Havia na CUF uma "aristocracia operária" dos filhos do Barreiro

Ana Nunes de Almeida fez da CUF e seus operários a base para a sua tese de doutoramento. E ficou impressionada como é que esta experiência gigantesca, até pelos padrões europeus, viveu tão discretamente no Portugal de Salazar.

Quais foram os principais impactos da implementação da CUF no Barreiro?

O Barreiro passou a ser a CUF. O impacto foi de tal maneira grande que a CUF invadiu a comunidade e a vida das pessoas que lá viviam. Houve claramente um Barreiro antes e depois da CUF. E como investigadora fez-me impressão verificar como é que aquela experiência gigantesca, até pelos padrões europeus, vive tão discretamente no Portugal de Salazar.

Alfredo da Silva também nesse aspecto jogou muito bem, porque a instalação das fábricas de adubos coincide com a Campanha do Trigo, com a ideia de semear o Alentejo de trigo, etc. E isso convinha a Salazar. Mas a partir daí começa a desenvolver-se a indústria têxtil, porque eram precisas sacas para o adubo, etc., e dá-se toda a expansão.

Mas a implementação no Barreiro é muito anterior ao Estado Novo. O que é que o fez escolher esta região?

Acho que ele teve uma visão estratégica. Tinha a fábrica em Alcântara, e precisava de espaço para se expandir. O Barreiro beneficiava, por um lado, da vinda de trabalhadores de todo o país por causa do caminho-de-ferro, e, por outro lado, o estuário do Tejo era uma fantástica via de comunicação para o exterior. E foi comprando antigas fábricas de cortiça e terrenos que ali estavam disponíveis.

De onde vieram os trabalhadores da CUF?

Eram pessoas vindas da Beira, Alentejo e Algarve. Mas não podemos esquecer os filhos do Barreiro. Há uma espécie de sedimentação de várias condições operárias.

Temos os filhos do Barreiro, que eram filhos de antigos corticeiros, pescadores, etc. Sobretudo no caso de filhos de antigos corticeiros, são eles que são chamados para as indústrias de ponta, principalmente a metalurgia. E vão dar origem à aristocracia operária. Porque os que surgem de fora vêm para os trabalhos mais desqualificados, em determinadas zonas de produção da química, tecelagem ou mesmo da metalurgia, ou vêm encher a enorme massa anónima que se colocava diariamente à frente do portão da CUF à espera de serem empregues por um dia. Eram chamados os "trabalhadores". Eu, enquanto investigadora, não podia usar a palavra "trabalhador" quando me referia aos operários...

Era quase um insulto?

Era. O trabalhador faz qualquer coisa, não tem uma obra. Um operário tem uma obra. O trabalhador é o indivíduo completamente desqualificado, que está descalço em frente ao portão. É quem entra e sai nos "balões" [os grandes despedimentos] e quem é escolhido pelo encarregado ao início da manhã.

Esse tipo de mão-de-obra é absorvido?

É. Não tive conhecimento de incidentes, até porque eles não vêm tirar o lugar aos operários, que estavam ligados à ideia de progresso industrial. Eles têm um orgulho extraordinário por terem trabalhado naquelas máquinas.

Até as desgraçadas das tecedeiras, que trabalhavam com dois e quatro teares ao mesmo tempo, têm orgulho em falar do seu trabalho operário. Havia de facto um fosso entre os operários e os trabalhadores. E estes últimos é que tinham uma vida de exploração total. Imagine o que era estar a fazer a safra dos adubos, a encher os sacos, a mexer nos químicos com as mãos e a entrar-lhes para os olhos, sem roupas adequadas, e com a angústia permanente de saber se ficavam ou não empregados.

A entrada de um operário na CUF era sempre uma entrada com referência. Porque é alguém do local, numa espécie de segunda etapa de condição operária, porque os pais já eram corticeiros.

Depois, na CUF, dava-se prioridade aos filhos dos operários. Não quer dizer que fossem para a mesma oficina ou que fossem iniciados pelos pais, mas tinham acesso a essa condição privilegiada porque o pai trabalhava lá. Havia uma divisão sexual muito grande do trabalho, com os têxteis a serem universos femininos e as metalúrgicas universos masculinos.

Havia uma gestão algo paternalista...

Alfredo da Silva dava ênfase ao recrutamento a filhos da pessoas da CUF -- o que aumentava os laços de dependência em relação à fábrica --, e diversas infra-estruturas de apoio, para enquadrar totalmente o quotidiano dos seus operários. Mas acho que esse enquadramento total nunca ocorreu, porque no Barreiro houve imensas sociedades recreativas completamente autónomas, e que eram frequentadas por operários da CUF, havendo assim locais alternativos de sociabilidade.

O que é que resta hoje da CUF no Barreiro?

A memória. Uma das coisas que me chocou imenso foi que, sendo aquela experiência industrial única, nunca se tivesse aproveitado alguns dos edifícios fabris para se fazer um museu da indústria em Portugal.

Também acho que se poderia fazer um arquivo de memórias operárias, como há em outros países. Porque a história de vida destas pessoas é extremamente rica, mas vai-se perder.

Sugerir correcção
Comentar