Everything That Happens Will Happen Today

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Seria um álbum discreto se não fosse assinado por David Byrne e Brian Eno, se não fosse o segundo que gravam juntos e se não tivessem passado 27 anos desde "My Life in The Bush Of Ghosts". Brian Eno chamou a estas canções "folk gospel electrónico" e a classificação, ainda que parcialmente, assenta-lhe bem - se bem que penda mais para a folk e o gospel que para o electrónico.

Disco de guitarras acústicas, quase solar, não evidencia marcas do trajecto mais vanguardista e experimental do ex-Talking Heads e do ex-Roxy Music. "My big nurse" soa a canção de "cantautor" da década de 1970, com a melodia remetendo-se à discrição para que sejam as palavras a sobressair. "Everything that happens" é uma "lullaby" gentil, com a guitarra afogada em delay e o piano a planarem, celestiais, enquanto as vozes se harmonizam num, chamemos-lhe assim, "microgospel". David Byrne já disse que, sendo os últimos anos tão pouco memoráveis quanto foram - estava a falar como habitante dos Estados Unidos e a pensar, referiu o nome, em George W. Bush -, a luminosidade deste álbum é algo inesperada. Mas não é afinal o gospel música de esperança perante a adversidade? E não é verdade que, mergulhando nas óptimas letras de Byrne, descobrimos como se conjugam aqui paranóia, medo e violência com uma vontade de os relativizar, de os subjugar ao optimismo do simples acto de viver? A alma do álbum está precisamente nestes contrastes, nesses versos que ouvirmos a Byrne em "The River": "But a change is gonna come/ Like Sam Cooke said in 1963." Se essa é a sua alma, não é, contudo, o seu corpo. Isto porque o "folk gospel electrónico" é apenas metade da história. A outra, pertence a Brian Eno, produtor, e é o elo mais fraco do álbum. Apreciamos "Wanted for life" e os sintezadores que marcam o andamento da canção como trompetes planantes, com David Byrne a encarnar o melhor Byrne dos Talking Heads. Apreciamos a pop abstracta de "Poor boy", com baixo vocal, guitarras Stones (se os Stones fossem africanos) e congas a impor a dança - por bizarro que possa parecer, soa a abordagem esquizóide da obra de Prince (e isto é um elogio a uma das melhores canções do álbum). O que não apreciamos de todo é a forma como, num disco de intimidades que se refugia no passado, a produção de Brian Eno pende para soluções tremendamente datadas, que evocam uma modernidade que deixou de o ser há mais de uma década. São os sons da bateria "aspirada" - "vshhh!" -, os sintetizadores saídos de uns anos 1980 que já teríamos esquecido, não fosse o galopante revivalismo que vivem actualmente, são o solo de guitarra à The Edge em "Home". Se apelarmos à crueldade, podemos até descobrir algo dos Enigma no ritmo quebrado de "One fine day" - uma belíssima canção maculada pela produção datada. Enquanto disco de intimidades de cantautor diagnosticando o pulsar contraditório da actualidade, "Everything That Happens" é uma belíssima obra de dois nomes marcantes da música popular urbana. Infelizmente, não é só isso.

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