Manuel Gusmão: “Temos todos um cinema metido na cabeça”

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Manuel Gusmão Nuno Ferreira Santos

O poeta e ensaísta Manuel Gusmão apresentou recentemente na Culturgeste um ciclo de conferências que constituiu um inovador remapeamento da poesia portuguesa contemporânea. Aqui fala da poesia dos outros, mas também da sua, cada vez mais fascinada pelo cinema. E explica porque é que se mantém fiel ao ideário marxista.

Há muito reconhecido como um dos nomes mais importantes do actual ensaísmo literário português, Manuel Gusmão estreou-se como poeta em 1990, com Dois Sóis, A Rosa, a Arquitectura do Mundo, um livro que desde logo o confirmou como uma das vozes mais significativas da nossa lírica contemporânea. Ao longo do mês passado, apresentou, na Culturgest, quatro conferências sobre poesia portuguesa, desde Pessoa até ao presente, que vieram pôr em causa algumas certezas estabelecidas, como, por exemplo, a de que teríamos tido movimentos de genuína ruptura no início dos anos 1960 e na década seguinte. Como poeta, acaba de publicar A Terceira Mão, livro em que, diz, “há uma vontade de imitação” de Carlos de Oliveira, “mas para falhar”.

Foi justamente uma pergunta sobre Carlos de Oliveira que desviou a conversa para o marxismo. Gusmão, ao contrário dos muitos intelectuais que foram abandonando o PCP nos últimos anos, mantém-se no partido e nunca repudiou as suas convicções marxistas. Explica aqui porquê.

Quando e como é que começou a interessar-se pela literatura?
Fiz todo o liceu em Évora. Quando tive de decidir que curso ia seguir, hesitei entre Histórico-Filosóficas e Literaturas Românicas. O meu pai era de Românicas – na altura chamava-se Filologia Românica – e tinha também o curso de bibliotecário. A minha mãe, já depois de casada e com filhos, andava a estudar Histórico-Filosóficas. Acabei por me decidir pela Literatura e foi um pouco a biblioteca do meu pai que me ajudou.


Nasceu, portanto, numa casa com livros?
Com alguns livros, sim. Lembro-me de que já fazia poemas nessa altura. Eram um disparate pegado, mas enfim... depois vim para a Faculdade, em Lisboa, onde me encontrei, no segundo ano, com o Joaquim [Manuel] Magalhães. Éramos amigos próximos. Um ano depois apareceu o João Miguel Fernandes Jorge, que tinha começado o curso em Coimbra. Falávamos entre nós de poesia, e de alguma teoria.

E professores? Algum o marcou especialmente?
O David Mourão-Ferreira, porque tratava o lado técnico da poesia, que era uma coisa que eu ignorava um bocado, e o padre Manuel Antunes, um senhor magrinho, pequenino, com óculos, que, a falar dos gregos, tinha uma força impressionante. Do David, lembro-me das análises a O Sentimento Dum Ocidental, do Cesário. Há um verso que me ficou dessas aulas: “Um parafuso cai nas lajes, às escuras”. É magnífico.


Cesário é ainda hoje uma das suas referências, não é?
Sim. É interessante ver como ele passa através do Pessoa, que foi um dos veículos de transporte do Cesário para o século XX, e vai marcar, tal como o Pessanha, muita da poesia portuguesa posterior.

Nesses anos da Faculdade, quem eram os seus autores?
Era já a poesia. O Sá-Carneiro, que me fascinou em adolescente, e o Pessoa. E depois os novos, que começava a descobrir e a comprar. O primeiro impacte do Herberto Helder, tive-o ainda na Faculdade, em 1963 ou 1964. Um pouco mais tarde começámos também a ligar-nos, através de uns recitais, e ao que viria a ser o Teatro da Faculdade de Letras, e depois a Cornucópia. Quem organizava esses recitais era o Gastão Cruz. Cheguei a escrever uma crítica a um livro dele, O Outro Nome, que nunca foi publicada, mas que mostrei a amigos.
Depois houve ali uns três anos, antes de ser convidado para assistente, em que estive a preparar a tese de licenciatura, sobre os poemas dramáticos do Pessoa, sobretudo o Fausto.

Porquê essa escolha?
Havia muito pouca coisa escrita sobre o Fausto e entretanto era um poema dramático falhado de um poeta que concebera dramaticamente a poesia lírica. Interessava-me estudar as razões desse fracasso e acabei por me aperceber que o que restava do projecto longo do Pessoa era como era não por falta de tempo de escrita ou de vida, mas porque era propriamente impossível. A impossibilidade, o falhanço era estético, filosófico e histórico. E tive de trabalhar com uma edição que não se podia comparar a esta que agora existe, da Teresa Sobral Cunha. Era feita por um senhor que, descobri mais tarde, cortava tudo o que achasse que era pouco “elevado”. Aquilo já era umas ruínas, e o sujeito ainda arruinava mais.

Desculpe o salto abrupto. Acabou de apresentar um ciclo de conferências sobre poesia contemporânea na Culturgest. Uma das ideias que propõe é a de que nem os anos 60 nem os anos 70 trouxeram verdadeiras rupturas à poesia portuguesa da segunda metade do século XX. Um dos motivos para se pensar o contrário terá a ver com a tendência para se resumir as épocas aos autores nelas emergentes? Por exemplo, aquilo a que chamamos poesia de 70 não é algo que está mais presente e disseminado nos anos 80 do que na década anterior?
Quanto a essa ideia devo reconhecer que com variações de formulação ela acompanha de perto uma ideia de Rosa Maria Martelo num livro de ensaios recente, Vidro do mesmo vidro. Se olharmos para os anos 60, vemos que, em 1961, o Sena publica a Poesia I, onde reúne os primeiros livros e escreve aquele prefácio onde fala do “testemunho” como oposto à poética do fingimento, o Nemésio publica a Poesia 1935-1940, acrescentando-lhe um texto importantíssimo, onde diz que vimos todos do romantismo, o Cesariny publica a Poesia 1944-1955; o Carlos de Oliveira, que publicara em 1960 a Cantata, edita uma primeira compilação da sua poesia rescrita em 1962, que é também o ano do Livro Sexto da Sophia. E há ainda o Melo e Castro, com Queda Livre, o M. S. Lourenço, com um livro estranho e interessantíssimo, “o Desequilibrista”, e poetas como o Gastão, a Luiza Neto Jorge e a Fiama. Cada um deles não será, por si, um Herberto Helder ou um Ruy Belo, mas não tinham que ser. E se consentirmos na redução do cânone, afastando dele poetas como estes, qualquer dia estamos só a discutir se é mais importante o Herberto ou o Ruy Belo, uma tendência que, por vezes, já se esboça por aí.

Talvez haja uma tendência para se sobreestimar as obras em que as mudanças mais fortes se cristalizam, em detrimento de poetas nos quais o grau de inovação pode ser menos notório?
Claro. E repare que se o Herberto começa logo em força, o Ruy Belo que é hoje justamente valorizado não é o do início dos anos 60, mas sim o poeta posterior, quando ele evolui para o poema longo.

Parece considerar Herberto Helder e Ruy Belo como os poetas mais solidamente canonizados dos anos 60. Tendo em conta que cada geração reavalia o que a precede, e pensando em algumas linhas dominantes da mais recente poesia portuguesa, interrogo-me se a aura de Ruy Belo não virá a declinar, por uma certa resistência ao seu deliberado excesso de construção formal, e se não assistiremos, em contrapartida, à consagração de poetas que andaram sempre um pouco nas margens do cânone, como Fernando Assis Pacheco?
Creio que o Gustavo Rubim argumentou recentemente que o Assis Pacheco teria antecipado muito do que estaria a ser actualmente o novo. Não creio no entanto que isso possa ameaçar ou ofuscar a força de Ruy Belo.

Em alguns novos poetas também se poderia pensar na presença, mais discreta, de António Osório, e talvez por influência do modo como Joaquim Manuel Magalhães o leu.
Estou de acordo que o Joaquim [Manuel] Magalhães tem muita importância nisso. Ele leu de certa forma alguns poetas, e a imagem que hoje se tem deles passa por essas suas leituras. E digo isto sem o menor ânimo crítico. Não é por acaso que o seu poema Princípio, de que falei nas minhas conferências e que abre o livro Os Dias Pequenos Charcos, vem de um parágrafo de um ensaio sobre o António Osório, que ele publicou em Os Dois Crepúsculos.

Tal como se tentou homogeneizar poetas muito diferentes com o rótulo da Poesia 61, não lhe parece que também a diversidade dos poetas ditos de 70 é igualmente considerável?
O Franco Alexandre, que ainda publicou nos anos 60, o Fernandes Jorge, o Magalhães, o Júdice, são todos muito diferentes entre si, e pretender que estão a aplicar aquela consigna do “voltar ao real” é, pelo menos, um erro de perspectiva, um anacronismo. Não tenho nada contra os anacronismos, se forem produtivos, mas este não me parece sê-lo.

Talvez pela sua colaboração no Cartucho, Franco Alexandre tem sido associado aos outros poetas que participaram nessa edição. No entanto, os seus livros iniciais não terão mais a ver, apesar da presença da tradição anglo-saxónica, com um poeta como Herberto Helder?
A mim, mas pode ser um erro, ele lembra-me o Herberto e o Carlos de Oliveira ao mesmo tempo.

Dois poetas que também parecem ser centrais para si, não só enquanto ensaísta, mas também como poeta?
São poetas que estão quase nos antípodas um do outro, e por isso se torna interessante enlaçá-los. Não é por acaso que se respeitavam bastante, mutuamente. O Carlos de Oliveira publicou sete dos dez poemas da Pastoral numa revista, a Nova, a cuja direcção pertencia o Herberto Helder. E uma das coisas que o Herberto apanhou no ar do tempo, no início dos anos 60, foi a depuração. Na Electronicolírica, de 1964, que hoje se chama A Máquina Lírica, ele submete a uma certa disciplina a tradição surrealista de escrita automática para conseguir formar o poema e conseguir que aquilo não deslasse, nem se torne dessorado. A minha desconfiança em relação ao automatismo, tal como é preconizado pelo Breton, é que se tornaria inevitável que ele trouxesse ao de cima os “clichés” mais profundos, as rotinas da língua, o que não era, claro, o que os surrealistas queriam.

Ainda a propósito de Herberto Helder: Numa das suas conferências mostra, citando passagens, como a Invocação e a Proposição de Os Lusíadas ecoam em O Amor em Visita. Tratando-se de um poema tão conhecido, espantou-me que isso nunca tivesse sido notado. Ou já o tinha sido?
Não sei, acho que não. E eu próprio fiquei muito espantado. Já tinha lido o poema muitas vezes e nunca tinha dado por isso. Recentemente fui levado a essa leitura por declarações do próprio Herberto.

Numa das suas conferências adianta uma espécie de grelha que permite situar os poetas segundo as estratégias discursivas e retóricas que adoptam. Fala de “exuberância discursiva”, “contenção veemente”, “simulação de coloquialidade”, “irrisão e sátira”, ou ainda de “alusão e citação cultas”. O que me parece mais interessante é que este quadro permite re-mapear a poesia recente, aproximando poetas que dificilmente tenderíamos a associar.
Há poetas que vêm de linhagens diferentes, mas que podem dedicar-se, na conjuntura, a um trabalho semelhante. Por exemplo, se têm interesse no verso longo e no poema extenso, usam uma arte da composição que lhes permite manter a exuberância discursiva sem que o poema caia no dessoramento. Outros poetas praticam a depuração veemente, mas fazem-no de forma diferente consoante a tradição de onde vêm, que pode ser, por exemplo, neo-realista ou surrealista. Isto permite-nos perceber o que há de comum entre o Herberto Helder e o Ruy Belo ou a Fiama, evidentemente, sem os homogeneizarmos. Ou entre o Gastão Cruz e a Luiza. Por um lado, poetas que vêm numa mesma tradição diferenciam-se pelas reconfigurações processuais que nelas introduzem; por outro, aqueles que vêm em tradições diferentes põem encontrar-se em certo momento a usarem procedimentos equivalentes.

Terminou as suas conferências com uma espécie de proposta de cânone provisório da poesia mais recente, e fecha essa lista com Manuel de Freitas, que vários críticos têm procurado associar aos poetas dos anos 70, e em particular a Joaquim Manuel Magalhães. Concorda ou acha essa filiação equívoca?
As afinidades que existem são mais com uma interpretação possível do poema “Princípio”, entendido como um programa poético do Joaquim Magalhães em 1981, ou a partir de 1981. Inicialmente, o Magalhães está a reagir a duas coisas, e a uma em sentido muito preciso, que é o império do Herberto Helder. Ele diz, aliás, num texto, que só publicou o seu primeiro livro quando conseguiu esganar em si a presença do Herberto. Haverá talvez primeiras versões dos livros iniciais, onde se notará essa presença, embora muito atenuada. Mas é esta necessidade de se livrar do Herberto Helder que o vai levar a valorizar todos os poetas que podem constituir uma outra tradição, como, por exemplo, o Nemésio, o Cinatti ou o Ruy Belo. Há depois outra linha, que é a recuperação do romantismo, num sentido mais trans-histórico do que periodológico. Isto, nele, tem um lado que eu não partilho, e que se acentua no Manuel de Freitas, que é o de uma certa desconfiança em relação a outras componentes da modernidade estética e mesmo a figuras como Rimbaud ou Mallarmé. No entanto, um e outro, por vias diversas, são formas de o romantismo reentrar em cena, já em plena modernidade pós-baudelairiana. Um dos heróis míticos de Rimbaud era Prometeu, tal como o era de Victor Hugo. Mas a coisa é mais grave e funda. E o Mallarmé tem aquela coisa fabulosa de dizer que a missão verdadeira do poeta é a explicação órfica da terra. É uma coisa fascinante. É um retórico que cumpre a sua missão de defesa da retórica da poesia, como um perfeito terrorista. Mas ambos são também poetas que mostram uma grande ambivalência em relação à modernidade económica e social do capitalismo. Mallarmé critica a cidade como inautêntica e afirma que vive num tempo de interregno para a poesia, mas, ao mesmo tempo, faz dez números de uma revista de moda, os textos, os bonecos, tudo.
A animosidade que pressinto em relação a eles pode dever-se a um certo anti-francesismo, mas também ao facto de tais poetas serem responsabilizados por um lento mas inexorável declínio do lirismo. De vários lados vem hoje a ideia de que eles teriam destruído a acessibilidade da poesia. Não é por acaso que o Joaquim Magalhães aparece a valorizar muito o Wordsworth.

A poesia como “conversa humana”?
Isso. Mas o Magalhães tem uma inventividade prosódica e uma capacidade de indignação e violência contra “o pouco de real” que nos é imposto que nestes poetas mais novos desaparece um pouco.

Não lhe parece que essa violência implica uma certa exterioridade em relação ao real, que em poetas como Manuel de Freitas já não é possível do mesmo modo, não porque apreciem mais esse real, mas por se sentirem tão inelutavelmente parte dele?
O problema é que acham que um poeta tem que ser como o seu tempo, e isso implica adoptar os hábitos mentais e axiológicos dominantes, o que é ou um sarilho ou uma sábia ironia.

Quando publicou os seus dois primeiros livros de poesia, a sua consagração como poeta foi muito rápida. Teve bastantes críticas positivas, e algumas muito veementes. Embora merecidas, não acha que há, ainda assim, um grande salto de qualidade entre essas obras iniciais e Teatros do Tempo, que parece poder funcionar como um poema só?
É verdade que foi talvez o livro em que comecei a aproximar-me da organização evidente de um livro enquanto tal. Por um lado, o Teatros do tempo tem uma estrutura narrativa, entrecortada por canções ou falas de personagens, às quais se vêm juntar citações que perturbam a continuidade e a transparência desse fluxo narrativo. Por outro lado, o poema gera a sua poética e multiplica as figurações do tempo.

Essas citações, que podem vir da literatura, do cinema, ou ter origens mais autobiográficas, atravessam todos os seus livros. Mas neste último, A Terceira Mão, parece ter querido ir mais longe. Na parte dedicada a Carlos de Oliveira, já não se trata de envios ou homenagens. Se a formulação não soasse absurda, diria que quis “voltar a escrever” os poemas de Carlos de Oliveira. Até a mancha gráfica parece deliberadamente próxima da dos seus livros.
Sim, mas voltar a escrever para se ver que a mão é outra. Não é um pastiche. É uma vontade de imitação, mas para falhar. Essa mão mostra-se no falhanço e na diferença. Alguns poemas são quase leituras de poemas de Carlos de Oliveira, outros são a fiação de motivos de Carlos de Oliveira, mas numa outra teia. Aquela série de poemas em prosa sobre dunas – um motivo típico do Carlos de Oliveira – tem a ver com a minha autobiografia, ainda que ficcional. Neste livro pretendi mostrar como citação e poética se podem unir à efabulação autobiográfica e experimentar uma espécie de recomeço impossível da minha poesia.

Outra presença ostensiva nos seus livros é o cinema, quer pela evocação de imagens e diálogos de filmes, quer pela adopção de técnicas de montagem...
Há uma montagem de cenas, que por vezes vêm do cinema, mas que não são são ecfrásticas, no sentido de descreverem um plano cinematográfico. São imagens que funcionam como elementos de cenas verbalmente inventadas. No mesmo poema, posso montar imagens de diferentes filmes e construir um poema que é um outro filme. Interessa-me a relação possível entre a imagem literária e cinematográfica. Não é evidente à partida, mas pode encontrar-se pelo ponto de vista da alucinação. Não enquanto percepção de algo que não está lá, mas como algo que constrói uma presença que não se diria que está lá traduzida. Há um surrealista belga, Paul Nougé, que, a propósito do Magritte, diz que as metáforas são figuras de coisas que o artista quer que existam. Acontece muito na poesia contemporânea. Se pensarmos a que é que aquilo diz respeito, qual é o sentido literal oculto, estragamos tudo, porque não se trata disso. O que interessa é a evidência figural que aquilo constrói, o objecto que passa a existir com aquela criação. A imagem poética pode aproximar-se aqui da cinematográfica, que tem um certo poder de insistir no lado alucinado da imagem. Há uma fulguração, uma evidência do desenho da imagem, que vem da situação típica do cinema, a sala escura, que não é a experiência que tendemos a ter hoje, com os DVD. Mas na sala escura é ainda mais evidente esse fenómeno de intensificação do fulgor da imagem.
Fascina-me esta ideia de que temos todos um cinema metido na cabeça. Um cinema que implica a produção do filme, a câmara que filma, o projector que envia uma torrente de luz para o ecrã, os espectadores que estão entre o projector e o ecrã. Temos isto tudo na cabeça, e quando olhamos para o mundo, tudo isto se põe em movimento, a funcionar. O cinema é a nossa maneira natural de criar imagens sobre o mundo.

Voltando ao Carlos de Oliveira, nas suas conferências diz que ele foi do neo-realismo para outras paragens. Foi mesmo?
Em certo sentido, sim. Noutro, não.

Mesmo na fase final, a poesia do Carlos de Oliveira está cheia de antíteses que se resolvem em sínteses precárias, o que poderia ser visto como uma espécie de transfiguração poética do materialismo dialéctico.
Há mutações que não o afastam da matriz fundamental da sua relação com o marxismo. Essa afinidade está garantida. As formas disso é que são incomparavelmente diferentes.

Tendo em conta o que foram os textos literários que se reclamaram do neo-realismo em Portugal, não há dúvida de que foi para outras paragens. A dúvida é se, do ponto de vista do ideário filosófico subjacente, não acabou por se manter mais fiel do que outros poetas neo-realistas.
Sim, há citações no Finisterra que mais parecem cenas dialogadas de proposições do marxismo.

Por falar em marxismo. Li algumas das coisas que tem escrito em publicações como A Voz do Operário ou O Militante, e parece-me ser alguém que acredita firmemente que o marxismo não é um projecto esgotado, e que pode ainda hoje ser produtivo. Um dos seus argumentos passa pela crítica à ideia de que o que houve de negativo nas práticas históricas concretas fundadas no marxismo estava já geneticamente inscrito nos textos de Marx e Engels.
Não concordo com essa ideia, não.

Mas reconhece que as tentativas de levar o marxismo à prática não acabaram muito bem?
Sim, mas há também experiências ainda em curso.

E qual é a explicação para esses insucessos?
Há circunstâncias várias. Você imagina que é uma questão que não pode ser respondida com meia dúzia de tretas. Como é que hei-de pôr o problema? Espinosa, designadamente na leitura que Deleuze faz dele, põe-se a questão de saber como é possível transformar um colectivo de humanos não num conjunto de escravos, mas numa assembleia de homens livres. Esse é o verdadeiro problema, que está inscrito na história humana e ao qual o marxismo procura decisivamente responder e tornar mesmo na teoria uma questão prática.

Como é que vê o exemplo da União Soviética?
Não há uma continuidade teórica fundada entre os textos e a prática de Lenin e o que foi o partido e o regime nos tempos de Stalin. Como é que isso se compreende? Estava-se a construir o socialismo num país que não era aquele que Marx e Engels tinham previsto – esperavam que fosse a Alemanha, ou outro país com um proletariado industrial mais desenvolvido –, mas isso não me leva a aceitar a tese trotskista da revolução permanente. Se nessa altura não tivessem tomado o poder, o que teria acontecido? Saber se deviam ter tomado o poder em 1917, é uma questão que pode pôr-se. Mas responder “não” seria matar outra vez todos os que tinham morrido por causa disso. Seria como pedir a Marx que tivesse condenado a Comuna de Paris. Marx diz que a Comuna escreveu páginas impressionantes, e que tudo o resto mudou graças àquela tentativa falhada. E talvez não houvesse condições para que pudesse não falhar. Por isso é que foi “um assalto aos céus”.
No congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo, bolchevique, que veio a ser o Partido Comunista o texto que Lenin apresentou, justificando a mudança de nome, dava uma visão da revolução como realização do ideário da Comuna de Paris.
No XIII Congresso do meu Partido sintetizámos a informação disponível e a análise que fizemos da derrota do socialismo na URSS através de um conjunto de 5 causas interdependentes, para além das razões da situação internacional: substituição do poder popular efectivo por um poder político fortemente centralizado e burocratizado, frequentemente repressivo; graves violações do princípio da democracia e da legalidade socialistas; centralização excessiva da propriedade estatal e da planificação da economia, burocratizada e rotineira; a confusão e fusão das estruturas e das funções do partido e do estado; a transformação do marxismo-leninismo em doutrina de estado com uma função de legitimação.
O historiador Roy Medvedev, que foi um dissidente e depois se tornou dirigente do Partido Socialista do Trabalho, explicou a sua dissidência dizendo que era socialista e que o regime não o era. Ele fez um estudo sobre as vítimas da repressão e concluiu que, percentualmente, foram mais os comunistas mortos do que os outros. Se o estudo for sério e rigoroso e assim tiver sido, coisa que eu não tenho meios para avaliar, isso parece indicar que alguém andou ali a matar comunistas. Há países onde os erros foram semelhantes, outros em que não. Mas o facto de ter havido ali um desastre da esperança não nos obriga a pensar que ele era inevitável e que essa inevitabilidade estava em germe na teoria revolucionária.

Se pensarmos quer na URSS, quer, por exemplo, na China maoista, um dos aspectos que parecem mais difíceis de evitar é o de uma certa pressão cultural. O grau de ideologização necessária para levar massas a uma revolução não torna inevitável que, por formas mais ou menos autoritárias, se imponha alguma homogeneização cultural? Apesar de todo o esforço de alfabetização e instrução, não foi isso o que aconteceu na URSS?
Não foi só alfabetização, deu-se a passagem à escrita de povos que não a tinham. E até um determinado momento, a explosão artística é impressionante, com o futurismo, o suprematismo, o construtivismo, etc. Desenvolve-se rapidamente uma discussão que envolve muita gente muito diferente. Se tomarmos o modernismo como um movimento europeu síncrono no tempo, que diz respeito ao primeiro quartel do século XX, ali ele prolonga-se até à terceira década e tem um impacto social incomparável ou é objecto de uma apropriação social intensa. A pergunta é então que necessidade houve de estancar isto? De travar o que se estava a fazer na poesia, no teatro, nas artes plásticas, no cinema? Há uma conversa do Lunacharsky com o Lenin, em que o primeiro lhe diz que está a pensar lançar uma edição de dez mil exemplares do Maiakovski. Lenin diz-lhe que não percebe o Maiakovski e que, pessoalmente, é ainda um adepto do Pushkin. Mas acrescenta que não tem de ter voz nessa matéria e que o seu gosto não é um critério. Tinha sido uma questão de manter essa atitude, mas tudo mudou quando o partido, a reboque das próprias pressões dos campos que se digladiavam no mundo das artes, tomou partido por uns contra outros, sem ser claro que existisse qualquer razão ideológica para ter de o fazer.

No caso português, se nos lembrarmos das polémicas de Cunhal, parece óbvio que ele defendia que a arte deve servir determinados propósitos, e que alimentava um razoável desdém pela criação artística que não os tomasse em consideração.
Conhece intervenções posteriores dele?

Sim, sei que mudou de ideias.
Era um período, o do neo-realismo, em que eles não tinham grandes ligações internacionais e absorviam o pensamento realista mais chão. Mais tarde, Cunhal admitiu que o partido não tem modelos estéticos a propor a um militante que seja simultaneamente um artista. E lendo atentamente esses textos percebe-se que é uma posição estratégica e não uma mera posição táctica.

Quando o questionei sobre as suas convicções marxistas, queria chegar a um texto seu intitulado “Desejo de Futuro”, que saiu no PÚBLICO em Dezembro passado e que originou bastantes referências na blogosfera. A maior parte eram positivas, mas lembro-me de um comentário que, argumentando com a sua utilização de expressões como “terra sem amos”, sugeria que o seu desejo de futuro podia esconder um desejo de passado.
Pois... acho que não é assim, mas essa questão da “terra sem amos” até serve bem para lhe responder. É uma expressão que vem num poema que depois foi musicado e se tornou o hino da Primeira Internacional, e mais tarde o hino do PCUS, e também o do PCP, e mesmo o do PS. Independentemente de tudo o que aconteceu, uma terra sem amos continua a ser um futuro desejável. Eu desejo um futuro sem senhores. Mas é verdade que a minha capacidade para pensar o futuro, por muito aberta e disponível que seja, tem também essa componente de responder a um passado e às vítimas desse passado. Pensemos no texto do Benjamin sobre a História...

O anjo que vê as ruínas amontoadas...
Que vê a catástrofe e que nem tem tempo, sequer, para ajudar os feridos e ressuscitar os mortos, porque é constantemente empurrado pelo progresso em direcção ao futuro. O nosso anjo da História tem sempre de responder por aqueles que morreram lutando por coisas mínimas assim como pela liberdade e pela emancipação, e também pelas vítimas que criámos injustamente . Tem, de certo modo, de redimir o passado. É esse, aliás, um dos gestos do historiador. Saber como é que um possível combateu outro possível, em determinado momento, e venceu ou foi vencido, e o que fez depois dessa vitória ou dessa derrota. Há historiadores que, para compreender o passado – sem manipulação ou revisionismo, que é uma tendência extrema –, têm de o contrastar com o seu presente e com o que imaginam que possam ser os futuros diferentes daquele passado e desse presente. É daqui que resulta a operação historiográfica.

Isso também é uma perspectiva muito benjaminiana da historiografia.
Eu creio que as “Teses sobre o Conceito de História” são a reactualização de princípios marxistas fundamentais, e que o facto de haver ali uma combinação com o messianismo judaico não diminui esse facto. É muito curioso ver como tanta gente se reclama do Benjamin escondendo, ao mesmo tempo, o seu marxismo. Se há evolução em Benjamin, é para se aproximar do marxismo, e não para se despedir dele. Mesmo a questão, tão importante, da “perda da aura” tem uma conotação claramente marxista. Marx fala de “arrancar o halo” ou “a aparência”. São expressões muito próximas.
Voltando ao “desejo de futuro”, a questão é a de saber o que se vai fazer em cada momento, e em particular em sitações em que parece não haver saída. O FMI diz que há sinais de uma crise que pode ser mundial e ter consequências globais. Isto pode surpreender quem não for marxista, mas quem o é sabe que isto anda ser estudado há muitos anos, inclusive por alguns “desgraçados” maxistas norte-americanos que há imensos anos se reúnem numa sala, sozinhos, a estudar estas coisas. Refiro-me, como citação, ao colectivo da “Partisan Revue”.
Como é que estes senhores, que instalaram o seu domínio à escala mundial, se colocaram nesta situação? E o que vai sair daqui? Não é claro que saia coisa boa; mas se não se organizar o protesto, a luta, então é que não haverá saída. A maneira como o capitalismo vai absorver a crise não é garantida. Pode sair daqui um desastre muito grande para muitas pessoas.

O argumento do outro lado é que os modelos alternativos levam inevitavelmente a uma menor produção de riqueza e, por conseguinte, resta menos para redistribuir. E Portugal até nem será dos melhores exemplos, dada a nossa elevada taxa de desigualdade entre pobres e ricos.
A questão é que a burguesia portuguesa não tem um projecto nacional. É uma classe de burocratas, que em alguns casos funcionam como agentes europeus de multinacionais, e noutros casos, como clientes do poder de estado que querem solidamente ao seu serviço. Puxam esta carroça enquanto vão metendo o seu ao bolso, numa apropriação muito privada, e se estão borrifando para o país. Não me disponho muito a deixar que essas boas almas me venham doutrinar, porque nunca resolveram verdadeiramente problema nenhum.
Agora vêm com as alterações ao Código do trabalho, e logo aí se percebe que o Estado é posto ao serviço do poder económico. Ao mesmo tempo que aprovam alterações iníquas, a desvalorização e depreciação do trabalho e a criminalização do protesto confinam com a repressão. Parece aleatória, vista de fora. Uns casos saem nos jornais, outros não. Veja o caso de um moço, delegado sindical, que foi ao programa “Prós e Contras” dizer que não o aumentavam desde 2003 e que tinha salários em atraso. Ele foi ali dizer a verdade, mas a empresa pôs-lhe logo um processo disciplinar. Isto é uma pequeníssima amostra de um problema perigoso. A burguesia portuguesa, quando precisou de assegurar os seus lucros com mais certeza, exigiu um Estado forte. Foi esse o caminho para a ditadura militar e o fascismo. Não estou a dizer que vem aí outra vez, mas o que se passa no mundo do trabalho, em Portugal e em muitos outros países, arrasta consigo um real empobrecimento da democracia.

O argumento ético é que o desejo demasiado veemente de igualdade resulta sempre numa injustiça relativa, porque não premeia o mérito individual. Ainda que, justamente porque as pessoas não são iguais, podem ter de se esforçar mais ou menos para desempenhar trabalho idêntico, o que permitiria argumentar que a tese não igualitarista presume, noutro plano, que as pessoas são iguais.
Uma coisa é a reivindicação de igualdade, outra são as práticas igualitaristas. É evidente que, pelo menos em certos contextos históricos, o igualitarismo é um disparate.

Defende que precisamos de ter um desejo de futuro. Mas põe-se o problema de saber que futuro deseja a generalidade das pessoas. O que é que, de facto, as interessa? Se se espreitar uma estatística dos programas mais vistos na televisão, não lhe parece que temos aí um bom retrato do país?
É um retrato, mas o que interessa é perceber como é que as pessoas são levadas a isso, e porque é que noutras circunstâncias históricas podem preferir outras coisas. Muitas objecções fundam-se em palpites sobre o que é a natureza humana. O humano é sempre uma construção, tem uma historicidade radical, não é algo plenamente inscrito nos genes. Não preciso de pressupor que o homem é naturalmente bom para guardar fidelidade a uma determinada linha de pensamento. Gramsci dizia que é preciso manter uma atitude de pessimismo no intelecto e de optimismo na vontade. Por outro lado, o que me leva a manter certas posições, e desconfio que já não vou mudar, tem a ver com questões básicas, como o fenómeno objectivo da exploração. As sociedades estruturam-se nessa base, mas não é necessário que assim seja. Pode ser de outra maneira. Sabemos que, quando se tentou outra maneira, se impuseram modelos que falharam. Mas só posso fazer a crítica desses modelos até ao fim, e tirar todas as conclusões, se mantiver ao memso tempo a crítica do capitalismo.
Há dez ou quinze anos, quando se discutia no PCP e nas suas margens questões deste tipo, havia camaradas – muitos, se calhar, já não o são – que achavam que os problemas que estávamos a colocar seriam resolvidos pela própria revolução científico-tecnológica, que à medida que o capitalismo integrasse os seus resultados, a duração do trabalho iria encurtar-se e as fronteiras entre classes tenderiam a dissolver-se. A revolução científico-tecnológica teve, de facto, resultados impressionantes. Calcula-se que a quantidade de descobertas científicas dos últimos 30 anos, actualmente aplicadas em processos de produção concretos, é maior do que a de toda a história da ciência, o que é realmente abissal. Mas no que respeita ao horário de trabalho, o que estão a tentar fazer é um regresso à segunda revolução industrial. O argumento de que protegem a livre escolha do trabalhador, já Marx o combateu. O que se anuncia é a precarização de todos os trabalhadores, não apenas dos operários, mas também de trabalhadores altamente qualificados, como, por exemplo, os bolseiros de investigação, que não têm expectativas de vir a conseguir um emprego estável. Tudo parece indicar que o grande objectivo do projecto de Bolonha é criar uma espécie de divisão social e internacional das tarefas, entre os países europeus e as suas universidades, no sentido de formar uma espécie de proletariado intelectual, submetido às mesmas regras do restante proletariado, e uma espécie de elite, formada por algumas grandes escolas nos países europeus mais poderosos, donde sairão os executivos e os quadros superiores das grandes empresas e do aparelho de estado.

Por falar no ensino, o que é que pensa das tentativas que parecem estar a ser feitas para reduzir o peso do texto literário nos programas do secundário.
Penso que existe uma radical desconfiança face ao texto literário por parte dos desenhadores de programas. Há uma vontade de o excluir. Isso começou por se fazer de modo velado, desdobrando-se a disciplina de português em duas, uma onde só se dava a língua e outra, obrigatória apenas para alguns cursos, onde se estudava a literatura. Para muita gente, incluindo professores, o texto literário só atrapalha o ensino da língua materna. É isso que pensam, ainda que não o assumam, porque ficam sempre bem umas bocas sobre o Camões ou o Pessoa em certas cerimónias. Um dos argumentos utilizados é o de que não estaria empiricamente comprovado que o texto literário dê à pessoa faculdades que lhe resolvam os problemas de literacia. Ou seja, não estaria demostrado que um tipo que leia bem poemas e narrativas seja capaz de se desenvencilhar no supermercado. Isto leva-os a pensar que, no limite, o texto literário deveria ser excluído dos programas. Como ainda não têm força para o fazer, avançam por etapas, como essa de separar o ensino da língua e da literatura, que julgo ser um desastre, quer do ponto de vista científico, quer pedagógico. Considerar que a literatura não tem a ver com a língua que as pessoas falam é empurrá-la para o gueto. Por mais estranha que pareça a linguagem de um texto literário, ela está ligada à capacidade de linguagem que todos os humanos têm como característica antropológica. Somos formados, também, pela nossa linguagem.
Muitos defenderam que a literatura era uma formação discursiva específica, que haveria um sistema linguístico e que ela seria um subsistema dele. A partir daqui, seria possível determinar todas as suas características de um ponto de vista linguístico ou formal. É uma tese que passa por Jakobson e outros, e que penso que não se provou. Mas a ideia da função poética da linguagem passou rapidamente para o ensino secundário e os professores andaram a massacrar com ela gerações inteiras. Lembro-me de um professor, num colóquio, se queixar de que os alunos não conseguiam perceber a função poética. E ele achava que isso era mau, que atestava uma diminuição intelectual daquelas crianças. Eu disse-lhe: “Ó fulano, mas olhe que eu também não percebo, e tenho pensado um bocadinho nestas coisas”. Em Portugal, como somos algo provincianos, quando nos chega uma coisa que parece ser a verdade instalada no céu dos conceitos, pumba!, atira-se logo para as crianças, a ver se dá.

Mesmo que os programas fossem melhores, ensinar bem literatura não implica que se goste genuinamente de ler e de transmitir esse gosto?
Esse é outro problema. Pede-se não apenas formação, mas também vocação. Os professores têm de gostar do que estão a fazer, para poderem passar esse gosto. As tentativas que se têm feito para domesticar os textos e aproximá-los dos alunos recorrem a recontextualizações que resultam em absurdos completos. Há um manual em que o poema da Sophia sobre a Camões e a tença é usado para os meninos aprenderem a escrever um requerimento a pedir uma bolsa.

Admitindo que se quer que as crianças ganhem tão cedo quanto possível o gosto da leitura, vê alguma objecção a que se usem traduções de obras estrangeiras?
Não é de facto necessário que só leiam obras portuguesas. Na Faculdade, apoiei a ideia de se criar uma cadeira de obras da literatura mundial, em boas traduções, que na altura não foi por diante.
Um argumento para ponderar a exclusão da literatura é que esta seria demasiado complexa para a cabeça das crianças. Mas há gente das neurociências que insiste que se elas não tiverem esse contacto com a complexidade, então é que nunca mais lá chegam. Proteger da complexidade é terrível, porque os incapacita de aceder a ela. E é um argumento profundamente anti-democrático, porque o que se está a pensar é: “Isto é só para as elites, não é para aqueles meninos”.

Como é que vê o futuro dos estudos literários nas universidades, tendo em conta que a procura deles vem diminuindo muito?
É um drama. A literatura portuguesa safa-se, porque se encosta às africanas e brasileira, mas a francesa, italiana, espanhola, alemã, estão às moscas. E a História e a Filosofia também estão em baixa na bolsa. Na Filosofia, já tentaram diminuir o seu carácter obrigatório, assim como já tentaram reduzir o que é ontologia e ética, deixando ficar a lógica, a pragmática e a retórica da argumentação.

Uma última pergunta para saber o que pensa do actual acordo ortográfico. É a favor, é contra, tanto lhe faz?
Acho que devia haver um acordo, mas não sei se era este. Tenho ouvido discursos que desfraldam demasiado alto a bandeira da língua, quando se trata apenas de mexer na ortografia. Mas não parecem estar a ser levadas em conta as soluções defendidas por Óscar Lopes, numa versão anterior do acordo, que alertava contra a queda das consoantes, que levam a ensurdecer as vogais e fazem com que o português, ouvido de fora, pareça uma coisa sibilante.
Penso que o essencial se joga muito na informática, onde deixará de ser preciso ter correctores ortográficos diferentes para o português europeu e do Brasil. E como os brasileiros estão muito mais avançados do que nós na informática, é claro que vamos ser comidos. Mas os argumentos contra também me parecem demasiado apegados a noções nacionalistas.

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