Incessante intensa Lira

João Madureira é um compositor do futuro. Não por se dizer de "vanguarda" (coisa que não faz), mas porque a sua música parece falar-nos daquilo que virá. Lira para orquestra, muito bem tocada pela Orquestra Sinfónica Nacional da Ucrânia, é essa música tensa e expectante, que contém uma ânsia de chegar longe. Uma música poética, sugestiva e aberta, que convoca (em três partes) a poesia de Sophia de Mello Breyner, a escrita de Miguel Torga e os enigmas nocturnos de Ana Hatherly ("A lua é uma seta/Tu partiste é o silêncio em forma de lança"). Música instrumental que sugere paisagens, talvez de alguma região gelada da Ucrânia. João Madureira compôs Lira para Orquestra respondendo a uma encomenda do Festival do Estoril e de um banco (o Barclays). Mas a liberdade da sua Lira resiste à marca, ao carimbo do concerto com o mecenato dos banqueiros. O compositor escreveu a pensar naquela orquestra específica, mas não imaginou só gélidas paisagens ucranianas - há calor por exemplo na parte central da peça, homenagem a Miguel Torga, em que a percussão aquece para uma música mais telúrica.
Madureira é também um compositor do passado. Não por ser conservador (coisa que não é), mas porque consegue pegar em ferramentas que vêm de trás, como o "maravilhoso corpo sonoro que é a orquestra sinfónica", como ele escreve no programa. A orquestra da Lira é tradicional, quase a mesma da sinfonia de Tchaikovsky que se ouviu na segunda parte. Os músicos estão nos seus lugares "clássicos", mas o trabalho com este corpo é equilibrado e resolvido de uma forma nova. Esta Lira aponta para uma coisa que não está lá - é qualquer coisa que já partiu ou será que ainda está para vir?
A primeira parte do concerto tinha outro prato forte: ouvir António Rosado ao piano para a Rapsódia sobre um tema de Paganini, de Sergei Rachmaninov. Rosado é um pianista de primeira classe. Foi suficientemente atlético quando era preciso mostrar todo o virtuosismo da peça de Rachmaninov, mas soube brincar com os sons do piano, variar as cores e os modos de tocar (esta Rapsódia é um conjunto de variações). Rosado descobriu acertadas ligações com o som da orquestra, ora fundindo-se com ela, ora destacando-se nas partes a solo com rápidos jogos de dedos (verdadeiramente divertidos para quem ouve) ou bem articuladas linhas do piano em estilo coral nesta Rapsódia difícil, que põe qualquer pianista a suar. Muitos bravos e aplausos dos espectadores para Rosado, bem justos.
Na segunda parte, a 4ª sinfonia de Tchaikovsky. Começou trémula, revelando algumas fragilidades da orquestra. Mas esta redimiu-se depois: foi excelente nos dois últimos deliciosos andamentos graças à boa direcção de Sirenko (também ele suou e não foi pouco) e a alguns preciosos músicos.
Mas guardamos sobretudo na memória a peça de Madureira, a Lira, inquietante poesia musical do presente. Mais do que para Torga, parecia que a homenagem era para Sophia: "Incessante intensa lira vibrava ao lado/ Do desfilar real
dos teus dias."

Pedro Boléo

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