Mais cheio de graça

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Garrel-filho regressa num filme de Garrel-pai.
Entrevista com Louis, o belo.

Louis Garrel podia ser só um rapaz com pinta de ícone pop (Hedi Slimane e Bruce Weber têm estado atentos), impossivelmente bonito (temível distracção numa entrevista), mas também se impôs como um caso à parte enquanto actor - com o realizador Christophe Honoré, sobretudo desde o fulgurante "Em Paris" (2006), tem projectado uma graciosidade quase burlesca, como um Jean-Pierre Léaud (referência assumida) para o século XXI.

Tudo isto e é só o princípio: tem 25 anos, mas é tarde demais para falar dele como "jovem esperança" do cinema francês. Já fez a graduação, por assim dizer, a família (ou a corte) já o reconheceu - recentemente, as revistas "Cahiers du Cinema" e "Les Inrockuptibles" deram-lhe capa, sinal de consagração, sobretudo no primeiro caso (a última vez que os "Cahiers" dedicaram a capa a um actor tinha sido há um ano, com Juliette Binoche). 


A genealogia talvez ajude - é filho de Philippe Garrel, um dos cineastas mais singulares e secretos da primeira geração pós-Nouvelle Vague, e neto do actor Maurice Garrel - mas não explica tudo. Depois de "Os Amantes Regulares" (2005), Louis ressurge num filme do pai Philippe, "A Fronteira do Amanhecer", nova variação sobre o vampirismo das relações amorosas, com "ghost story" em fundo. Uma obra de gravidade, onde Louis consegue mostrar a sua insustentável leveza.

Foi o pretexto para uma entrevista que teve lugar no Estoril Film Festival, onde o actor mostrou a sua curta, realizada este ano, "Mes copains".
 

Quando lhe perguntam como é trabalhar com o seu pai, parece ter sempre dificuldade em responder? Questão de pudor?

Não é necessariamente pudor. É complicado explicar a relação que podemos ter com um realizador. Há uma coisa que é da ordem da transferência, como na psicanálise.

Neste caso, como é o meu pai e o filme é em parte autobiográfico - ainda por cima faço a personagem que lhe corresponde -, é tão profundo o que se passa entre mim e ele que não consigo encontrar palavras para descrevê-lo. 

E se lhe pedir para comparar com o trabalho com Christophe Honoré, por exemplo? 

É diferente. Com o meu pai é uma relação vertical...

No sentido hierárquico?

Hierárquico, claro. Com Honoré é uma coisa mais horizontal. 

Como guarda a distância num filme do seu pai?

Não guardo. A única coisa que evitamos fazer são cenas eróticas, expor o corpo, porque isso implica um olhar que poderia ser visto como malsão. 

Philippe Azoury, na sua crítica no "Libération", notou, com espanto, que o seu pai o erotiza a cada plano.

É possível. Creio que na generalidade das pessoas existe o fantasma da fusão com o pai e ao ver o acto de amor íntimo que é um filho filmado por um pai, isso dá azo a projecções de todo o tipo... [risos] É uma coisa terrivelmente sexual, a câmara que filma. Ainda para mais, Philippe [Garrel] passou toda a vida a filmar mulheres. Fez das mulheres o centro dos seus filmes, sobretudo mulheres que amou. Portanto, para os críticos que conhecem e adoram o trabalho de Philippe, ver subitamente o filho em vez de uma mulher pode ser perturbador. Não tem nada a ver com incesto: todas as mulheres de Philippe devem transparecer sobre o meu rosto e é isso que me erotiza. 

Independentemente do seu pai, parece tentar constituir a sua família no cinema. Admira realizadores como Wes Anderson ou Arnaud Desplechin, cujo cinema se baseia numa noção de colectivo, de família electiva. Também procurou fazer isso na primeira curta que realizou, "Mes copains". 

Sim, há uma espécie de família escolhida. Em relação ao meu filme, que é um pequeno filme, quase amador, senti que estava na altura de filmar o meu grupo de amigos, tendo em mente a ideia de que um dia seremos velhos e feios como acontece a toda gente - à excepção de algumas pessoas, nomeadamente mulheres, que são bastante poupadas pelo tempo. Os meus amigos detestam ouvir-me dizer isto, mas conhecemo-nos quando tínhamos 16 anos e acreditávamos que íamos triunfar onde os outros tinham fracassado. Um dia olhei para eles e dei-me conta que, no fundo, também estamos perdidos, o falhanço também pende sobre nós. E disse a mim mesmo que era preciso filmar esse estado. Eles detestam que diga isto, dizem: "Só temos 25 anos, não falhámos coisa nenhuma." Quando falo de suceder onde outros tinham falhado, isso tem a ver com aquela coisa de cada geração achar que vai ser melhor e fazer com que o mundo seja melhor. E um dia apercebi-me, ao olhar para eles, que se o mundo se tornar um lugar melhor não será graças a nós [risos]. Somos mais insignificantes do que julgávamos. Acho que essa ideia é bastante bela para filmar. 

Voltemos o seu pai. Tem-se a impressão de que ele filma eternamente a sua juventude. "A Fronteira do Amanhecer" não é necessariamente um filme contemporâneo, mesmo se os actores o são.

Há uma coisa muito bonita que li num livro já não sei de quem: "A recordação é um inferno de que não se escapa." Creio que o cinema de Philippe tem qualquer coisa a ver com isso. Comigo, ele projecta que a sua vida pode recomeçar como ela foi em tempos.

A sua personagem chama-se François, tal como no anterior "Os Amantes Regulares". Não é a mesma personagem e, ao mesmo tempo, é a mesma personagem - uma figura romântica, trágica, os primeiros amores...

São representações do homem puro, que não tem verdadeiros defeitos, que ama as mulheres de forma sincera e honesta [risos], ao passo que todas essas cabras o traem!

Foi, portanto, a partir dessa ideia que trabalhou... [risos]

Foi com essa ideia que trabalhei.

Não, a sério.

Mas é verdade. Nos filmes de Philippe são sempre as mulheres que traem. No primeiro fundamento do cinema contemporâneo que é "O Acossado", de Jean-Luc Godard, são as mulheres que traem. Como Godard é o mestre incontestado de Philippe, creio que ele faz filmes em que as mulheres traem os homens. É uma mitologia herdada. Ao passo que, mitologicamente, são as mulheres que ajudam os homens a crescer. Foi Gaia que ajudou Zeus a tornar-se Zeus.

[risos] De que informações precisa, sobre o filme e sobre o seu papel, antes da rodagem?

Com Philippe há só o argumento, ainda nem sequer existem outros actores. Começamos tudo juntos: o "casting", a convocação dos técnicos, etc. Digamos que vejo a filme a fabricar-se, tenho a impressão de o ver crescer. Não é como nos outros filmes, em que chego quando tudo está pronto. Com Philippe é diferente porque assisto a todas as etapas de fabricação do filme e isso faz com que me coloque ao mesmo nível que a iluminação, por exemplo. O filme de Philippe não é tanto um filme de actores, é um filme de fotografia, onde as emoções devem muito ao cinematográfico e dependem menos, digamos, da representação. Creio que depois da Nouvelle Vague o cinema em França não foi mais uma arte de actores - como o é o cinema anglo-saxónico e americano, onde há uma escola forte de actores, seja o Método de Strasberg ou outra, e onde, por vezes, as emoções partem realmente do jogo da representação. No cinema de Philippe a luz sobre um rosto pode ser tão comovedora quanto a interpretação feminina. Estou ao serviço de Philippe como a luz está ao serviço de William Lubtchansky [director de fotografia].

É curioso que diga isso porque numa entrevista a propósito de "A Fronteira do Amanhecer", Philippe Garrel coloca toda a responsabilidade sobre os actores. Diz que se um filme parece pouco convincente é porque os actores são maus.

Sim, porque ele adora a ideia do actor. Michel Piccoli disse uma vez que Philippe filmava a alma das pessoas. Portanto é preciso pô-las na condição ideal para conseguir - vsssst - captar-lhes a alma. Philippe prepara tudo de forma a que, quando começa a filmar, o actor esteja completamente a descoberto.

A sua personagem, um fotógrafo, é alguém que ama através da imagem. Ele apaixona-se por Carole (Laura Smet) porque a fotografa e reapaixona-se, quando ela regressa dos mortos, como um espectro.

Jean Douchet, que é um grande crítico francês, disse-me isso, que o espelho onde ela aparece é como o processo de revelação de uma fotografia - a imagem aparece gradualmente. É verdade que existe essa mediação sempre que ele se apaixona.

Foi mais difícil representar a segunda parte do filme por ser uma "ghost story", por causa do lado sobrenatural?

O episódio da aparição no espelho foi difícil. Tinha a impressão de que era preciso representar o irrepresentável, isto é, a alucinação. E sentia a responsabilidade de fazer com que isso fosse credível.

Uma personagem num filme de Philippe Garrel não é o mesmo que uma personagem num filme de Christophe Honoré. A sua própria abordagem não deve ser a mesma.

Não. Desde logo, Christophe é um escritor, alguém que acredita bastante na ficção, no romanesco. Diria que a diferença é que as personagens de Christophe são aparentemente alegres mas sofrem e nunca mostram que sofrem. Em Philippe não, as personagens são aparentemente sofridas e nunca mostram a sua leveza.

Mas o Louis consegue contrariar um pouco isso.

Sim.

É-lhe natural fazer isso?

Quando faço um filme, entro em competição com os actores que admiro. Entro em competição com [Marcello] Mastroianni, com [Jean-Pierre] Léaud... Inspiro-me neles, faço coisas que vou buscar a eles, faço experiências. Como Mastroianni é alguém bastante ligeiro e Léaud alguém aéreo, há sempre um momento em que faço uma nota de Mastroianni ou uma nota de Léaud... Vi um filme de Fellini que se chama "Luci del varietà" [1950] com um actor genial, Peppino de Filippo: ele faz tudo como um dançarino.

Parece existir uma continuidade entre as suas personagens e a sua própria personalidade. Como se não trabalhasse com a ficção, mas consigo próprio. Tem-se a sensação de que para si não é tanto uma questão de "construir" uma personagem, faz e pronto.

Não é uma coisa teórica. Acredito que isso vem da relação com o realizador. Um papel é um pouco a criança que resulta da união entre o realizador e o actor. Disse-o uma vez e creio que é uma definição justa: "Representar é fabricar segredos com pessoas." Num filme gosto de ver que há coisas escondidas - coisas que, como espectador, eu desconheço. Por isso, por vezes fabrico segredos com personagens.

Disse uma coisa muito bonita a propósito de "A Fronteira do Amanhecer": "Penso que há pessoas que gostam bastante do filme mas que ainda não o sabem." Pode explicar?

Há filmes em relação aos quais estamos na defensiva. Como estão numa sala de cinema, as pessoas sabem que o que quer que digam será ouvido. E isso é especialmente válido em Cannes, onde "A Fronteira do Amanhecer", por razões misteriosas, gerou uma espécie de Dia D do espectador. Talvez todos os críticos que gozaram quisessem dizer a todas as ex-namoradas que viram um filme de amor e riram. Que se estão nas tintas para o facto de Christelle, Martine ou Geraldine os terem deixado - por isso riem como idiotas.

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