Christian Zacharias
O virtuoso discreto

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Amante dos clássicos, Christian Zacharias prefere a introspecção ao fogo de vista de um virtuosismo acrobático. Com o programa do seu recital na Gulbenkian pretende provar que Haydn é mais do que "um compositor para aquecer".

O nome de Christian Zacharias talvez não faça parte da galeria dos pianistas mais mediáticos que povoam o imaginário colectivo, mas tal não significa que as suas qualidades musicais não sejam dignas de nota. O seu talento foi, aliás, reconhecido com a importante distinção de "Artista do Ano de 2007" pelo Midem Classic Awards.
Acontece que este pianista alemão, amante dos clássicos da arte dos sons e dos contemporâneos das artes visuais, não tem atrás de si a poderosa máquina de marketing das multinacionais do disco - há vários anos que trocou a EMI pela mais discreta etiqueta alemã MDG que lhe dá maior liberdade artística - e cultiva um repertório que vive mais da subtileza dos detalhes do que das grandes acrobacias técnicas.
No próximo dia 24, Christian Zacharias vem à Fundação Gulbenkian, em Lisboa, interpretar duas Sonatas de Haydn, a "Grosse Humoresque", de Schumann, e uma série de Prelúdios, de Debussy. Com Haydn a abrir e a fechar o programa, o alinhamento do recital constitui uma espécie de manifesto. "A maior parte dos pianistas não dá importância a Haydn e os poucos que o tocam usam as suas peças como uma espécie de aquecimento, como preâmbulo ao repertório mais espectacular", explica numa breve conversa telefónica. "Acho que Haydn merece um lugar muito mais visível na vida musical. Faço questão de terminar com uma das suas obras (a Sonata em Fá Mayor, Hob. XVI: 29) para mostrar que não é um compositor só para aquecer, mas que tem peso suficiente para concluir um programa."
Mas porque razão é a música de Haydn tão negligenciada? "Muitos intérpretes acham que não é demasiado difícil, que não é suficientemente exuberante tecnicamente para poderem brilhar. É um paradoxo, pois quando a abordam o resultado é frequentemente monótono, o que prova que é preciso muito mais que destreza digital para compreender a sua essência e para a comunicar de modo eficaz ao público. É indiscutível que se trata de música muito boa, mas nem todos conseguem captar o seu estilo. Se bem que sempre houve excepções como é o caso de Richter."
Zacharias reconhece que o movimento das "interpretações historicamente informadas" tem dado um novo impulso à divulgação de Haydn, tanto no que diz respeito à música orquestral como às versões em pianoforte, mas prefere manter-se fiel ao seu instrumento. "Acho que é interessante e enriquecedor mas a minha escolha é o piano moderno. As interpretações de referência dos concertos de Mozart continuam a ser as que usam um Steinway. Por outro lado, espero que esta corrente sirva para despertar mais o interesse de outros pianistas pelas Sonatas de Haydn."

Clássicos e românticos
No recital da Gulbenkian a música deste compositor vai ser permeada por Schumann e Debussy, formando assim um mosaico de universos contrastantes. "Com a 'Humoresque' de Schumann quis mostrar o Romantismo alemão por excelência. Não é talvez a obra de mais fácil apreensão para o público, mas é um excelente exemplo de como este compositor conseguia mudar de atmosfera em poucos compassos com uma destreza admirável", referiu o pianista. "Debussy é um regresso aos franceses, que sempre estiveram no meu repertório e que trabalhei muito com o meu profesor Vlado Perlemuter." Além de Irene Slavin, professora russa residente na Alemanha, o lendário Perlemuter foi o professor que mais marcou Zacharias. Dele recorda "o rigor, a atenção ao texto, a maneira de declamar a música, principalmente com a mão esquerda" e também a filiação numa espécie de família onde se podem incluir intérpretes como Dinu Lipati ou Clara Haskil: "Eram pianistas com uma atitude clássica, privilegiavam a clareza, uma certa sobriedade e a elegância."
São também os clássicos e os primeiros românticos (Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert) que mais atraem Zacharias. Tem igualmente uma predilecção especial por Domenico Scarlatti, tendo recebido o Prémio Edison pela gravação das suas Sonatas, e por compositores franceses do início do século XX como Debussy e Ravel, mas raramente aborda o virtuosismo siderante de autores como Liszt, Tchaikovsky ou Rachmaninov, tanto a solo, como na qualidade de maestro. Depois de vários anos de carreira como pianista, Zacharias começou a dedicar-se à direcção de orquestra em 1992. "Não queria ficar toda a vida confinado ao repertório para piano", diz. "Tinha sede de mais música. Ambas as experiências se repercutem. Tento experimentar com a orquestra a liberdade que o piano me dá (a maneira de frasear, o 'rubato'...) e tento recriar no piano a dimensão orquestral."
Tem dirigido sobretudo música instrumental, mas está entusiasmado com um novo projecto que irá concretizar em Dezembro com a Orquestra de Câmara de Lausanne, da qual é titular: a direcção da opereta "La Belle Hélène", de Offenbach. "Não sou um especialista em ópera, mas quando gosto muito de uma obra avanço."
O mesmo espírito criterioso preside a uma outra paixão: as artes plásticas. "Adoro percorrer galerias à procura de novidades. Vou adquirindo algumas obras, sobretudo de jovens artistas, mas não me considero um coleccionador profissional. É apenas um hobby, da mesma forma que outras pessoas gostam de se dedicar à jardinagem ou à culinária."
Em relação aos artistas que mais admira prefere não divulgar nomes: "Não pertencem ao 'mainstream', são jovens que estão a iniciar um caminho." Tal como na música, o pianista opta pela discrição. Na segunda-feira, na Gulbenkian, talvez a suas interpretações nos desvendem mais alguns segredos da sua personalidade enigmática e Haydn surja em toda a sua grandeza no lugar de honra que lhe tem sido recusado.

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