A prisão preventiva

Com todas as alterações legais à aplicação da prisão preventiva, o Governo esperava que ficasse tudo na mesma?

A questão da prisão preventiva é muito pertinente, ainda mais quando alguma imprensa se faz eco das queixas do Governo de que os juízes não estariam a aplicar a prisão preventiva por retaliação de terem sido maltratados por este executivo. É escandaloso que o Governo, perante esta notícia, não a tenha desmentido. Percebe-se o objectivo: sacudir a água do capote, evitando ser responsabilizado pelas más alterações ao Código de Processo Penal e deixar a insinuação, continuando a senda de deslegitimação dos juízes. Os resultados da aplicação da prisão preventiva são simples. Os juízes, que há dois/três anos eram acusados de ser conservadores, retrógrados e de colocar Portugal como o país da Europa com mais presos preventivos, são os mesmos que hoje, pelos vistos, segundo alguma imprensa que se faz eco do Governo, aplicam pouco a prisão preventiva.
Pois é, os juízes são os mesmos, mas os critérios mudaram.
Modificaram-se, desde logo, os critérios que permitem a detenção fora de flagrante delito. Passou a ser exigível que haja "fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado". Não é de admirar, por isso, que as detenções efectuadas fora de flagrante delito tenham diminuído avassaladoramente.
Mudou depois a exigência de que o crime seja punido com mais de cinco anos de prisão e não apenas três anos. A isto some-se o facto de também o limite da suspensão de execução da pena ter subido de três para cinco anos de prisão e já se vislumbra como é que em crimes punidos em abstracto com um ano, sete meses e seis dias de prisão a cinco anos e quatro meses de prisão (tentativa de homicídio simples, por exemplo) é possível não se aplicar a prisão preventiva.
Aquando da discussão na AR, alguns srs. deputados desvalorizaram as críticas ao elevar deste patamar. Pelos vistos, agora já se dispõem a alterar a lei das armas. Afinal, algo estava errado.
O Ministério Público está hoje amarrado, como nunca esteve, ao art.º 15.º da Lei de Política Criminal, que lhe impõe que requeira preferencialmente a aplicação de medidas de coacção diversas da prisão preventiva. Se isto não é violação do princípio da autonomia do Ministério Público, já não sei no que consiste esta autonomia.
Acresce que, durante o inquérito, o juiz não pode aplicar a prisão preventiva se tal medida de coacção não for requerida pelo Ministério Público. Anteriormente o juiz não tinha esta limitação, que mais parece a importação dum princípio próprio do processo civil, o princípio dispositivo, para o processo penal.
Com todas estas alterações (outras se poderiam descrever), o Governo esperava que ficasse tudo na mesma? Claro que não. Foi assumido, mais ou menos claramente, que todas aquelas alterações eram necessárias, em função de "excessos" ocorridos em alguns processos mediáticos da época e que também se visava reduzir a população prisional, principalmente os presos preventivos, de modo a tirar Portugal do ranking dos países com mais presos preventivos. O que o Governo não previu foram os danos colaterais. São estes que agora vemos todos os dias, previsíveis para quem lida com a realidade.
Kant tem uma frase lapidar: "Age como se fosses cidadão e legislador ao mesmo tempo". Parafraseando Kant, o que se poderá dizer é que as alterações recentes, às leis penal, processual penal e de política criminal, não parecem ter sido feitas por cidadãos, apenas por legisladores e que terão pensado apenas nos cidadãos arguidos. Juiz desembargador. Presidente da Direcção Nacional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP)

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