom, em Barcelona, com apenas 40 minutos para mostrar o que valia, perante um público completamente às cegas, foi ainda mais surpreendente. À segunda canção, confiante, pede às quase três mil pessoas que batam palmas e, surpresa, elas fazem-se ouvir. Pela duração, mas também pela atitude, é o concerto mais dinâmico e aceso que alguma vez lhe vimos. As conversas no bar terminam, as atenções concentram-se nele, toda a gente quer saber quem é que está em palco. Em "Superstars" assobia-se. Em "Video kill the radio stars" o efeito de reconhecimento gera júbilo, antes da desbunda com "80's". Os músicos dão o máximo, Fonseca ergue o braço na direcção do céu, naquela que é uma imagem que começa a colar-se-lhe, e o público retribui com euforia.
"Melhor era difícil", dirá ele. "A ideia era que os concertos servissem de rampa de lançamento ao CD que saiu agora. O que se queria com os espectáculos era motivar as pessoas e parece-me que isso foi totalmente conseguido." Dias depois, regressou a Madrid, outra vez para uma primeira parte dos Keane. As reacções obtidas deixam-no motivado. "Agora estamos a projectar outras formas de regressar a Espanha, talvez com uma digressão."
De regresso a Portugal, vê agora ser lançado um DVD, referente ao concerto do Coliseu em Abril último. "Mas a ideia não foi reproduzir o espectáculo", diz ele, "até porque são experiências diferentes, ver um concerto ao vivo e estar sentado em casa a vê-lo pelo ecrã. Tentámos que o espectáculo fosse o mais televisivo possível para o DVD. Acho até que há partes que resultam melhor em casa do que ao vivo, como os filmes."
Como sempre, nele, nem só de música vive a música. A relação com as imagens também conta. Às vezes são mesmo indissociáveis, por isso lá estão também os vídeos, com conversas com os realizadores, "para que as pessoas percebam que cada vídeo tenta passar uma ideia específica. Não é uma ilustração. Os vídeos são a minha segunda casa artística".
É assim David Fonseca, procurando novos estímulos. Depois dos Silence 4, do percurso a solo e da realização de vídeos e pequenos filmes, tem um novo desafio no horizonte. Uma aposta mais difícil de ser ganha, implica pôr-se em causa, regressar ao início, conquistar quem não o conhece, ter sorte e administrar elementos que não dependem de si. Mas os dados estão lançados. Em Espanha não percebem porque é que só agora chega ao seu mercado. Mas ainda vai a tempo.

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