Crianças de rua: "Têm entre 16 e 18 anos, pedem 25 euros para ir com um cliente"

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Pedro Cunha

A rapariga (será indiana? paquistanesa?) de brinco no nariz e casaco cor-de-rosa está na esquina da Rua de São Lázaro com a Rua da Palma, em Lisboa. São 20h10, a zona do Martim Moniz está cheia de comerciantes que carregam e descarregam mercadoria para as lojas das redondezas. Mas a miúda, que aparenta uns 17, 18 anos, no máximo, está parada junto à porta entreaberta de uma pensão, alheia ao frenesim. Conversa com o que parece um potencial cliente. Falam de dinheiro.

O Martim Moniz é, neste momento, em Lisboa, o ponto de paragem de raparigas menores que se prostituem, dizem Hugo Pereira e Carlos Moreira, ambos de 29 anos, um formado em Psicopedagogia, o outro em Animação Social. Pertencem os dois ao núcleo de intervenção em contexto de fuga do Projecto Rua, do Instituto de Apoio à Criança (IAC). E integram há quatro anos a equipa que semanalmente faz dois giros pelas ruas da cidade de Lisboa (um de dia e outro à noite).

"Nesta esquina costumam estar estrangeiras, sobretudo romenas", diz Hugo Pereira enquanto olha para a rapariga que balança discretamente o corpo ao som da música que lhe sai do telemóvel no bolso das calças. "Nunca a tinha visto aqui."

"Têm entre 16 e 18 anos, estão fortemente vigiadas por homens que as controlam", continua. "Rodam muito, as caras mudam frequentemente. A maneira como abordam quem passa é de quem tem que prestar contas: pedem 25 euros para ir para a pensão com um cliente, podem baixar para os 20."

A maneira como os técnicos do IAC fazem os giros varia conforme a zona da cidade. Desta vez, começam por deixar no Cais do Sodré a carrinha que identifica o Projecto Rua. E caminham a pé até ao Martim Moniz. É um percurso que fazem muitas vezes: de dia, a Baixa lisboeta tem muitas crianças e jovens a mendigar - outro dos públicos-alvo do projecto (ver texto ao lado). Mas a esta hora já não. Durante a noite, as atenções estão mais centradas em eventuais situações de prostituição.

"Mentem na idade..."

Hugo não acha que o problema da prostituição infantil - umas das faces do fenómeno das crianças de rua que a partir de amanhã é debatido em Lisboa, num fórum europeu sobre o tema - tenha grande dimensão na capital. O que não significa que não o preocupe.

Bastaria um caso para preocupar. E há mais. Em 2006 (o último para o qual estão publicadas estatísticas), as comissões de protecção de crianças e jovens de todo o país sinalizaram 70 situações de prostituição infantil. Dois anos antes, tinham sido 52 casos - o que não quer dizer, segundo costuma sublinhar a comissão, que o fenómeno tenha aumentado, até porque em 2004 havia menos estruturas a receber denúncias.

Para os técnicos do IAC e para a comissão, criança é qualquer pessoa até aos 18 anos. E se está em risco, é preciso actuar, nem que seja alertando as autoridades. No entanto, nem sempre é fácil perceber que idade têm os jovens. "Às vezes mentem na idade, pintam-se, arranjam-se, parecem adultas, só depois, quando há uma rusga e vem a polícia, se percebe que têm 14 ou 15 anos...", diz Paula Paçó, coordenadora do núcleo de intervenção em contexto de fuga.

"Muitas vezes não nos identificamos", continua Hugo Pereira. "Tentamos primeiro falar com elas, perceber que idade têm, e procuramos saber se há mais pessoas mais novas na zona. Mas há um clima de tensão nesta zona do Martim Moniz. Se continuamos a conversa dizem-nos: 'Queres ou não? Se não queres, vai-te embora.' No outro dia, por exemplo, apareceu um homem de mota, parou e deu-lhes preservativos... não me parece que fosse alguém de uma instituição para ajudar. É estranho. Mas sabemos que elas estão referenciadas pela polícia."

"Já estão a olhar"

A coordenadora do núcleo de intervenção e fuga, Paula Paçó, já passou pela experiência de sentir o medo estampado no rosto dos miúdos. "Chegam a dizer: 'Se é para conversar, não! Afastem-se, já estão a olhar para mim.' Podem sofrer represálias."

Perto das 21h30, Hugo e Carlos seguem em direcção ao Intendente, sem abordar a jovem de cor-de-rosa. Quando regressam ao Martim Moniz, já nem ela, nem o cliente estão lá. Quanto às jovens romenas que Carlos diz que param na mesma esquina, não há sinal delas. "Já é um pouco tarde. Começam geralmente de manhã, estão o dia todo e vão embora cedo."

A próxima paragem é o Parque Eduardo VII. Carlos e Hugo chegam na carrinha que identifica que são do IAC. Cumprimentam os sete ou oito rapazes, aparentemente todos maiores de idade, que enregelam à espera de clientes.

"Aqui não há crianças", diz um deles que se aproxima, desconfiado. "Não há? Até aos 18 anos são crianças", responde Carlos. O rapaz de boné responde com uma pergunta: "Tens gel?" Só há preservativos.

Durante anos o Parque esteve associado à prostituição de menores. Mas depois do escândalo da Casa Pia, diz Hugo, houve uma diminuição no número de crianças e hoje é raro a equipa encontrar alguma. "Não acredito que tenha deixado de existir. Só não sabemos onde."

O mesmo se passa nas zonas à volta da Rua Artilharia 1. Ana, uma prostituta que se aproxima da carrinha para perguntar se pode doar as roupas que a filha de 13 anos já não usa, conta que passa as suas noites na Rodrigo da Fonseca e garante que é raro ver ali crianças. "Andaram aí duas há pouco tempo, mas deixei de vê-las..." Os técnicos abordam outras mulheres. Ninguém sabe de menores na zona. E o mesmo se passa à volta do Instituto Superior Técnico.

Na Gare do Oriente, onde não há muito tempo encontraram um miúdo a dormir - "perdemos-lhe o rasto" -, também não há menores. Só adultos, sem-abrigo, muitos, enrolados em cartão, a tentar adormecer. Passa da uma da manhã. O giro termina. Para a semana há mais.

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