Manifesto de Breton atingiu valores surrealistas

Em 1924, Breton quis dotar o surrealismo de um corpo doutrinário e escreveu,
à mão, as vinte páginas do Manifesto Surrealista. Ontem, esse manuscrito
foi vendido em leilão por quase dois milhões de euros

a O manuscrito do Manifesto do Surrealismo, de André Breton, foi ontem vendido num leilão da delegação da Sotheby"s em Paris por 1,917 milhões de euros, ultrapassando largamente as estimativas da leiloeira, que pediu uma licitação mínima de 300 mil euros e previa que o documento pudesse chegar ao meio milhão. Materialmente, o que o comprador - o coleccionador francês Gérard L"héritier, que fundou em Paris um museu privado de cartas e manuscritos - levou para casa foi um conjunto de umas vinte páginas escritas à mão, precedidas por uma folha de título, na qual se lêem, impressas em letras maiúsculas numa etiqueta cor-de-laranja, estas palavras: "André Breton / Manifeste du Surréalisme / Poisson Soluble". Quando começou a escrever o Manifesto, em 1924, Breton pretendia apenas redigir uma introdução ao volume de textos de escrita automática Poisson Soluble, cuja edição estava a preparar, e daí que, no topo deste manuscrito, surja a palavra Prefácio com um risco por cima. Os dois textos acabaram por ser publicados em conjunto, mas com títulos autónomos, em Outubro de 1924, na editora Simon Kra, de Paris. Essa edição original também esteve à venda no leilão da Sotheby"s e foi arrematada por pouco menos de 80 mil euros. Já o principal dos vários manuscritos que Breton deixou de Poisson Soluble - aquele que terá sido usado para a impressão em livro - foi ontem vendido por 917 mil euros. O conjunto dos manuscritos de Breton, que estavam na posse da família da sua primeira mulher, Simone Collinet, renderam mais de três milhões e setecentos mil euros.
Embora pensado como prefácio para uma obra de escrita automática, não houve nada de automático na redacção do Manifesto do Surrealismo. Pelo contrário, sabe-se que o autor trabalhou arduamente o texto ao longo de vários meses. Mas o resultado compensou. Aos 28 anos, Breton tinha elaborado uma nova teoria estética, que ainda hoje influencia criadores das mais diversas disciplinas artísticas, incluindo boa parte dos que dela não se reclamam, e tinha transformado um conjunto de escritores e artistas plásticos que ainda não constituíam propriamente um grupo organizado naquele que foi, provavelmente, o mais fascinante movimento de vanguarda de todo o século XX.
No entanto, talvez tenham sido mais prosaicas as razões que levaram Breton, nesse Verão de 1924, a empenhar-se em dotar o surrealismo de um edifício teórico consistente. O dadaísmo, ao qual Breton estivera ligado e do qual se distanciara, já estava um tanto inactivo em 1924, mas ainda não tinha um sucessor óbvio. Havia um grupo de autores com posições próximas, mas que não era ainda um movimento. E alguns pareciam estar a desertar, fosse para viajarem pelo mundo, como Éluard fez em Março de 1924, ou para assumir, como Aragon, a direcção do Paris-Journal, uma revista literária onde Breton costumava ser bastante mal tratado. Ainda por cima, surgiam ameaças aos próprios direitos de propriedade sobre a palavra "surrealismo", utilizada pela primeira vez em 1917, por Appolinaire. Nesse ano de 1924, o poeta alemão Ivan Goll, radicado em Paris, acabara justamente de criar uma revista intitulada Surréalisme.
Dissidências
Tornava-se urgente clarificar o que Breton e o seu círculo de amigos entendia por "surrealismo". E é isso que Breton faz no Manifesto. Considerando ser "de muito má fé" que lhe contestem o direito de empregar a palavra surrealismo "no sentido muito particular" em que o entende, já que, argumenta, "é claro que antes de nós essa palavra não teve fortuna", Breton propõe-se "definir de uma vez por todas" o que é o surrealismo. E adianta uma definição no estilo da que poderia constar de um dicionário trivial: "Automatismo psíquico puro, através do qual nos propomos exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outro modo, o funcionamente real do pensamento. Ditame do pensamento, na ausência de todo o controlo exercido pela razão, fora de toda a preocupação estética ou moral."
Breton enumera também os que "fizeram prova de surrealismo absoluto", uma lista de uns vinte nomes, que inclui, além dele próprio, Aragon, Desnos, Éluard ou Péret. E admite que talvez devesse acrescentar, a título póstumo, Isidore Ducasse, que passou à posteridade como Conde de Lautréamont.
Esta tendência para ajuizar do surrealismo alheio, que iria ser uma constante em Breton, também implicava apontar quem ele achava que não tinha direito a sê-lo. No seu Segundo Manifesto do Surrealismo, de 1929, tenta purgar o movimento de várias figuras, atacando, entre outros, Robert Desnos e Antonin Artaud.
O movimento não tarda a começar a estilhaçar-se, mais em torno de questões políticas e morais - o autor de L"Amour Fou censurava, por exemplo, a homossexualidade - do que especificamente literárias. De resto, se em alguma coisa estavam todos mais ou menos de acordo era na necessidade de destruir a "literatura", ainda que nunca lhes tenha sido fácil chegar a acordo quanto ao modo de lidar com a paradoxal necessidade de recorrer à literatura para o fazer.
No entanto, a pequena história das dissidências internas acaba por perder relevo perante a duradoura influência do surrealismo. Se não teve consequências práticas tão ostensivas como o célebre Manifesto do Partido Comunista, que Marx e Engels publicaram em 1848, o Manifesto do Surrealismo, à sua maneira, também mudou o mundo. Neste ano em que se comemoram os 40 anos de Maio de 1968, podemos perguntar-nos, por exemplo, se a revolta estudantil de Paris teria sido exactamente a que foi, e se teria adoptado as mesmas precisas palavras de ordem que assumiu, se Breton nunca tivesse escrito o Manifesto do Surrealismo.
E comparar estes dois manifestos não é uma bizarria. Breton aderiu ao Partido Comunista Francês três anos após a publicação do Manifesto do Surrealismo, e se não tardou a romper com o estalinismo - os surrealistas foram dos primeiros a criticar, em França, os crimes dos "Processos de Moscovo" -, nem por isso rejeitou os fundadores do materialismo dialéctico. Em 1935, escreve: "Transformar o mundo, disse Marx, mudar a vida, disse Rimbaud. Estas duas frases têm para nós o mesmo sentido."
Dos muitos manifestos que se lançaram nas primeiras décadas do século XX - o Manifesto Futurista de Marinetti, em 1909, os vários manifestos do dadaísmo, o vorticismo de Wyndham Lewis e Ezra Pound, ou, para citar dois em língua portuguesa, o Manifesto Anti-Dantas, de Almada, e o Manifesto Antropofágico, que o brasileiro Oswald de Andrade publicou em 1928 -, nenhum terá tido tanto impacte, dentro e fora da criação artística, como o Manifesto Surrealista. Breton não ambicionava apenas ser o líder de um movimento literário. Havia nele uma fortíssima dimensão utópica. Queria mudar o mundo. E, mesmo que isso não nos pareça óbvio, em certa medida, mudou-o mesmo.
O que pensaria hoje Breton, um anti-mercantilista radical, que acusou Artaud de escrever para ganhar dinheiro, se soubesse que o seu manuscrito tinha sido vendido por uma pequena fortuna?

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