Torne-se perito

O meu nome é Maddie. Tiraram-me das minhas férias

São dezenas de volumes. Centenas de autos de inquirição de testemunhas. Dezenas de retratos, cartas, notas. O P2 leu muitas das páginas que durante meses se amontoaram nas secretárias dos inspectores que investigaram o desaparecimento da menina britânica no Algarve. Saber-se-á, um dia, o que aconteceu a Madeleine? Por Andreia Sanches e Paula Torres de Carvalho

a Foram 14 meses de buscas, de testemunhos, de pistas, umas ignoradas, outras perseguidas. "Em conclusão resulta de tudo o que foi feito (...) não ser possível obter um apuramento concreto e objectivo sobre o verdadeiramente ocorrido" na noite do desaparecimento de Madeleine McCann, conclui a PJ num relatório que faz parte dos milhares de páginas do "processo Maddie" que deixaram, há dias, de estar em segredo de justiça. Nas últimas duas semanas, os pais da criança, Gerry e Kate McCann, os seus investigadores contratados e os seus advogados têm-nas analisado ao pormenor. A imprensa também. O que fez a PJ com a informação que lhe chegou à mão? Que pistas podem ainda ser aproveitadas? É isso que procuram descortinar no processo.

Na loja holandesa, sem "emoção na carinha"Era hora de almoço, entre as 13h00 e 14h00, de um dia de Maio. Ana Martha Stam, uma holandesa de 42 anos, estava com colegas na loja onde trabalha - uma loja de artigos de festa, em Amesterdão - quando um casal entrou. Ele "tinha um bigodinho clarinho" e não era simpático. Ela "era estreitinha" e falava com sotaque francês. Pelo menos foi essa a impressão com que ficou a funcionária, que admite que não se recorda bem do casal. Lembra-se bem melhor de uma das crianças que o acompanhava, uma menina pequena que a certa altura se aproximou dela. "O meu nome é Maddie", disse a criança num inglês sem sotaque.
Ana Stam não é a única pessoa no mundo a garantir que depois de 3 de Maio de 2007 - data do desaparecimento de Madeleine McCann, três anos, do apartamento G5A do Ocean Club, na Praia da Luz -, falou com alguém de "quatro ou cinco anos" de idade que não só era parecido com a britânica como disse chamar-se Maddie. Mas o documento da polícia holandesa que dá conta do testemunho desta mulher é particularmente perturbante. "O que me chamou a atenção foi ela demonstrar pouca ou nenhuma emoção na carinha", contou à polícia holandesa.
"Perguntou-me em inglês: 'Do you know where my mummy is?' ('Sabe onde está a minha mamã?'). E eu respondi-lhe que a mãe estava um pouco mais além, na loja." Ana estava convencida de que a mãe da menina era a mulher com sotaque francês. Mas a criança terá respondido: "Ela não é a minha mamã." E terá acrescentado: "Tiraram-me das minhas férias."
A suposta "mãe" explicaria no final à funcionária que tinha um pequeno circo em França. E terá comprado "máscaras de terror", roupas de palhaço, "dedos ensanguentados a fingir" e outras coisas do género, no valor de 237 euros. Depois foram-se todos embora da loja. Só mais tarde Ana soube das notícias do caso da Praia da Luz. O seu testemunho foi enviado para a Polícia Judiciária (PJ) portuguesa a 15 de Junho de 2007.
Do longo processo agora divulgado, que dá conta de 14 meses de investigação em torno do "caso Maddie", não fica claro o que fez a PJ com este depoimento ou que diligências tomou. O que já suscitou reacções. "Precisamos saber o que foi feito com isto. É exactamente este tipo de informação primária que precisamos saber se foi devidamente tida em conta pela polícia", declarou à BBC o porta-voz dos McCann, Clarence Mitchell.

A pista maltesa: "Não és a minha mãe"Gerry e Kate McCann, pais de Maddie, os seus investigadores contratados e advogados, mas também a imprensa, têm, por estes dias, dissecado o conteúdo dos milhares de páginas do processo que deixou de estar em segredo de justiça: só o corpo principal do documento é constituído por 17 volumes e 4500 folhas. Há ainda 55 volumes de apensos e 22 dossiers. Nem tudo foi tornado público.
Só nos 14 volumes do "apenso V" há milhares de relatos que pertencem, nas palavras da PJ, "a uma grande mancha difusa de supostos avistamentos e localizações" que "continham elementos escassos, vagos, discordantes, incompatíveis ou incongruentes". Maddie foi vista na Indonésia, em Singapura, em Moçambique, na Síria. A 11 de Maio, oito dias depois do desaparecimento, esteve, segundo muitos testemunhos, no Brasil, no Canadá, em Bruxelas, no aeroporto de Zurique e no ferry para Ayamonte... tudo no mesmo dia.
O ritmo das denúncias foi "desmesurado" naquelas semanas de Maio, Junho, Julho... E implicou muitas vezes perda desnecessária de tempo a quem tinha de investigar. Porque alguns desses relatos "mereceram tratamento", como mostram as centenas de autos de inquirição e relatórios de outros procedimentos policiais, envolvendo polícias portuguesas mas também de vários países.
Outros, contudo, foram minimizados - nalguns são mesmo visíveis notas escritas à mão pelos investigadores como esta: "Sem interesse." Outros ainda ficaram de reserva para o futuro - caso "elementos sólidos" surjam.
Nem sempre é claro o que foi feito com um "suposto avistamento". É o caso do que se segue: duas turistas britânicas, irmãs gémeas, garantem ter viajado num autocarro, a 17 de Junho de 2007, em Malta, "com uma menina muito parecida com Madeleine McCann" que até tinha "um sinal particular no olho direito" - e Maddie tinha de facto esse sinal. A mulher com quem a criança viajava "impediu por várias vezes" que ela falasse com as turistas, contaram. Mas a menina acabou por lhe dizer: "Não és a minha mãe."
A polícia maltesa interessou-se pelo testemunho e pediu mais informações à PJ portuguesa: "A menina desaparecida fala com sotaque escocês?" Maddie só fala com sotaque "quando brinca/imita o pai", que tem esse modo de falar, respondeu a PJ.

"Podemos ver a mamã em breve?"Marrocos também foi palco de inúmeros "avistamentos", como lhes chama a PJ. Anne Mari Olli, uma norueguesa de 45 anos, assistente social reformada, residente em Espanha, por exemplo, diz que viu dentro da loja de uma bomba de gasolina em Marraquexe uma menina loura e com ar triste, com um homem que não parecia pai dela. "Podemos ver a mamã em breve?", terá perguntado a criança. Foi a 10 de Maio, sete dias depois do desaparecimento na Luz. Olli só viu as notícias no dia 10 à noite. "Tenho a certeza de que era a menina", diz numa das mensagens dirigidas à polícia de Portimão.
Uma informação da PJ, com a data de 6 de Junho, um mês depois do suposto "avistamento", revela que as imagens das câmaras de vigilância no posto de gasolina, que já tinham sido solicitadas pelas autoridades britânicas, com o conhecimento da polícia portuguesa, "não estavam disponíveis em registo VHS, já que são de curta duração, por gravação sobreposta". A pista avançada pela norueguesa terá dado em nada.
Por esses dias Madeleine, ou alguém parecido com ela, foi alegadamente vista por muitas outras pessoas na região: a 19 de Maio numa mansão na zona de Massira; no dia 15 de Junho em Agadir; no dia 19 de Junho em Marraquexe, a 26 de Setembro de novo em Marraquexe...

Relato de uma forte suspeita
Dois dias depois do desaparecimento de Madeleine, um emigrante português na Alemanha, de férias com a família em Sagres, foi à PJ de Portimão participar uma situação que o alarmara. E que a PJ levou muito a sério: casado com uma alemã, pai de dois filhos, um menino de quase três anos e uma menina de quase quatro, Nuno de Jesus tinha ido com a família, no dia 29 de Abril de 2007, à praia da Mareta. No areal, as crianças entretinham-se "com as brincadeiras normais para a sua idade", contou.
Entre as 16h00 e as 17h00, Jesus "apercebeu-se da presença de um indivíduo munido de uma máquina fotográfica de cor prateada, de pequenas dimensões, que de forma velada e dissimulada tirava fotografias aos seus dois filhos".
Nuno de Jesus relata que, depois de ter fotografado os seus filhos, "o indivíduo tirou mais fotografias a duas crianças do sexo masculino, nove e cinco anos, eventualmente, que eram filhos de um casal" que se encontrava ali ao lado. Face a esta atitude e "supondo que o objectivo do 'fotógrafo' seria raptar os seus filhos ou utilizar as fotografias de forma ilícita", Nuno de Jesus diz ter começado "a olhar para o indivíduo de forma acintosa e agressiva, o que o levou a afastar-se, abandonando o areal", lê-se no auto de inquirição feito pela PJ.
Mais tarde, o emigrante voltou a ver o mesmo homem, junto a uma esplanada, a caminhar em direcção à sua filha. E não duvidou de que a intenção era "agarrar" a criança.
Com base neste depoimento os investigadores deslocaram-se a Sagres e apuraram que um carro com as mesmas características do que Jesus tinha descrito como pertencendo ao suspeito fora alugado por um cidadão polaco, de nome Wojciech Krokowski, que estava em Portugal com a mulher, Anetta Krokowski, num apartamento no Burgau, localidade muito próxima da Praia da Luz. Todos os pormenores da sua passagem por Portugal até ao seu regresso, via Berlim, foram passados a "pente fino".
Os inspectores da PJ acabaram por apurar que o casal não regressou a casa com nenhuma criança. A sua residência, em Varsóvia, foi inspeccionada pela polícia local. "O resultado foi negativo. A criança desaparecida não está com este casal", refere uma informação escrita da Interpol com data de 6 de Maio de 2007.

A menina que gritou help! em Mem MartinsAs fotografias que mostravam um grande plano da marca que Madeleine McCann tem na íris do olho direito correram mundo. É um sinal particular da menina que, acreditavam os pais, ajudaria quem a visse a reconhecê-la. Por isso publicitaram-no muito. E houve muita gente por esse país fora (e por esse mundo fora também) a vergar-se perante as crianças que lhe apareciam à frente, para lhes espreitar os olhos.
Para além da funcionária da loja em Amesterdão ou das turistas gémeas em Malta, há dezenas de testemunhas com imensas certezas de ter visto a criança por causa desse sinal especial, como mostram as notícias arquivadas pela PJ. No dia 13 de Maio de 2007, por exemplo, uma mulher chamada Vontrat Sylvie contactou a polícia de Colmar (França) para dizer que avistou no dia 11 desse mês um casal de ciganos com um carrinho de bebé onde transportavam uma criança que não parecia nada filha deles. A mulher diz que se aproximou da menina, procurou-lhe a íris e ela tinha um sinal. A polícia francesa chegou a fazer um retrato-robô do casal.
Um mês depois, a 11 de Junho, a PSP da Amadora recebeu uma participação de um homem que tinha acabado de ver, num restaurante em Mem Martins, uma menina loura, com o cabelo liso, fato-de-treino vestido e... um sinal num olho. Perante isto, o homem dirigiu-lhe algumas palavras, chamou Madeleine. E segundo relatou a reacção da criança foi dizer: Help! (Socorro!).
O homem com quem a criança estava - 35/40 anos, cerca de 1,70 metros, tez morena, "de origem magrebina" - levantou-se de rompante e foi-se embora com ela num BMW de cor preta "com dístico NL", supostamente originário da Holanda, contou ainda a testemunha. A polícia foi ao local, mas já não encontrou nem a criança nem o BMW.
Também tinha um sinal no olho direito a menina avistada em Fevereiro passado, em Montpellier, na França, por Melissa Fiering. Melissa, de 18 anos, parou num restaurante de beira de estrada e viu uma menina muito parecida com a que tinha desaparecido no Algarve e cujas fotografias vira nas notícias. Quando chamou Maddie à criança, esta "olhou surpreendida". E o homem que estava sentado junto da criança levantou-se de repente e levou-a. Visionadas as imagens de videovigilância no local, a polícia terá no entanto concluído que se tratava de outra criança.
Já este ano, a 16 de Maio, um homem chamado Trevor Francis diz ter visto a menina na ilha Margarita, na Venezuela. "Tinha uma mancha no olho direito. Tenho 85 por cento de certeza de que era ela."

Gerry também foi "avistado" A 26 de Maio, Martin Smith, um irlandês descrito pela polícia de Leicester como um homem "decente" e com pouca sede de protagonismo, veio a Portugal de propósito para prestar depoimento à PJ e contar o que viu na noite de 3 de Maio de 2007, cerca das 22h00, numa rua da Praia da Luz: um indivíduo que levava uma criança nos braços, com a cabeça encostada ao seu ombro esquerdo.
A imagem daquele homem com cerca de 175 a 180 cm de altura, 34/35 anos de idade, cabelo curto, castanho, a transportar aquela menina loura adormecida, de pijama, "com cerca de quatro anos", não voltou a abandoná-lo, disse.
A 20 de Setembro o irlandês voltou a contactar as autoridades. Estava "transtornado". Explicou que quando a 9 de Setembro viu os McCann nas notícias na televisão, a sair do avião acabado de aterrar em Inglaterra, já com o estatuto de arguidos, sentiu que estava a assistir a "uma repetição da ocorrência da noite" em que viu o homem "a transportar a criança lá em Portugal". A maneira como Gerry levava um dos filhos, Sean, deitado sobre o ombro, era "exactamente" igual à "maneira" que o desconhecido em Portugal usava para levar criança ao colo.
A PJ pediu mais informações. E a 23 de Janeiro deste ano Smith voltou a prestar depoimento em Drogheda, na Irlanda. Reiterou que tinha 60 a 80 por cento de certeza de que era Gerry o homem que levava a criança na Praia da Luz.
No seu relatório final sobre a investigação a PJ garante contudo que, à hora a que Smith diz ter visto Gerry na rua, o pai de Madeleine estava sentado à mesa no restaurante Tapas, no Ocean Club.

Inspector achou que "todos" mentiamDesde o início da investigação que a polícia quis saber tudo sobre os McCann. O que comeram, a cor da roupa que usavam, os objectos que transportavam, como estavam vestidos, qual era a disposição dos móveis no apartamento que alugaram no Ocean Club, se deixaram portas e janelas fechadas. E as horas de todos os passos que deram. Tudo do que se lembravam, os mais ínfimos pormenores do dia em que a filha Madeleine desapareceu.
Kate e Gerry e todos os elementos do grupo com que jantavam no restaurante do resort (o Tapas), a 3 de Maio, enquanto os filhos dormiam nos apartamentos, deram a sua versão dos factos, uma versão muito parecida. Ao longo do tempo, contudo, a polícia detectou "pequenas distorções na informação inicialmente transmitida, verificando-se 'pequenas alterações à verdade relacionando-as com a investigação e a direcção a que obrigaram", escreve o inspector chefe Tavares de Almeida, num relatório incluído no processo.
Nem sempre os relatos pormenorizados apresentados separadamente pelo pai e pela mãe de Madeleine sobre os passos que deram até ao desaparecimento da filha coincidiram ou se mantiveram idênticos. Fica-se na dúvida, por exemplo, se terão ou não dormido juntos na antevéspera dessa noite ou quanto tempo um dos amigos, David Payne, se demorou no apartamento dos McCann na tarde de 3 de Maio.
No decurso da investigação, Ricardo Paiva, o inspector da PJ encarregado de estabelecer a comunicação entre a polícia e os McCann, relata, a 3 de Setembro, "diversos comportamentos 'estranhos' por parte do casal que gradualmente foi reagindo de forma muito negativa à crescente actividade investigatória" da PJ. Paiva refere o facto de o casal ter sugerido à polícia que mantivesse as atenções direccionadas na hipótese de rapto e que não deveria "esquecer de continuar a investigar o suspeito Robert Murat", a primeira pessoa a ter sido constituída arguida neste caso.
O inspector escreve que, "estranhamente, foi também exigido por diversas vezes por Kate McCann, já passados mais de três meses após o desaparecimento de Madeleine, que a polícia procedesse a análises ao sangue, cabelos e unhas dos irmãos gémeos de Madeleine", já que se lembrara que, na noite do desaparecimento, apesar de todo o barulho provocado durante as buscas, os gémeos não tinham acordado, "pelo que agora presumia que estivessem sob o efeito de alguma droga sedativa" administrada pelo raptor às três crianças.
Para os investigadores, "a informação recolhida de início, junto dos familiares e amigos, foi incerta" e "trabalhada" pelo grupo, de modo a "dar força à versão apresentada e defendida".
O inspector chefe Tavares de Almeida entende que a informação que levou os investigadores a suspeitar de Robert Murat não só atrasou as investigações "como pode ter levado à perda da menina". E salienta que "das declarações de todo o grupo resulta uma total incoerência, face à qual se verifica facilmente que todos mentem".

Do outro mundo, with love
Muitos dos relatos de "visões psíquicas" e "adivinhações", como lhes chama a PJ, relacionados com o caso McCann não foram divulgados. A polícia optou por colocá-los em 22 dossiers, juntamente com várias "notícias especulativas", na "mera eventualidade de necessidade de consulta futura". E guardá-los. Mesmo assim, na parte do processo divulgada, há várias informações deste tipo, algumas das quais chegaram às mãos da PJ via Sirene (o sistema de troca de informações de polícias europeias). É o caso desta, com a data de 14 de Maio: uma alemã faz saber à polícia do seu país que teve uma "visão" e que a criança estava em Sagres, numa casa específica, numa rua em particular (dá o endereço e indicações precisas para lá chegar). A mulher conta que "sentiu" a criança viva, mas "mal".
Outros relatos chegaram aos investigadores por carta, escritas por vezes à mão. "Vivo em Haarlem, na Holanda", começa por escrever alguém que diz ser negociante de antiguidades e que conta que uma amiga de Kate e Gerry McCann foi à sua loja pedir-lhe ajuda. Depois de comunicar com os anjos, continua, conseguiu fazer o desenho do alegado raptor de Madeleine: um indivíduo careca cujo rosto "não lhe sai da cabeça". O desenho tem a data de 06/06/07.
Na visão, o raptor está junto a uma casa onde há uma cave com uma cama de metal e brinquedos. "O quarto com a cama de metal também foi visto num sonho pelo meu amigo David", acrescenta. Para de seguida se despedir - with love -, deixar os seus contactos e prometer que vai rezar pela investigação.
Ainda em Junho, a Interpol de Wiesbaden (Alemanha) faz chegar à PJ a seguinte comunicação: "A eventual raptora de Madeleine McCann chama-se Kathleen e terá sido empregada do pai da Madeleine. O rapto foi um acto de vingança porque a sua mãe terá falecido há três anos devido a um tratamento médico errado administrado pelo Sr. McCann. A Madeleine já estará morta e encontrar-se-á numa casa de cor amarela na aldeia de Bidea. A informadora diz que recebeu estas informações através do manuseamento do pêndulo."
23 de Agosto de 2007, novo relato: alguém chamado Mark liga para o piquete da PJ e diz que Maddie está no n.º "19, Rue du Boulanger, em Fez, Marrocos". O inspector que assina a "informação de serviço" dirigida a um superior não dá muitos mais pormenores e conclui: "Mais referiu [o homem que telefonou para o piquete] que os pais da menor poderão agradecer esta informação dando graças a Nossa Senhora de Fátima. É tudo o que me cumpre informar V. Exa. para os fins tidos por mais convenientes." Não fica claro se alguém em Fez foi à dita morada.

A polícia quis fazer, os juízes não deixaram
Com o casal McCann a tornar-se o grande alvo das suspeitas, a 1 de Agosto o inspector da PJ João Carlos requer autorização para a colocação de uma "escuta ambiental" na vivenda onde Kate e Gerry estavam a residir, bem como no automóvel alugado que utilizavam. O objectivo era obter "novos meios de prova" para sustentar a tese de que Madeleine teria morrido no apartamento da Praia da Luz onde passava férias.
Mas o juiz Pedro Frias, do tribunal de Lagos, indeferiu este pedido por considerar que em relação a nenhum dos ilícitos em investigação a lei estipula como admissível a gravação de conversações, só possível quanto a crimes com pena de prisão superior a três anos, relativos a tráfico de droga, armas, contrabando ou injúria, ameaça ou coacção.
Para apurar a localização de cada um dos intervenientes, bem como determinar as movimentações dos arguidos no processo, a PJ e o Ministério Público solicitaram também a análise da informação do tráfego telefónico (chamadas e SMS) entre o casal e os amigos.
Esta pretensão também foi negada pelo juiz, que alegou inexistência de "suporte legal" para o requerido. No entender do magistrado, o acesso aos SMS trocados entre os pais de Madeleine e pessoas das suas relações significaria "tomar conhecimento do conteúdo da conversação ou comunicação telefónica já efectuada e sem que tivesse existido despacho judicial prévio de autorização". A troca de mensagens entre eles ficou, assim, por conhecer.

Dois milhões pela criança
Ao longo do processo judicial, a polícia faz questão de sublinhar que "nunca houve um pedido de resgate". Apesar de em Junho de 2007 uma funcionária do Ocean Club ter recebido no seu telemóvel uma mensagem de voz onde alguém pedia dinheiro em troca da criança, o que não terá sido levado a sério...
Já tentativas de extorsão ao casal McCann não faltaram. No dia 13 de Agosto de 2007, às 00h33, por exemplo, foi enviada de um endereço electrónico francês para o sos_maddie@yahoo.fr uma mensagem que foi rapidamente encaminhada para a PJ: "A criança está em Marrocos, num local chamado Beni Mellal, a cerca de 100 quilómetros de Marraquexe", escreveu a pessoa, que deixou o seu número de contacto e um pedido de 500 mil dólares em troca de mais informações. Acrescentou: "Juro que isto não é mentira. Trabalho e não tenho tempo a perder com mentiras. Têm outra hipótese, não avançar com o dinheiro e nunca mais ver a pequena e pobre Madeleine."
Já em Junho tinha chegado da Holanda um pedido de dois milhões de euros em troca de informação para localizar a menina. "É melhor que acreditem em mim", dizia o desconhecido aos pais, via e-mail. O homem acabou por ser detido e confessar que nada sabia sobre Maddie. O mesmo se passou com um casal, em Espanha (ela portuguesa, ele italiano), que pediu dinheiro aos McCann em troca de informação.

Comprada por rede de pedófilos?
Há poucos meses, mais concretamente a 22 de Abril, Paulo Rebelo, o homem que substituiu Gonçalo Amaral na liderança da investigação, envia um fax ao Gabinete Nacional da Interpol. "Três dias antes do desaparecimento de Madeleine, uma rede pedófila da Bélgica terá efectuado um pedido de uma menina. Alguém com ligações àquela rede pedófila terá visto Madeleine e ter-lhe-á tirado uma fotografia que terá enviado para a Bélgica. O comprador terá concordado que a menina era o que se pretendia e Maddie foi então raptada."
Rebelo explica que a informação em causa é "do tipo intelligence" - confidencial - e solicita ao GNI que colabore no sentido de apurar junto das autoridades policiais belgas se recolheram todos os dados considerados pertinentes sobre este assunto.
A leitura do processo não permite contudo apurar o destino dado ao pedido de Rebelo. De resto, muitas das trocas de informação entre polícias de diferentes países sobre condenados por agressão sexual e pedófilos foram retiradas do processo judicial antes de o documento ser tornado público. Objectivo, explica-se: "Preservar a intimidade de pessoas que nada tinham a ver com este caso." Ainda assim, a possibilidade de o desaparecimento de Maddie poder estar associado a um acto cometido por pedófilos é mencionada algumas vezes.

Kate escreve: "Falta de informação é tortura""Morrerá certamente o filho que te nasceu..." A frase consta de uma passagem do II Livro de Samuel, assinalada na Bíblia de Kate apreendida pela PJ. Por que razão estava esta passagem assinalada?
E por que razão, duas noites antes de Maddie desaparecer, esteve a criança, ou algum dos seus irmãos, a chorar durante mais de uma hora e quarto - segundo o relato de uma vizinha que ouviu choro no apartamento dos McCann entre as 22h45 e a meia-noite de dia 1 de Maio?
E se a vizinha está certa, não mostra o seu depoimento que afinal os pais não interrompiam o jantar de meia em meia hora para ir ao apartamento ver os filhos, já que o choro só cessou quando eles chegaram a casa? Não pode isso significar que, se houve rapto, o raptor teve muito mais tempo do que se pensa?
E terá Kate alguma vez referido que tinha um "mau pressentimento" em relação à viagem ao Algarve? Gerry diz que não. Ela não respondeu a essa pergunta (bem como a outras no interrogatório que lhe foi feito em Setembro, quando, juntamente com o marido, foi constituída arguida). Matt, um dos sete amigos de férias com o casal, na Luz, afirma que sim.
Para esclarecer algumas destas interrogações, em Abril deste ano a PJ solicitou ao "grupo veraneante" (nove pessoas) que viesse a Portugal para participar numa reconstituição do que se passou. "Ou acreditam na nossa versão dos eventos do dia 3 de Maio de 2007 ou não acreditam. Caso acreditem, para quê uma reconstituição?", escreveu num e-mail um dos casais.
A reconstituição nunca se fez. Apesar de toda a gente dizer que queria colaborar na descoberta da verdade - nomeadamente Kate, que o disse com todas as letras numa carta dirigida a Paulo Rebelo, da PJ, em Dezembro. Nela a mãe de Maddie pedia encarecidamente que lhe dessem informação sobre o curso das investigações: "Venho apelar-lhe como ser humano", escreveu. "A falta de informação é uma tortura."

A famosa impressão digital de um GNRNo final do processo judicial, o Ministério Público escreve que foram feitos enormes esforços de investigação. Também Mark Harrison, um especialista britânico, conselheiro nacional de todas as agências de polícia do Reino Unido no que diz respeito a pessoas desaparecidas, rapto e homicídios, faz um relatório onde explica que houve "esforços extensivos e profissionais" para "localizar Madeleine McCann viva".
O processo reflecte esse esforço: naqueles primeiros dias após o desaparecimento, centenas de pessoas da Polícia Marítima, PSP, PJ e GNR - que coordenou as buscas na zona - procuraram a menina. Há inúmeros relatos de deslocações de agentes, em todo o país, a postos de abastecimento para visualização de imagens de videovigilância (sobretudo sempre que alguém relatava algo suspeito), sendo certo que muitas imagens ficaram por ver porque são guardadas por muito pouco tempo, sendo rapidamente regravadas.
Do processo constam ainda vários relatos de polícias que, um pouco por todo o país, se puseram em campo à mais ténue suspeita. A 4 de Maio, por exemplo, uma mullher foi vista a empurrar um carrinho de bebé com uma criança; a PSP de Lagos foi alertada e dois inspectores deslocaram-se de imediato ao local; procuraram-na, encontraram-na ainda na rua, falaram com a criança e perceberam que afinal era portuguesa. Não podia ser Maddie. Episódios como este há vários.
Mas a investigação está longe de estar isenta de falhas. Quem está habituado a ver a série de ficção norte-americana CSI vê os locais dos crimes serem isolados. Na Praia da Luz, na noite do desaparecimento, esteve longe de ser assim. "As pessoas que se encontravam no apartamento de onde Madeleine desapareceu e próximo do mesmo entravam e saíam do imóvel e circulavam por toda a casa à vontade, sem que houvesse qualquer restrição", conta o inspector da PJ que primeiro chegou ao local. "Um dos elementos da GNR referiu que já haviam procurado a menina dentro dos armários e noutros locais da casa, sem que tivessem tomado qualquer tipo de cuidado quanto ao facto de, por um lado, deixarem vestígios deles próprios e, por outro, apagarem ou adulterarem eventuais vestígios com interesse."
As impressões digitais encontradas mostram isso mesmo. Durante dias tentou apurar-se a quem pertencia o vestígio recolhido numa janela da sala do apartamento dos McCann. Já depois de ter corrido pelas bases de dados das polícias de vários países - sem sucesso -, veio a verificar-se que essa impressão digital era afinal do dedo de um GNR.

E afinal para que serviram os cães?Num relatório de 31 de Julho de 2007, o especialista inglês Mark Harrison, que tinha como missão colaborar com as autoridades portuguesas, recomendou que se voltasse à casa dos McCann - e a outros locais já revistados - com cães especiais, existentes no Reino Unido. Esses cães, explicou, têm treino para detecção de odor de cadáver e de sangue. "Este processo de busca poderá ser repetido em todos os apartamentos que estiveram ocupados pelos amigos que passaram férias com a família McCann", defendeu.
Os cães acabaram por vir. E causar grande alarido: detectaram odor de cadáver na casa dos McCann, nomeadamente junto ao roupeiro de Kate e Gerry, em peças de roupa de Kate e no urso de peluche de Maddie (o mesmo com que Kate era sempre vista depois de a menina desaparecer); assinalaram também sangue na sala de estar e na bagageira do carro que os McCann tinham alugado vários dias depois de a criança ter desaparecido.
Foi em grande medida com base nisto que Kate e Gerry foram, em Setembro, constituídos arguidos. Até porque, diz a PJ no seu relatório final, "numa primeira abordagem científica" o laboratório britânico que analisou os vestígios recolhidos (o Forensic Science Service) terá levantado a possibilidade de o ADN recolhido no carro alugado dos McCann ser compatível com o de Maddie.
No final, concluiu-se que o material celular encontrado não "foi identificado como pertencendo a alguém em concreto".
Um ano e dois meses depois do desaparecimento de Madeleine a polícia constatou que estava no mesmo ponto em que se encontrava a 3 de Maio de 2007: sem qualquer pista. Nenhum elemento de prova foi obtido para acusar da prática de qualquer crime nenhum dos três arguidos constituídos ao longo deste processo (nem os McCann, nem Robert Murat, o homem que traduziu para a PJ vários testemunhos no início deste processo).
No passado dia 21 de Julho o Ministério Público determinou o arquivamento do processo. A investigação policial chegou ao fim.

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