Os editores cansaram-se e decidiram acabar com o Collectionneur

Especializada em investigação sobre a BD, a publicação francesa chegou ao fim depois de mais de 30 anos de existência. A equipa que a dirige fala de uma "bela morte" e está aliviada

a Em 1908 os Pieds Nickelés, três simpáticos aldrabões especialistas na arte do desenrasca, vinham agitar o cinzentismo da sociedade francesa da época. Cem anos depois, acaba o Collectionneur de Bandes Dessinées (CBD), uma revista que revolucionou o conhecimento que se tinha da banda desenhada mundial. Quem faz a associação entre os dois temas é a própria publicação, que os puxa para a capa (e contra-capa) na última edição, um número duplo 113-114 com a data de Outubro. É o fim da linha para uma revista que começou em 27 de Março de 1977 como elo de ligação entre coleccionadores - fazendo jus ao nome - e acabou por ser o principal espaço de publicação, no universo franco-belga, dos investigadores de banda desenhada.Ao contrário do que normalmente acontece, esta revista trimestral não desaparece por razões financeiras. Sai de cena porque a sua reduzida equipa - três homens com idades compreendidas entre os 60 (Dominique Petitfaux, editor e colaborador) e os 80 anos (Jacques Bisceglia, responsável financeiro, tem 68 anos e Claude Guillot, director executivo, 80), que trabalhavam sem receber qualquer remuneração e, para complicar mais as coisas, nem sequer vivem nas mesmas cidades - não soube renovar-se e está farta. "Foram mais de 30 anos a fazer a revista e há um certo cansaço. Preferimos parar agora, enquanto não temos problemas financeiros, embora esse problema pudesse colocar-se no curto prazo", explicou ao P2 Claude Guillot, responsável editorial do CBD desde o número 14 - Michel Bera, formalmente o director da publicação desde sempre, só assegurou a saída até ao décimo terceiro número.
Dominique Petitfaux, autor de estudos fundamentais sobre a vida e a obra de Hugo Pratt, confirma a existência de "fadiga": "Animar uma revista dá um trabalho enorme, desde a procura de colaboradores até ao envio pelo correio. Paramos em boas condições: os leitores são prevenidos que este é o último número e podem ser reembolsados. De facto, não estamos tristes, mas aliviados por ter podido fazer uma revista de boa qualidade até ao fim, e de ter podido programar 'uma bela morte'."
Triste notícia
Os responsáveis não conseguem explicar de forma satisfatória a falta de interessados na continuação do projecto. "É uma excelente pergunta. Nenhuma outra pessoa se apresentou para pegar na bandeira", diz Guillot, que fala de esgotamento do "espírito da equipa": "O passado não interessa a ninguém, não é um assunto na moda." Petitfaux, por seu lado, acha que "a nova geração não parece estar interessada na história da BD e não concebe o trabalho voluntário". Em França, acrescenta, "praticamente nenhum investigador de história da BD tem menos de 50 anos".
A enorme importância do CBD enquanto publicação de estudo - o catálogo de referência BDM: Trésors de la Bande Déssinée surgiu em 1979 como um número extra do Collectionneur antes de se autonomizar - não esconde uma implantação e difusão modestas, mesmo para a escala francesa. O primeiro número, ainda policopiado, teve uma tiragem de 400 exemplares. Sete edições mais tarde, a publicação passou a sair em offset e agrafada. Com o número 14, datado de Novembro de 1978, já apresenta o aspecto que se manteve praticamente até ao fim - o que explica em boa medida o seu aspecto gráfico rétro e esteticamente muito datado.
No apogeu da sua existência, recorda Petitfaux, o CBD tirava 1500 exemplares, mas nos últimos anos não passava dos 800. Além das assinaturas, a revista tinha uma distribuição comercial em algumas livrarias francesas especializadas.
No meio da banda desenhada, o desaparecimento da revista foi recebido com grande consternação. "É uma triste notícia", confessa o crítico Laurent Mélikian (L'Écho des Savanes). "Encontrava ali artigos que me falavam da história da BD sem espírito de capela e, sobretudo, que considerava a BD no seu conjunto." Yves Frémion, chefe de redacção de Papiers Nickelés (que reivindica a filiação na linhagem em que se insere o CBD, mas tem um leque de interesses mais abrangente, que vai do desenho de imprensa à ilustração, gravura e cartaz), fala de "tragédia": "Os seus dossiers eram insubstituíveis, as suas informações verificadas, as suas opções inteligentes. Quando o CBD falava de um desenhador conhecido era sempre para nos dar alguma coisa que não conhecíamos. Era a fonte número 1 do património de BD em França."
Fim de uma era
Didier Pasamonik, chefe de redacção do site ActuaBD, enfatiza a autoridade do Collectionneur: "Os especialistas de BD não podiam publicar uma linha sobre a Nona Arte sem serem 'rectificados' pela equipa do CBD. Tornou-se rapidamente um local de alta cultura bedéfila e uma referência no domínio da história da banda desenhada. O problema é que a equipa não conseguiu renovar os seus membros e falhou o desafio da Internet."
Leonardo de Sá foi o único estudioso português a colaborar no CBD com um artigo sobre André Daix (co-assinado por Antoine Sausverd). Conhecia algumas das pessoas, mas admite que "não estava por dentro da publicação". Por isso, também para ele foi um "choque" saber que a revista ia acabar: "A publicação reuniu uma equipa bastante valiosa de investigadores e articulistas e nunca teve problemas em falar de coisas mais antigas ou modernas. O fim do Collectioneur é, também, o fim de uma era."
O CBD é apenas o último de uma série de desaparecimentos de publicações do género. Os críticos citam o fim de Bo-Doï, que surgirá em Janeiro de 2009 numa versão online, e Cargo, mas não esquecem as revistas que continuam - Hop!, Papiers Nickelés ou 9.ème Art, esta última com periodicidade anual. Todavia, diz Mélikian, não há razão para optimismos: "Caímos num rumo que consiste em considerar a BD sob o ângulo de uma expressão artística formal, e na melhor das hipóteses como fenómeno comercial. Será um pouco mais difícil sairmos disso e regressar ao estudo do que me parece fundamental - o que quer exprimir uma obra de BD e o que inspira ela aos seus numerosos leitores?"
Leonardo de Sá partilha o mesmo pessimismo: "A investigação histórica está na base de tudo o que se possa fazer depois. Agora, ficamos com a impressão que há um vazio que pode ser duradouro. Onde é que vamos poder publicar este ou aquele artigo?"

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