A revolução sexual perdeu o corpo (e a soul perdeu a alma) com a morte de Isaac Hayes

As capas dos discos dele eram statements de uma década, os anos 60, em que
o black power não era só uma agenda política, também era uma agenda sexual

a Andamos há anos com os nossos melhores maus pensamentos dentro da cabeça e ainda não tínhamos percebido que voz é que eles usavam para dar ordens ao cérebro: percebemos agora que "a voz dos nossos melhores maus pensamentos era dele, Isaac Hayes". Vinha ontem, um dia depois de ele morrer, na Time, um sítio estranho para um afro-americano que nasceu num bairro de lata e cresceu a trabalhar em campos de algodão e a dormir numa sucata. Mas a Time deixou de ser um sítio estranho para um afro-americano a partir da década de 60: precisamente uma das décadas de que falamos quando falamos dele.
Mais do que uma agenda política (os músicos que estavam com ele lembram-se do efeito devastador que o assassinato de Martin Luther King teve em Isaac Hayes), para ele o black power era uma agenda sexual.
Ontem, quando voltaram a falar dele - já não era notícia desde 2006 (ver caixa) -, os jornais americanos falaram do papel absolutamente decisivo que teve na reconversão da música negra a partir dos estúdios da Stax em Memphis, no Tennessee (onde começou por gravar com Otis Redding).
Mas falam sobretudo daqueles discos em que ele aparecia em tronco nu (Hot Buttered Soul, o álbum de 1969, e Black Moses, de 1971, fixaram a imagem que temos dele: um animal sexual de cabeça rapada, óculos de sol e muito ouro em cima).
A revolução sexual, e particularmente a revolução sexual afro-americana, saiu-lhe do corpo: tinha de ser ele a meter esses grandes maus pensamentos dentro da cabeça da primeira geração de negros que saiu à rua, e com isso saiu do armário, nos EUA. A América não só deixou como ainda lhe deu um Óscar por isso: ainda hoje parece impossível que em 1972 a Academia tenha premiado Theme from Shaft, o refrão que Hayes escreveu para esse blockbuster do blaxploitation ("Who's the black private dick / that's a sex machine to all the chicks?").
Esse homem que mudou a representação dos negros na cultura popular - e que, para não irmos tão longe, mudou a música negra, abrindo caminho a artistas como Barry White, Marvin Gaye, Stevie Wonder ou Curtis Mayfield - morreu anteontem em casa, aos 65 anos. A mulher encontrou-o inconsciente junto a um tapete rolante. Aparentemente, ainda estava a recuperar de um acidente vascular cerebral: a família admitiu que Hayes "não andava lá muito bem". Mas ia gravar mais um álbum para a Stax.

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