No Museu da Farmácia o céu é o limite

Há material usado pelos astronautas americanos e russos, múmias egípcias e preservativos feitos de tripa animal. É um museu que ambiciona "ser único no mundo" e contar 30 milhões de anos de história da luta do Homem contra a doença. Num país em que os museus nacionais estão em crise profunda, qual é o segredo deste? Por Alexandra Prado Coelho

Dois homens de luvas brancas abrem, lentamente, as embalagens de cartão. Depois, com enorme cuidado, retiram do interior os objectos, e do meio do plástico saem velhas bolsas verde-tropa no interior das quais estão arrumadas embalagens de comprimidos para o enjoo, rolos de gaze, alfinetes-de-ama, um frasquinho em cujo rótulo se percebe a palavra "opium". João Neto, director do Museu da Farmácia, em Lisboa, pega num bloco com folhas de registo. São etiquetas médicas que, depois de preenchidas, eram colocadas junto ao ferido ou ao morto. "Isto é História", diz, impressionado, enquanto segue atentamente as operações de abertura das caixas. "Este é sempre o momento de maior nervosismo", conta. É o momento em que os objectos comprados a leilões ou coleccionadores privados chegam finalmente ao museu (pelas mãos da empresa de transportes ArtShuttle, os tais homens das luvas brancas), para se juntar às mais de 15 mil peças que este já possui.
Hoje é o dia de chegada do material médico usado pelos soldados americanos no desembarque na Normandia. Vem de um museu privado sobre a II Guerra Mundial que existia em França e que acabou. João Neto mantém-se atento às oportunidades que surgem para comprar coisas ligadas à farmácia e à medicina e encomendou estas peças, que falam de um momento na História sobre o qual o museu ainda não tinha muita coisa, e que marca a primeira vez em que a penicilina foi usada em larga escala.
Mas se em 1944 os soldados já tinham o alívio desse antibiótico, o mesmo não aconteceu aos portugueses que participaram na I Guerra Mundial. Também estes têm - tal como os portugueses que combateram na guerra colonial - um espaço dedicado a eles no museu, com material doado pelo Exército. "Na primeira guerra a penicilina não existia e a morte por infecções era brutal".
E a célebre penicilina também ali está - uma placa de vidro redonda, com uma cultura de penicilina, identificada e assinada atrás, com tinta vermelha, pelo homem que a descobriu, Alexandre Fleming. Esta é, aliás, a peça que João Neto mais se orgulha de poder mostrar, e que foi comprada à própria família de Fleming.
A ambição do Museu da Farmácia não é pequena. "Em 1996 propus à direcção sermos um museu único no mundo nesta área. Para isso era necessário dar o salto para a universalidade e começarmos a coleccionar peças de todo o mundo, de todas as culturas e civilizações. Hoje somos o único museu de história universal que existe no nosso país. Os outros focam apenas uma parte da História, mas nós somos os únicos a contar quase 30 milhões de anos de História, centrados na luta do Homem contra a doença".
Quando os museus nacionais lutam com enormes dificuldades, a sensação que se tem ao ouvir o director do Museu da Farmácia é que aqui "o céu é o limite". E, de facto, numa noite estrelada do Algarve, durante um passeio com os filhos, João Neto olhou para o céu e pensou: "Bolas, ainda não temos nada do espaço". Depois ligou para a NASA e explicou o que queria. Ainda lhe propuseram objectos que usam no serviço educativo, mas ele disse que não era isso que queria. Nessa altura, o antigo Presidente norte-americano Bill Clinton visitou Portugal, uma assessora foi ao Museu da Farmácia e o veredicto abriu todas as portas: "These guys are for real".
A seguir foi a vez de pedir aos russos, que deram farmácias portáteis da Mir, e agora há no museu uma secção dedicada ao espaço - uma das aquisições recentes foi um purificador de água dos anos 70, dado pela NASA, que está este ano a festejar o seu 50º aniversário.
Os "30 milhões de anos" de História começam num pequeno mosquito aprisionado no âmbar e acabam nas mais recentes descobertas na área dos medicamentos e no material que os astronautas levaram para o espaço. Pelo meio, ao lado dos rolinhos de gaze levados nas bolsas dos soldados durante o desembarque na Normandia há, por exemplo, um enorme preservativo feito de tripa de animal e enfeitado com um desenho sugestivo, e uma múmia egípcia (vazia) em excelente estado.
Estamos, afinal, num museu de arqueologia? "Não", diz João Neto. "Esta peça está aqui porque nós até ao século XIX importávamos múmias para as pulverizar e usávamos o pó de múmia para o tratamento de doenças de pele e da gangrena". Além disso, aponta para o risco nos olhos do egípcio, "eles usavam este risco também para proteger os olhos dos raios solares e da poeira, e quando tinham conjuntivites adicionavam substâncias medicamentosas e o simples pestanejar ajudava o medicamento a entrar, em doses, nos olhos".
Sabia que...?
Com formação em História, João Neto garante que existe um controlo rigoroso para garantir que as peças são autênticas. O museu tem já uma grande base de dados de coleccionadores e leiloeiras. "Se tenho a mais pequena dúvida, telefono a um especialista e pergunto. No caso das peças egípcias, por exemplo, recorro ao professor Luís Araújo, um excelente egiptólogo."
Passamos a múmia e avançamos pelas vitrinas que se vão acendendo à medida que detectam a presença humana. Há estátuas para unguentos, estátuas cobertas de hieróglifos, deuses e demónios, "com os quais era preciso estar em boas relações" (um deles é Pazuzu, uma das imagens que aparece no início de O Exorcista), tabuinhas com escrita cuneiforme. E seguimos pelos gregos, com os quais apareceu a noção da dose - "foram eles que souberam transformar o veneno e as drogas em potenciais medicamentos" - com doseadores em forma de pé ou de cabeça para que os que não sabiam ler não se enganassem no remédio a tomar. Depois os romanos, os pré-colombianos, o mundo islâmico - "sabia que a primeira farmácia moderna surge em Bagdad no século VIII e o primeiro hospital moderno em Damasco no século IX?".
É a partir do século XII que, na Europa, aparecem as primeiras farmácias privadas, que já não pertenciam aos mosteiros mas estavam no meio das povoações. Mas a peste negra vem mudar o mundo outra vez. "A ciência cai e sobe a superstição, a religião, a magia". As pessoas acreditam nos poderes da "pedra filosofal" (e há um exemplar no museu) e nos cornos de unicórnio (também existe um, feito de um dente de baleia).
O mundo há-de mudar mais uma vez com a "maravilha das maravilhas, o microscópio". Pela primeira vez, no final do século XVII, "consegue-se ver o alvo a abater, e isso muda tudo". Mas o período ainda é duro e no século XVIII "estala a guerra entre os químicos e os boticários", que obriga os primeiros a criar um código secreto, colocando às portas dos seus estabelecimentos quatro recipientes com líquidos de diferentes cores. "O código diz 'do ar, da terra, do fogo e da água eu consigo fazer medicamentos'. Punha-se na montra da farmácia e assim dizia-se que se pertencia à nova vaga", conta João Neto apontando para os recipientes de vidro com os líquidos coloridos.
No século XIX, com a peste negra deixada para trás, as preocupações são outras: viaja-se cada vez mais e exploram-se zonas inóspitas. As farmácias portáteis tornam-se cada vez mais importantes, e o museu tem as malas cheias de frasquinhos que Henry Morton Stanley (1841-1904) levou para África (quando encontrou Livingstone) e o estojo que Ernest Shackleton (1874-1922) transportou consigo numa viagem ao Pólo Sul.
No andar de baixo do museu foram reconstituídas várias farmácias antigas - uma do século XVIII que veio de Paço de Sousa onde funcionou até 1994, outra mais moderna onde foram filmadas cenas de uma série televisiva sobre o regicídio e, mais recentemente, do filme Equador, adaptação do romance de Miguel Sousa Tavares. Aí vemos, por exemplo, como, com o maior conhecimento das doenças, a parte de laboratório se foi afastando da do atendimento ao público. E a mais impressionante de todas, em madeira escura e toda trabalhada, é uma farmácia que João Neto foi buscar a Macau em 1997 quando soube que ia ser desmantelada.
Mas se o passado interessa, e o futuro também, a ficção começa, igualmente, a pouco e pouco, a entrar no museu. "Estamos a coleccionar adereços usados no cinema", conta o director. Assim, numa próxima visita, pode ser que já estejam expostas (já foram todas compradas pelo museu) a caixinha com a vacina contra o cancro que Sean Connery descobre no filme Os Últimos Dias do Paraíso, ou o boletim de vacinas de Ben Affleck em Pearl Harbor, o inalador de Tom Cruise em Relatório Minoritário ou a caixa de medicamentos que Robert Redford e Brad Pitt usam em Jogo de Espiões. Ou ainda um fotograma de um velho filme da Disney - "que era muito usada para fazer passar mensagens ligadas à saúde e à higiene" - em que a Branca de Neve ensina os sete anões a lavar as mãos. Porque, afinal, tudo tem a ver com saúde. E no Museu da Farmácia talvez nem o céu seja o limite.

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