Acordo de troca divide israelitas, que temem um "triunfo do Hezbollah"

A maioria dos analistas fala em vitória do Hezbollah, mas o Governo dificilmente poderia resistir à pressão das famílias e da opinião pública, que aprova o acordo

a O Hezbollah encenou ontem no Líbano, e perante o mundo árabe, uma cerimónia de "humilhação" dos israelitas. Em Israel, condenava-se a "celebração dos assassinos" no Líbano e abria-se um áspero debate, muitos temendo uma derrota política. O Hezbollah entregou de manhã dois caixões negros com os cadáveres de Eldad Regev e Ehud Goldwasser, os militares raptados em 2006. Depois de identificar os corpos, os israelitas libertaram quatro prisioneiros libaneses de 2006 e o mais antigo preso libanês em Israel, Samir Kuntar, condenado a cinco penas de prisão perpétua. Devolveram ainda os caixões de quase 200 libaneses e palestinianos mortos. A decisão do Governo de Ehud Olmert, tomada por larga maioria, é apoiada pela maioria da população, mas criou forte mal-estar, reforçado pelas imagens vindas do Líbano e expresso nos editoriais da imprensa, que falavam maioritariamente num "triunfo do Hezbollah".
Ao fim do dia, Olmert difundiu uma declaração dizendo que a operação resultava da "absoluta obrigação moral" de Israel perante os seus soldados. Quanto ao Líbano, que se preparava para receber Kuntar como um herói, respondeu: "Tenho piedade de um povo que está a celebrar a libertação de um animal que esmagou com uma coronha uma menina de quatro anos". O Presidente Shimon Peres disse o mesmo.
A recuperação dos prisioneiros, vivos ou mortos, é uma tradição israelita, em respeito pelos seus combatentes e famílias. Um exemplo extremo foi o "acordo de Jibril", em 1985, em que Israel trocou 1150 "terroristas" por três soldados israelitas. Tal como está disposto a pagar um elevado preço pela recuperação do aviador Ron Arad, abatido sobre o Líbano em 1986, provavelmente morto. Uma das poucas análises justificativas do Governo titulava: "Um acordo para evitar um novo Ron Arad".
O que marcou a diferença foi a operação de propaganda lançada pelo Hezbollah. Em Naqura, no Sul do Líbano, encenou uma recepção triunfal aos presos, designadamente a Kuntar, erigido em herói da nação árabe. Milicianos do Hezbollah, montados em cavalos engalanados de amarelo (a cor do movimento), tapetes vermelhos no chão e bandeiras gigantes. Um cartaz dizia: "O Líbano derrama lágrimas de alegria, Israel lágrimas de dor". O líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, decretou feriado nacional. A sua televisão, Al-Manar, transmitia as palavras da mãe de um dos presos: "Nasrallah, tu devias ser proclamado rei dos árabes".
O preço político
Para lá da opinião sobre o acordo, os analistas tendem a concordar quanto aos ganhos do Hezbollah: não sai apenas fortalecido, como se lava das suas responsabilidades. Pretende demonstrar que só o rapto de israelitas permite libertar prisioneiros, palestinianos ou libaneses, justificando a acção de Julho de 2006, que então lhe valeu a condenação da maioria dos libaneses. "As assinaturas de Olmert e Peres sobre a troca significam a confirmação oficial da derrota e do fracasso da agressão de Julho [2006] perante a vontade da resistência", declarou Nabil Kaouk, comandante do Hezbollah no Sul do Líbano.
"A troca de prisioneiros dá a Nasrallah uma bandeira para exibir perante o Governo libanês como prova da justeza da via do Hezbollah", conclui, no Ha'aretz, Zvi Barel.
Kuntar "é a cereja no bolo", escreve o analista David Harris no Yedioth Aharonoth. "A popularidade do Hezbollah subiu aos céus entre os libaneses comuns, e não só os xiitas", mostrando que só ele defende o país dos "sionistas" e justificando assim o seu armamento.
Inversamente, argumenta Ronen Hoffman, especialista em estratégia e negociações, é Israel que sai fortalecido. "Paradoxalmente, aquilo que é percebido como fraqueza é a nossa força. Podemos permitir-nos ser vulneráveis, porque isso lembra-nos que somos um povo moral e ético." Idêntica posição subscrevia no Yedioth Uri Misgav: "Dignificou-se o sacrifício dos soldados e das famílias" e "a euforia de Nasrallah não durará muito".
A opinião pública está agora centrada na libertação do cabo Gilad Shalit, ainda vivo e prisioneiro do Hamas. "O preço vai subir", prevê o ministro Zeev Boim, que votou contra o acordo. Em editorial, o Ha'aretz coloca a sua libertação como prioridade absoluta do Governo, o que exigirá outro tipo de "penosas decisões", pois a sua libertação deverá inscrever-se "num processo de paz global".

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