Gastronomia molecular

Gostava de provar um cristal de vento, um prato abstracto ou um cubo de Rubik feito com lulas e gelatina? Estas e muitas outras ideias saíram da cabeça do francês Hervé This, químico e pioneiro da gastronomia molecular - a ciência que estuda os processos culinários e que grandes chefes no mundo inteiro já aplicam nas suas cozinhas Texto de Ana Gerschenfeld e fotos de Rui Gaudêncio

a Na mesa há tubos de ensaio, um frasco com álcool, um de sumo de fruta, várias taças, duas batedeiras de varas, copos, colheres, uma garrafa de óleo, um jarro de água e um montinho de ovos. Um misto de laboratório de química e de bancada de cozinha.Hervé This parte um ovo, deita a clara numa taça e começa a bater vigorosamente a "mistura de água e proteínas" com as duas batedeiras ("quanto maior o número de varas, melhor"). "Estamos a injectar ar nesta clara de ovo. Vejam que estranho: a clara transforma-se em espuma e passa de amarela a branca". A seguir, junta-lhe óleo ("triglicéridos", precisa), continuando a bater, "para dividir o óleo em finas gotículas". "Agora temos uma emulsão." Verte-a num copo e coloca-a num microondas: "Vamos aquecê-la. Como a água vai ferver, a emulsão vai expandir-se". Mal isso acontece, abre a porta do forno e sacode o copo para retirar o conteúdo: "Agora temos uma pasta sólida de óleo; não sabe a nada, mas para lhe dar sabor, poderíamos ter acrescentado cogumelos ou alho - ou usado azeite em vez de óleo. Chamo a isto um Gibbs, em homenagem ao grande cientista americano."
Foi a primeira das muitas demonstrações que anteontem acompanharam a palestra de duas horas que Hervé This, pioneiro da "gastronomia molecular", deu no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. Há 20 anos, This e Nicholas Kurti (1908-1998), físico de origem húngara que trabalhava em Oxford, baptizaram assim a ciência por detrás dos processos culinários. A abordagem ganhou força no mundo inteiro e produtos químicos como o azoto líquido, a metilcelulose, o alginato ou o ácido tartárico tornaram-se parte do rol de ingredientes que muitos chefes de renome não hesitam hoje em utilizar.
This acha que a sua ciência, ao descobrir novos ingredientes, novos utensílios e novas maneiras de cozinhar, pode contribuir de forma essencial para a arte culinária. Mas faz logo uma ressalva: "Nenhum chefe jamais fará gastronomia molecular na sua cozinha. O que eles fazem é cozinhar!" Ou seja, This faz ciência dura, e a prática culinária que hoje está a difundir-se é uma aplicação dessa ciência dura. Aliás, como dirá This mais tarde ao P2, "eu interesso-me pela química. Os alimentos são produtos químicos complexos e é por isso que são interessantes." Do seu laboratório, cujos efectivos variam entre "cinco a 20 pessoas", já saiu uma tese de doutoramento sobre o caldo de cenoura - e no final do mês, vai sair outra sobre a cor do feijão verde.
A equipa de This dedica-se portanto a analisar os processos culinários pelos métodos da química e da física experimental, tentando perceber o que acontece ao nível molecular quando as pessoas - que tanto podem ser a nossa avó como um grande chefe - cozinham. "É possível descrever a comida na cozinha com fórmulas e operações", salienta This. E um dia - por que não? - vamos poder introduzir num computador a fórmula de um molho, por exemplo, e obter um molho perfeito carregando num botão.
Mas, antes de mais, é preciso separar o trigo do joio nas dicas de cozinha transmitidas ao longo dos séculos. This e a sua equipa recolheram cerca de 25 mil dicas e testaram a sua validade. "Há chefes franceses com três estrelas [nos guias Michelin] que já escreveram que para fazer uma maionese, é preciso que o ovo e o óleo estejam à mesma temperatura", exemplifica. "Ou que, quando se muda o sentido de rotação da batedeira de varas, a maionese não resulta". Ambas estas 'dicas' são falsas. Tão falsas como "a idiotice que consiste em pensar que quando uma mulher tem o período, não podemos fazer maionese ao pé dela".
Comida artificial?
Uma das coisas que This gosta de salientar é a artificialidade da nova culinária. "Carne artificial? Conseguimos criá-la no laboratório em cinco minutos: um aglomerado de tubos cheios de proteína." E já agora, laranjas artificiais, feitas de minúsculos saquinhos de gel cheios de sumo de laranja - e até ovos de peixe falsos. "Odeio produtos naturais!", clama This, tirando prazer da provocação. "Hoje em dia, para além dos peixes, não existem alimentos naturais. E como eles tendem a desaparecer..." O açúcar é o mais artificial que se possa imaginar. Sendo assim, por que não ir mais longe? "A fruta e os legumes artificiais vão provavelmente tornar-se muito importantes no futuro", diz This.
Pode-se objectar que não vale a pena fazer - This prefere a palavra "construir" - uma laranja artificial, visto que já existem laranjas naturais. Mas o investigador tem resposta para tudo: "Quando escolhemos uma laranja, das duas uma, ou é boa ou é má." Ao passo que, quando construímos uma laranja, podemos dar-lhe o sabor que queremos. "Um bom cozinheiro consegue condimentar o sumo de laranja de forma a dar à laranja artificial [o nome é "conglomelo" de laranja] o sabor e a consistência exacta que pretende."
Já agora, This não é apenas um teórico da gastronomia. "Em casa, quem cozinha sou eu", diz ao P2. Porquê? "Porque o resultado é muito melhor!", responde com um amplo sorriso. E é um grande adepto da cozinha a baixa temperatura. "Por exemplo, no supermercado compro carne de vaca a quatro euros o quilo, que normalmente é muito dura. Mas se a cozinhar no forno a 70 graus centígrados durante muito tempo, ela fica tenra e deliciosa." Quanto é muito tempo? "Hoje à noite, quando chegar a casa, vou comer uma carne que esteve a assar durante 72 horas." Uma das preocupações de This é o dinheiro excessivo que todos gastam na cozinha, tanto nos ingredientes utilizados como na energia ("um fogão a gás não faz sentido, perde-se 80 por cento da energia"). A este desperdício, contrapõe métodos mais racionais para obter os mesmos - ou melhores - resultados. O que, numa altura em que o preço dos alimentos está a disparar, pode fazer muito sentido...
Mas não é apenas em família, com a mulher e os dois filhos, que This gosta de pôr à prova a sua visão dos prazeres da mesa. Há vários anos que ele e um dos maiores cozinheiros franceses, Pierre Gagnaire, jogam um singelo jogo. Uma vez por mês, This lança, no site de Gagnaire, em www.pierre-gagnaire.com/francais/cdthis.htm, uma ideia de inovação culinária. Ao desafio, Gagnaire responde, passados uns tempos (por vezes vários meses), com uma ou várias receitas da sua invenção.
Molécula a Molécula
O resultado são coisas como os "cristais de vento", que são uma espécie de suspiros de limão - provavelmente os suspiros mais leves do mundo, uma vez que se baseiam no facto de que, "com apenas uma clara de ovo, é possível obter um metro cúbico de claras em castelo", explica This. Há também vários pratos "abstractos" - ou seja "que não sabem a nada em particular". Ou antes, explica, "que sabem muito bem, mas onde não é possível identificar nenhum dos ingredientes que entraram na sua confecção". "Mantenho esta colaboração", salienta, "porque estou convencido de que quando as pessoas muito ricas começarem a pedir este tipo de comida, todos vão querer."
This diz que não pretende que a cozinha molecular substitua um dia a cozinha tradicional; as duas coisas devem e vão continuar a existir juntas. "O meu sonho é que a cozinha molecular se torne omnipresente, que se junte à cozinha tradicional." Para "depois de amanhã", contudo, o sonho é que a cozinha passe cada vez mais a ser construída "molécula a molécula". "Quando deitamos uma cenoura numa panela, é como se estivéssemos a tocar um acorde no piano, é uma mistura complexa de notas. Eu sonho com uma cozinha construída nota a nota."
Seja por via molecular ou tradicional, cozinhar é sobretudo um acto de amor. "Há três componentes, a técnica, a arte e o amor. Mas a questão fundamental na cozinha é a do amor: como dizer 'amo-te' através da comida? Será que a ciência pode ajudar-nos a dizer 'amo-te'? Não temos aulas de amor nas escolas de química, mas eu defendo que deveríamos ter aulas de amor nas escolas de culinária."
Quem diz mensagem de amor culinária está a falar do prazer que um bom cozinheiro consegue proporcionar aos seus comensais. "É possível determinar a quantidade de amor que existe num prato - e a neurobiologia poderá contribuir para nos esclarecer sobre esta matéria", salienta This. Mas os grandes chefes já sabem isso intuitivamente. Sabem, por exemplo, que quando comemos em grupo, a comida é melhor do que quando comemos sozinhos. E também que, quando se juntam em torno de uma mesa vários inimigos, mesmo a melhor das refeições sabe mal. E que uma refeição não é nunca uma linha recta entre dois pontos, entre o prato cheio e o prato vazio. É uma viagem a um universo de sabores, de temperaturas, de cheiros, de texturas, cheia de desvios e de surpresas. "Como a viagem de Ulisses entre Tróia e Ítaca."

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