Eleições em Angola: Euforia em voto histórico ofusca falhas na transparência

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Se as eleições de 1992 foram organizadas pela comunidade internacional e correram mal, estas foram organizadas exclusivamente pelos angolanos Mike Hutchings/Reuters

O entusiasmo do MPLA, no poder, contagiou nos últimos dias observadores às eleições de hoje em Angola. Ainda a votação não tinha começado, e a ideia de que as eleições serão livres e justas circulava nos últimos dias em Luanda.

A dinâmica parece criada com aquilo que os observadores puderam constatar antes e depois de chegarem ao país: um recenseamento eleitoral exemplar, um sistema informático dos mais avançados no mundo para a contagem e o processamento dos resultados e um clima em geral pacífico.

Assim, os observadores preparam-se para dar razão a José Eduardo dos Santos, que prometeu umas eleições que seriam um "exemplo" em África e no mundo.

Mas o voto de hoje - que envolve 8,3 milhões de eleitores na escolha dos 220 deputados da Assembleia Nacional Popular - culmina um processo cheio de contradições que levantam dúvidas sobre a sua transparência. Dúvidas ofuscadas pelo entusiasmo que envolve uma ocasião carregada de um simbolismo muito especial: não são só as primeiras eleições em 16 anos, muito esperadas e várias vezes adiadas, como são as primeiras em clima de paz.

CNE sem base de dados

Se as de 1992 foram organizadas pela comunidade internacional e correram mal, estas foram organizadas exclusivamente pelos angolanos. E as regras são definidas e impostas por quem detém o poder.

A começar pela composição da Comissão Nacional de Eleições, órgão responsável pelo anúncio dos resultados nacionais até 15 dias depois da votação: um órgão partidarizado e dominado por figuras ligadas ao poder. Dos dez membros da direcção da CNE, dois são nomeados pelo Presidente da República, dois são ligados a ministérios e com fortes ligações ao MPLA, três são indicados por esse mesmo partido maioritário, dois pelo maior partido da oposição (UNITA) e um escolhido pelos restantes partidos.

Mas a questão mais delicada levantada por várias organizações da sociedade civil, nacionais e internacionais, é o facto de ser a Comissão Interministerial para a Preparação das Eleições (CIPE), ligada ao Ministério da Administração do Território, e não a CNE, que está em posse do ficheiro informático central de registo eleitoral, a partir do qual foi processada a informação e elaboradas as listas dos eleitores em cadernos eleitorais.

Não é regra. A prática corrente, segundo peritos em eleições consultados pelo PÚBLICO, é que essa base de dados esteja em poder de um organismo independente ou de uma CNE, mas não do Governo.

"Não quer dizer que se esteja a preparar uma fraude, mas deixa dúvidas, porque deixa espaço de manobra mesmo que seja para não fazer nada", explicou ao PÚBLICO uma pessoa ligada ao processo. "Além de que não mostra o sentido democrático que deviam demonstrar estas eleições e é mais uma prova da não vontade total de abertura", acrescenta.

A CNE, por seu lado, minimiza a importância desta questão dizendo que de qualquer maneira tem acesso indirecto a toda a informação sobre os eleitores, pois esta está disponível nos cadernos eleitorais, explicou ao PÚBLICO Adão de Almeida, porta-voz da CNE. Ao mesmo tempo, o responsável refutou a ideia de que, deste modo, o problema é ninguém saber como foi feito o processamento dos dados do ficheiro e rejeitou que exista "excessivo controlo do Governo neste processo".

"O domínio total" da administração pelo MPLA e o controlo de meios financeiros e do próprio Estado para conduzir uma campanha desigual contribuíram para o sentimento de pouco ou nada mudará nestas eleições, contrapõe Elias Isaac.

Este representante da organização Open Society em Luanda diz que a preponderância dos media oficiais (que fizeram da cobertura das eleições uma clara propaganda do MPLA para esta votação) e o impedimento a que estão sujeitos os órgãos de informação privados de emitir nas províncias (como a Radio Ecclesia) não acontecem por acaso. "Correspondem a um plano estratégico do Governo para restringir o debate e a informação", conclui.

Observar sem memorando

Outra das regras impostas por Luanda: a não-assinatura de um Memorando de Entendimento entre as autoridades angolanas e a Missão de Observadores da União Europeia (UE), prevista em regra nestes casos. Houve situações, como nas recentes eleições no Paquistão e na Nigéria, em que apenas houve uma troca de cartas que, segundo a Comissão Europeia, substitui o memorando.

Também no caso de Angola, que por iniciativa própria convidou os observadores europeus, apenas houve uma carta em que a Comissão Europeia realça o "carácter excepcional" da ausência do memorando, mas aceita a troca de correspondência como um garante de que as condições estão reunidas para os seus observadores actuarem livremente.

O MPLA espera ganhar as eleições, recuperar a legitimidade política, 16 anos depois das únicas e contestadas eleições de 1992, e porventura esbater a imagem de partido maioritário de um dos regimes mais corruptos do mundo. Mas o que esperam os angolanos?

Se uns dizem que o partido no poder pode vir a perder a maioria absoluta na Assembleia, outros estão certos de que a reforçará.

Os angolanos esperam poucas mudanças, mas uma abertura para que os partidos da oposição reforcem as suas bancadas e ganhem força para em eleições futuras fazerem frente ao MPLA.

Ainda há expectativa no ar, também porque a maior parte da população que vota nunca votou. São os jovens de Luanda, onde os abusos do poder, as violações aos direitos humanos e a falta de transparência das contas públicas estão mais expostas. E é onde a crítica é mais viva.

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