O último manifesto Dada

No Dicemmmm\uFFFC
Nature Theater of Oklahoma
Festival Alkantara
Dia 5 de Junho, 20h00
Lisboa, Teatro da Politécnica
Sala Cheia
Até 7 de Março
Se a realidade tantas vezes ultrapassa a ficção, o que é que acontece quando fragmentos do quotidiano são extraídos, gravados e reinterpretados num contexto teatral? A companhia nova-iorquina Nature Theatre of Oklahoma responde com No Dice, espectáculo que utiliza 100 horas de gravações de conversas telefónicas dos membros do grupo e transforma as mais triviais tragédias quotidianas numa auto-paródia (muito séria) das suas próprias vidas. À beira da falência, os profissionais de teatro falam sobre empregos, dinheiro, actores de cinema preferidos e odiados, o dinner-theater, instabilidade e anseios. Num emprego, que não é assim tão mau, quantas pausas se podem fazer sem se ser despedido? Há uma história por contar, mas que histórias são necessárias? Quando se deixam os anti-depressivos, há o álcool, e quando não se bebe, quantas horas de televisão podem interromper o pensamento?
Antes do espectáculo, Pavol Liska e Kelly Cooper, os directores artísticos, fazem sandes aos espectadores, que se sentam a comer e beber. O ambiente descontraído e a cortina de veludo verde já são apontamentos introdutórios às convenções utilizadas \u2013 o teatro amador e o melodrama. Anne Gridley tem uma cabeleira postiça vermelha, calções e meias de renda, Robert M. Johanson traz um chapéu de pirata e caracóis de judeu ortodoxo pendurados num par de óculos, Zacahary Oberzan tem as sobrancelhas pintadas, um bigode postiço (que tende a cair) e um chapéu de cowboy. Eles são os brilhantes actores que fazem de actores-cabotinos, recitando os diálogos com sotaques exagerados, esgares colados ao rosto e figurinos terríveis. Cada um empresta à personagem não mais de três expressões faciais e acrescenta alguns gestos, que se repetem e insurgem, sobrepondo-se às palavras. Se os diálogos que recitam são um ready-made deslocado para o espaço cénico, as composições jogam com procedimentos de colagem e montagem num prodigioso exercício de dadaísmo teatral. Não faltam duas figuras mudas, uma com orelhas de animal e outra com uma peruca branca, que introduzem, pontualmente, músicas inusitadas. Nada se perde, tudo se acrescenta e se transforma ao longo das quatro horas de espectáculo.
Com referência ao burlesco, as convenções hiperbolizadas do melodrama chocam-se e misturam-se num rigoroso trabalho de humor físico, baseado na pesquisa, observação e experimentação. E ao expor as conversas, tão próximas do nonsense literário, e a vida, tão próxima do drama de má qualidade, os actores falam, afinal, sobre qualquer um de nós \u2013 das encruzilhadas, dos pequenos ou grandes desesperos, das insignificâncias insanas e/ou deprimentes. Retiradas as perucas, aproximam-se do público, murmurando um texto em uníssono \u2013 Things are bound to turn around, dizem. Toda a reviravolta é possível, já que o grupo consegue resgatar o banal, transformando-o em arte, e restituir esse universal cosmic murmur, que nos rodeia e do qual fazemos parte, em pura comunicação.

Rita Martins

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