No Grande Norte termómetro do planeta

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Neste vale vive-se de noite durante quatro meses por ano Francois Lenoir/Reuters (arquivo)

Por que é que, ao entrarmos num centro universitário, temos de o fazer descalços? E por que é que, junto ao depósito dos instrumentos utilizados durante as saídas de investigação, se alinham carabinas como nos bastidores de uma esquadra de polícia? A resposta é simples: porque estamos em Longyearbyen, a 78º Norte, bem para além do círculo polar árctico.

Tudo na cidade mais a norte do planeta segue regras pouco comuns - até porque não é comum viver tanta gente, de forma permanente, num vale inóspito onde nada cresce e se vive de noite durante quatro meses por ano. E porque viver aqui obriga a regras especiais. Uma delas é entrar descalço em todos os edifícios, deixando à porta as botas quase sempre enlameadas e enegrecidas pelos detritos espalhados pela exploração das minas de carvão dos vales em redor da cidade. Outra é não sair deles à noite, ou para fora da cidade, sem ir armado, uma vez que os ursos polares podem ser muito perigosos.

Havard Juliussen, um investigador no pós-doutoramento, guia-nos pelos corredores do estranho edifício da Unis, um volume escuro que parece ter pousado sobre a estacaria espetada no solo gelado, procurando seguir a forma das ilhas do arquipélago norueguês de Svalbard (ou Spitzberg, como também é conhecido) e onde todas as paredes se afiguram querer fugir à regra da verticalidade. Juliussen veio para aqui pela mesma razão que todos os anos atrai 350 estudantes, metade noruegueses, metade vindos de todos os países do mundo: para estudar o Árctico, uma das regiões do mundo onde estará a ser maior o impacto das alterações climáticas e também onde melhor se pode tentar compreender a forma como vão continuar a ocorrer. Até porque, se as regiões polares funcionam como "refrigeradores do planeta", alterações rápidas nas temperaturas médias que aí se registam têm um impacto à escala global.

Da imensa janela da biblioteca avista-se a baía, ainda livre do gelo nesta época do ano, e parte das instalações mineiras ainda em funcionamento. Do outro lado do braço de mar ergue-se a parede negra deste fiorde, como todos um vale cavado pelos glaciares que, há apenas 20 mil anos, cobriam por completo o arquipélago das Svalbard, assim como a península escandinava, 900 quilómetros mais a sul. Aqui e além há manchas brancas formadas por gelo que o Verão não derreteu e é frequente todo este espaço estar como que encapsulado por nuvens baixas e escuras que só deixam passar uma luz cinzenta e triste. Em tudo contrastante com a paixão de investigadores como Juliussen ou o seu colega português que nos acompanhou nesta viagem, Gonçalo Vieira, ambos especialistas no estudo do solo gelado. Ou permafrost, como é designado pelos cientistas.

"No Inverno é fácil perceber que, em regiões como esta, todo o solo gela sob a neve", explica Gonçalo Vieira, do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e responsável português pelo Ano Polar Internacional. "Mas o que distingue o permafrost é referirmo-nos ao solo que está permanente gelado e que só descongela à superfície nos meses menos frios." Em Adventdalen, a poucos quilómetros de Longyearbyen, numa zona em que estão instaladas duas estações de recolha de dados científicos e de monitorização é mais fácil perceber a dinâmica destas formações que, no Hemisfério Norte, cobrem 25 por cento de toda a terra imersa.

A ameaça invisível

Foi Juliussen que, enquanto ajeitava no ombro a alça da carabina que nunca largou, nos desafiou a espetar no solo uma vara de aço com marcações de cinco em cinco centímetros. De início foi fácil enterrar a vara, mas, de repente, estacamos e percebemos ter encontrado uma superfície dura e impenetrável. Acabámos de embater no gelo. Um gelo eterno a apenas um metro da superfície?

"É precisamente isso que estamos a estudar à escala de todo o planeta", prossegue Gonçalo Vieira. "Esta camada superficial que descongela e volta a gelar de acordo com o ritmo das estações forma o que chamamos 'camada activa' do permafrost."

Até há poucos anos os efeitos do comportamento desta camada activa na evolução do clima à escala global eram pouco conhecidos. Só que este "manto" gelado de rocha, gelo e solo que pode ter mais de cem metros de profundidade, guarda uma enorme quantidade de matéria orgânica que nunca entrou em decomposição devido às baixíssimas temperaturas. Mas agora que as fronteiras da terra congelada estão a recuar e, todos os anos, a espessura da camada activa aumenta, assim como a temperatura à superfície, essa matéria orgânica entra em decomposição e liberta metano, um gás 22 vezes mais potente do que o dióxido de carbono como indutor do efeito de estufa a que atribuímos as alterações climáticas.

Ora, se a concentração actual de metano na atmosfera é muito inferior à do dióxido de carbono (1,7 partes por milhão contra 385 do CO2), o ritmo a que tem aumentado é muito superior (mais 200 por cento contra mais 35 por cento). E o pior é que se sabe relativamente pouco sobre como o fenómeno do descongelamento de camadas cada vez mais extensas e mais profundas de permafrost pode estar a contribuir para agravar a concentração na atmosfera de gases que retêm a energia solar e evitam a sua reflexão e dissipação, assim contribuindo para o aumento da temperatura média à escala planetária. "No Alasca - conta-nos Gonçalo Vieira - vi lagos onde até se viam os gases libertados a borbulhar. Nalguns desses lados a libertação de gases é tão intensa que, no Inverno, eles não voltam a gelar à superfície, como antes sucedia."

A região do mundo onde o desaparecimento desta camada gelada parece estar a ocorrer mais depressa é na Sibéria, onde uma área equivalente à da França e da Alemanha juntas já não gela totalmente no Inverno, estando a ser substituída por pântanos que podem estar a libertar milhares de milhões de toneladas de metano. E se podemos tentar chegar a um acordo global para diminuir as emissões de CO2, pois estas derivam da actividade humana, o efeito que as variações já registadas na temperatura do planeta estão a ter no permafrost não se pode "desligar" como se desliga, por exemplo, uma central de produção de electricidade a partir da queima de carvão.

Fronteiras desconhecidas

Svalbard, cujo clima é influenciado pela corrente quente do Golfo do México e, por isso, é suficientemente ameno para permitir que se viva todo o ano em povoações como Longyearbyen, as variações da temperatura média nos últimos anos têm sido tão acentuadas (em 2006 e 2007 a temperatura média subiu seis a oito graus, valor muito superior ao registado à escala global) que os fenómenos que aqui se observam ajudam a antecipar o que pode vir a ocorrer noutros lugares. Por exemplo: um dos investigadores que trabalha na equipa de Juliussen está a monitorizar a velocidade a que encostas inteiras deslizam quando deixam de ser sustentadas pelas camadas geladas. Outros utilizam um sistema de estacas de aço por onde fazem passar corrente eléctrica para perceber a dinâmica do descongelamento e recongelamento da camada activa do permafrost. Ou monitorizam, com ajuda de tubos enterrados no solo até vários metros de profundidade, a evolução das temperaturas ao longo do ano e numa escala de vários anos.

"Para criar modelos de evolução do clima mais sólidos do que os actuais não nos chega perceber as variações de temperatura da atmosfera registadas nas estações meteorológicas", diz-nos Gonçalo Vieira. "O que torna esses modelos tão complexos é que eles devem lidar com as interacções entre atmosfera, os oceanos e a criosfera, isto é, todo o gelo que existe à superfície seja sob a forma de glaciares, de calotes marítimas ou de solo congelado. É por isso que estamos a aproveitar o actual Ano Polar Internacional para criar uma rede mundial de estações de monitorização do comportamento do permafrost."

Na realidade, é fácil ignorar o que não se vê - e nós não vemos o solo gelado em que embateu a vara de aço utilizada para medir a espessura da camada activa - e, por isso, cometer erros grosseiros. A poucas dezenas de metros de uma das estações a que Juliussen nos levou há restos de um avião militar alemão do tempo da Segunda Guerra. "Nessa época o aeroporto era aqui e, ao realizar uma manobra, o avião virou-se e entrou numa zona onde o solo tinha descongelado", explicou-nos. "E se aqui todos sabem como devem construir as casas, se sabem que têm de estar sobre estacas espetadas no gelo para o ar circular por baixo e o calor da habitação não derreter o solo, há muitas regiões onde ocorrem desastres por falta de cuidado e de compreensão sobre o comportamento destas formações."

E não é preciso sequer vir tão para norte. Gonçalo Vieira contou-nos que recentemente, na serra da Estrela, uma estrada foi destruída porque quem a construiu não teve em consideração o tipo de formações típicas das regiões onde já houve glaciares, como os que se formaram naquela serra durante a última glaciação.

Até porque nem sempre o que parece é - mesmo quando serve para ilustrar os efeitos do aquecimento global.

"São muito populares as imagens que provam que a frente de um glaciar está a recuar, mas por vezes os glaciares também avançam", referiu-nos Havard Juliussen antes de nos mostrar imagens, tiradas na sequência de uma por dia ao longo de um ano, que nos mostram um glaciar a avançar umas dezenas de metros. "As simplificações excessivas nem sempre prestam um bom serviço à divulgação pública de um problema."

Os diferentes glaciares de Svalbard são a ilustração prática de como em vales diferentes, com exposições solares diferentes e sofrendo uma maior ou uma menor influência da corrente quente do Golfo, a frente dos glaciares recua mais depressa ou mais devagar ou até pode, por vezes, avançar. Mas para isso é necessário conhecer a sua dinâmica e não ficar apenas fascinado pela sua majestosa grandiosidade - o que é fácil.

O glaciar azul e branco

"Vistam agora estes fatos", disse-nos o condutor da lancha rápida que nos levaria até à zona em que o glaciar de Sveabreen descarrega o gelo no mar. "Mas não dispam o que já têm vestido", acrescentou, deixando-nos incrédulos. Protegidos por várias camadas de forros polares, a perspectiva de nos enfiarmos nos enormes macacões coloridos e sujos parecia-nos um exagero. Não tardaríamos a desenganar-nos. Sentados numa lancha rápida que não oferecia qualquer protecção, a travessia de uns 30 quilómetros até ao outro lado do fiorde permitiu-nos perceber como uma temperatura baixa que parecia quase amena pode transformar-se num frio cortante.

Aqui ou além uma gaivota tentara acompanhar a rápida viagem, que parecia deixar indiferentes os papagaios-do-mar, mas levava as focas a mergulharem rapidamente. A aproximação à frente do glaciar, sob um céu onde as nuvens se tinham vindo a acumular, fez-se sobre águas cobertas de pedaços de gelo que raspavam a base da lancha. Se pegássemos num desses blocos notaríamos que todos guardam no seu interior minúsculas bolhas de ar, todas elas microamostras da atmosfera da terra no tempo em que o gelo se formou.

"Vejam como o gelo tem cores diferentes, mais branco à superfície, azul em baixo. É um sinal de que se trata de gelo que se formou há muito tempo, talvez milhares de anos", nota Gonçalo Vieira, quando um ruído rouco, pesado, assinala que mais um pedaço da frente do glaciar se desfez e caiu no mar. "E reparem como alguns dos icebergues parecem sujos. São sedimentos que arrastaram ao longo dos anos."

À nossa frente, entre cumes que se erguem até quase mil metros de altitude, imensos rios de gelo avançam lentamente, quase imperceptivelmente, em direcção ao mar. Nos vales adjacentes avistamos afluentes que alimentam a frente do glaciar, uma parede de gelo com algumas dezenas metros de altura de que nos mantemos prudentemente distantes. Estamos numa baía calma, onde o vento deixou de soprar e que nos proporciona um silêncio que só as frequentes derrocadas na frente do glaciar perturbam. Com a ajuda de Gonçalo Vieira identificamos, nas vertentes libertas de gelo, os depósitos de rocha que nos indicam por onde, em tempos não muito distantes, se situava a frente do glaciar. E quando, quase por milagre, um raio de luz consegue romper as muitas camadas de nuvens, o gelo azul e branco ganha uma luminosidade que contrasta ainda mais com as paredes negras das montanhas em redor.

O motor da lancha está desligado e o nosso pequeno grupo, isolado de tudo entre pedaços de gelo flutuante, tem a percepção rara do Grande Norte, da imensidão destas regiões polares onde, paradoxalmente, tudo parece intocado e imutável, mas é também onde mais facilmente se detectam os efeitos longínquos e nefastos da actividade humana.

Os glaciares que avistamos, em conjunto com os da Gronelândia e, sobretudo, da Antárctida, guardam, sob a forma de gelos eternos, três quartos da água doce da Terra. Ao contrário da calote gelada que cobre o Árctico (e o Pólo Norte, a apenas 1300 quilómetros das Svalbard), o volume que perdem é volume que se acrescenta ao dos oceanos, contribuindo para a subida do nível médio do mar. E, porque acrescentam água doce aos oceanos salgados, criam desequilíbrios cujas consequências só agora começamos a avaliar.

A gaivota que, voando a um palmo da água, parece querer quebrar a imensa quietude é o sinal de vida que nos recorda estarmos num dos lugares onde se está a jogar, sem que possamos interferir directamente, o futuro da vida deste planeta tal como o conhecemos.

O P2 viajou a convite da Caixa Geral de Depósitos
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