Aniki-Bóbó segue o seu caminho, dançando ao som do violoncelo

A boneca da Loja das Tentações continua a motivar cobiça e disputas, 66 anos após a estreia
do filme de Manoel de Oliveira

a "Aniki-bebé. Aniki-bobó. Passarinho Totó. Berimbau. Cavaquinho. Salomão, Sacristão. Tu és polícia. Tu és ladrão." Esta lengalenga imortalizada pelo filme de Manoel de Oliveira continua a ser cantada nas ruas dos bairros populares do Porto. E ela tanto pode ser ouvida junto das crianças nos seus jogos de rua como junto de dançarinos e cantores rap, em grupos nascidos em associações de moradores, em escolas, em ginásios...Aniki-Bóbó (1942) continua a ser um elo de pertença social, de identificação com uma cidade, que, com o crescimento demográfico, descentralizou os seus núcleos habitacionais. Os Carlitos, Eduarditos, Teresinhas e Pistarins já não se encontram só, nem sequer preferencialmente, nas ruas da Ribeira ou das Fontainhas. Estão agora também nos bairros periféricos, e problemáticos, do Aleixo, do Cerco ou do Lagarteiro.
Foi a estas comunidades habitualmente associadas a situações de exclusão que o Serviço Educativo da Casa da Música foi buscar e mobilizar grande parte da centena e meia de jovens, com idades que vão do mais tenro ensino básico até ao superior, e que hoje, às 21h00, vão concluir o Projecto Aniki-Bóbó com um espectáculo na Sala Suggia, uma homenagem ao realizador no ano do seu centenário.
Paulo Rodrigues, responsável pelo Serviço Educativo, recorda que o recrutamento começou na Ribeira. "Mas rapidamente percebemos que as pessoas foram viver para outros sítios. É no Lagarteiro e no Aleixo, por exemplo, que vemos na actualidade aquilo que a Ribeira era em 1942", diz. E tanto neste lugar como nos outros, o Aniki-Bóbó continua a estar muito presente. "É um fenómeno muito curioso" - diz Tiago Pereira, videasta e o realizador que está a fazer um documentário sobre o projecto, mas também as imagens que vão dialogar com as do filme de Manoel de Oliveira no espectáculo desta noite -, "que é ouvir várias pessoas, avós dos participantes, dizerem que entraram no filme. Percebemos que muitas delas não entraram nada, mas isto significa que elas se apropriaram de Aniki-Bóbó, e que ele faz já parte do seu imaginário, da sua vida".
Para além do filme de Oliveira, o outro elemento aglutinador do espectáculo é o violoncelo, "o instrumento mais rico do mundo", como o classifica o músico, compositor, pedagogo e animador holandês Ernst Reijseger (n. 1954), director artístico do projecto.
Em Fevereiro, a primeira apresentação pública da iniciativa que tinha sido lançada no mês anterior teve como título Ernst Reijseger encontra Aniki-Bóbó pela primeira vez (ver P2 de 23/02/2008). Foi um espectáculo (na Sala 2) ainda um pouco intimista, em que o violoncelista holandês foi acompanhado por um núcleo restrito de jovens estudantes e executantes deste instrumento na ESMAE - Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. Mas já aí havia a rima fundamental com as sequências de Aniki-Bóbó e a sua "actualização" com as crianças e os jovens de hoje, numa banda de imagem montada por Tiago Pereira.
Ernst Reijseger diz que o espectáculo de hoje - que se chamará Aniki-Bóbó Segue o Seu Caminho - terá outra complexidade, já que, ao lado de meia centena de violoncelistas, estarão também em cena quase cem dançarinos que durante estes meses foram dirigidos por António Tavares, coreógrafo, bailarino e percussionista nascido em Cabo Verde e radicado em Portugal há vários anos, onde tem colaborado com nomes como Olga Roriz ou Francisco Camacho.
"Este é um trabalho em progresso, que tem o acento na vertente educativa ", nota Reijseger. "Não será o melhor espectáculo do mundo, mas provaremos, com as imagens, os sons e os movimentos, que o nosso trabalho resultou de um verdadeiro encontro com jovens de disciplinas e proveniências diferentes".
Aniki-Bóbó é um workshop
O P2 acompanhou, no final da tarde de quinta-feira, um ensaio parcelar do projecto, com meia centena de violoncelistas, muitos dos quais eram, ou pareciam, mais pequenos do que os seus instrumentos. Entre eles estavam os pequenos João, de 11 anos, e Sara, de oito. O primeiro começou a estudar violoncelo apenas este ano, na EB 2/3 de Soares dos Reis, no Porto, e acha que ele é "um instrumento bonito e muito especial". Sara frequenta a escola primária dos Carvalhos e estuda há dois anos na escola de música de Perosinho, ambas em Gaia. Diz que gosta do violoncelo porque gosta "das cordas". E percebe-se, sem surpresa, que Aniki-Bóbó, o filme, ainda não entrou no seu imaginário. O pequeno João diz que Aniki-Bóbó "é um workshop em que se trabalha o violoncelo para descobrir novas coisas nele"...
Mas, certamente, algo de diferente vai ficar nas suas memórias depois de se terem cruzado com António Tavares e Ernst Reijseger. Na primeira parte do ensaio, o coreógrafo mostrou-lhes que o violoncelo também serve para outras coisas, para além de tocar. Pode ser abraçado, "como se fosse a coisa mais bonita do mundo", podemos deitarmo-nos com ele, ou mesmo usá-lo como se fosse o nosso cavalinho de madeira.
Divertidas, mas um pouco desconfiadas daquelas "lições de música", as crianças ficaram ainda mais desconcertadas quando viram Ernst entrar na sala a raspar o espigão do seu violoncelo pelo chão, depois a esfregá-lo com a mão cheia de cuspo, a usá-lo como instrumento de percussão ou como aspirador. Mas entraram no jogo, e imitaram o estranho professor. O que as crianças já não ousaram repetir foi a proeza de Ernst de usar o violoncelo como se fosse um equilibrista de circo - como é que eles explicariam aos pais, ao chegar a casa, os estragos que o instrumento poderia sofrer?
Ernst Reijseger explicou, no final do ensaio, que o espectáculo final não terá "estes números de circo". O seu alinhamento incluirá peças suas, entre as quais um arranjo que fez, para violoncelo, da melodia do filme de Manoel de Oliveira. Mas o espectáculo será, sobretudo, um encontro de várias linguagens e expressões artísticas, sempre com o imaginário de Aniki-Bóbó em fundo. Não se estranhará, por exemplo, se aí se vir a coreografia de uma luta de gangs sobre os telhados da Ribeira a disputarem a boneca da Teresinha roubada da Loja das Tentações...
Espera-se que a própria Teresinha, o Carlitos e Manoel de Oliveira assistam a esta celebração do filme que eles fizeram há... 66 anos.

Aniki-Bóbó Segue o Seu Caminho

Direcção musical de Ernst ReijsegerMovimento de António Tavares
Vídeo de Tiago Pereira
PORTO Casa da Música (Sala Suggia)
Tel: 220120200
Hoje, às 21h00.
Bilhetes a cinco euros

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