Cenas de luta na classe

Laurent Cantet desafiou professores e alunos a interpretarem professores e alunos, num dos ringues da sociedade actual: a sala de aula. Entre les Murs foi um toque de classe cinematográfica

a É um toque de classe cinematográfica no final da competição da 61ª edição de Cannes: Entre les Murs, de Laurent Cantet. São cenas de luta na classe de uma escola parisiense, num filme que lança os dados de forma desassombrada (afinal, é um dos "temas do dia" a sala de aula) e original. Baseado num livro de François Bégaudeau, antigo futebolista tornado professor que escreveu sobre a sua experiência dentro da sala, isto é, entre les murs, o filme foi trabalhado com verdadeiros alunos e professores, desafiados, durante um processo de ateliers no ano lectivo que precedeu a rodagem, a improvisarem a partir das personagens do livro - o próprio autor veio a ser o intérprete principal do filme, é o professor, alguém que, tal como acontece com os outros intérpretes, está suficientemente perto e suficientemente longe de si próprio.
Cantet (o realizador dos magníficos Recursos Humanos e L"Emploi tu Temps - e do menos necessário Vers le Sud) explicava ontem, em conferência de imprensa, que sempre quis fazer um filme sobre a escola, "o lugar onde se produz ideologia, onde se forma aquilo que vamos ser". Mas tinha consciência da dificuldade, quase intransponível, em fazer-se passar por um rato pesquisador que ali entrasse, invisível, para descodificar os laços que se estabelecem. O livro surgiu-lhe como o testemunho de quem falava com autoridade porque falava de dentro daquelas paredes. E, sobretudo, era escrito por alguém que não alinhava pela definição da escola como "santuário" - se a sociedade não é perfeita a escola também não o é.
Entre les Murs não é, portanto, Être et Avoir (Ser e Ter), o famoso documentário de Nicholas Philibert que projectava a nostalgia de uma escola ideal. Aqui a classe não é um espaço de depuração de desigualdades, é, mas sem paternalismo, uma câmara de eco, um espaço - íamos escrever, e vamos escrever, "natural" - para o conflito. Por causa do sexo e da raça, por causa das desigualdades, da exclusão. E por causa da linguagem e da dificuldade em dominá-la.
Como em A Esquiva, de Abdellatif Kechiche (o filme anterior do realizador de O Segredo de um Cuzcus, neste momento em exibição nas salas portuguesas), o conflito em Entre les Murs é uma luta de palavras e por causa das palavras. Pormenor nada negligenciável: esse conflito é desencadeado por um deslize do professor, alguém que estabelece uma relação directa, inteligente, desafiadora, com os seus alunos. É como se isso, o conflito, fosse inescapável entre aquelas paredes.
Entre outras coisas, Entre les Murs foi o melhor filme francês no concurso.
Wenders vaiado
Antes houve Palermo Shooting, de Wim Wenders, momento de agudo "kitsch" do beato cineasta alemão, de novo à volta das imagens e da sua perda de "essência" - mas é um filme visualmente tão "novo-rico" que se solta um odor de hipocrisia. Foi objecto de vaia monumental, culminar de uma projecção em que as gargalhadas do público dialogaram permanentemente com os diálogos no ecrã.
Pelo contrário, My Magic, de Eric Khoo, cineasta de Singapura, foi um inesperado crowd pleaser no final do concurso. Já o vimos aparecer em listas de favoritos para integrar o Palmarés, que é hoje anunciado.
Khoo, que apareceu há 13 anos na cena internacional com Mee Pok Man e que em 2005 abriu a Quinzena dos Realizadores com Be With Me, contou que a génese de My Magic foi a leitura de A Estrada, do norte-americano Cormac McCarthy. Fê-lo chorar essa história de um homem que protege o seu filho num cenário pós-apocalíptico. Em My Magic o pai é um mágico caído em desgraça, um bom gigante dependente do álcool desde que a mulher o abandonou, e que tenta voltar a ganhar o respeito do filho. É uma história de sacrífício, finalmente. E é uma história de magia - a personagem principal é interpretada por um mágico, Bosco Francis, que faz os seus números para a câmara. "Um vento de frescura", dizem os que ficaram apanhados por My Magic, pela sua fragilidade, simplicidade e ausência de "programa" (é o anti-Wenders). Por ser, basicamente, um melodrama sem truques.

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