Nunca entrámos assim em Auschwitz

Três mil pequenos bonecos manipulados dentro de uma miniatura do campo nazi

a Uma multidão de homenzinhos frágeis, de fatos às riscas e rostos angustiados, desloca-se entre barracões cinzentos. Um deles limpa o chão do pátio central, outro recebe uma tigela de sopa aguada. De repente ouve-se um comboio. Mais pessoas, com as mesmas caras angustiadas mas ainda com as suas roupas, descem do comboio, agarrando pela mão crianças. Mudamos de sítio, e o grupo é agora empurrado para um barracão que tem à porta o símbolo de um chuveiro. Despem as roupas e mostram os corpos transparentes. Estão todos juntos, frágeis, os olhos são buracos de medo no rosto, as crianças seguram-se no colo dos pais. Há um barulho, como um assobio. O gás é lançado sobre eles. Kamp - que pode ser visto no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, de hoje até dia 18, integrado no festival FIMFA Lx8 - é uma visita a Auschwitz num teatro de marionetas. Mas, atenção: esta não é uma peça para crianças.
São 3000 bonecos - dos quais, se quisermos fazer uma contagem macabra, 410 são cadáveres. Pairando por cima deles, levando-os de um lado para o outro, obrigando-os a fazer gestos minuciosos (transportar as roupas dos mortos, por exemplo) ou gestos violentos (matar um prisioneiro à pazada) estão os três elementos do grupo de teatro Hotel Modern, as actrizes/realizadoras Pauline Kalker e Arléne Hoornweg, e o artista plástico Herman Helle. Foi Herman quem concebeu os bonecos de cabeças de barro, depois construídos numa maratona com 20 artistas a fazer uma média de 20 bonecos por dia.
"O meu avô morreu em Auschwitz. Para mim era importante conhecer o local onde ele esteve e onde morreu", conta Pauline ao P2, numa conversa telefónica a partir de Roterdão, onde o grupo está baseado desde a sua criação em 1996. Não é uma história nova, mas o grupo achou que "valia a pena contá-la e acrescentar-lhe uma nova perspectiva", usando a técnica que desenvolveram nos seus espectáculos.
Kalker, Hoornweg e Helle movem-se por essa miniatura do campo de extermínio levando nos dedos câmaras que lhes permitem (e aos espectadores) entrar nos sítios, estar nas câmaras de gás, ver os prisioneiros a meter corpos nos fornos crematórios, espreitar para as malinhas deixadas pelos que ali chegaram pensando que ainda iam precisar delas. No ecrã passam essas imagens de um filme que está a ser feito ali, naquele momento.
"É um pouco como sermos deuses", explica Pauline. "Damos vida a casas, cidades, paisagens. Com estes modelos podemos contar histórias de milhares de pessoas e mostrar toda uma cidade criada para matar". Sentem-se actores? "É, de certa forma, como representar", admite. "Temos que nos identificar com os homenzinhos que estamos a mexer. Se estou a manipular um oficial que bate num homem até à morte, tenho que o fazer com ódio, temos que nos encher com as emoções deles". É ser actor com a vantagem de "estarmos livres do nosso corpo", explica. "Com uma marioneta posso ser quem quiser".
Em Kamp, os actores são os nazis e são as vítimas. "Mostramos a vida quotidiana, mas é um quotidiano muito bizarro, claro, porque as pessoas estavam a ser mortas em grandes números". E, apesar de várias pessoas os terem aconselhado a abandonar esse tema, a "não reabrir feridas", a opção dos Hotel Modern foi a de não fugir à realidade. "Mostramos os mortos, as execuções, como comiam, embora não comessem quase nada, como eram obrigados a trabalhar".
A maquete junta dois campos, o de Birkenau e o de Auschwitz, mas o resultado é muito próximo da realidade. De tal maneira que quando o grupo a mostrou a uma sobrevivente do Holocausto, ela apontou para um pavilhão e exclamou: "Era aqui que eu estava". E foram esses mesmos sobreviventes (entre os quais um tio de Pauline), os últimos que ainda têm uma memória do que lá viveram, que os encorajaram a prosseguir o projecto. "Queríamos confrontarmo-nos a nós e ao público com os factos. Não queríamos evitar cenas de matança. Mas criamos alguma distância. Não mostramos sangue nem gritos, e os bonecos são um pouco abstractos. Quisemos mostrar a verdade, mas evitar o sensacionalismo".
Entrarmos em Kamp é vermos Auschwitz pelos olhos de quem lá esteve. É, afirma Pauline, "mais realista do que ir visitar o verdadeiro campo hoje, porque os prisioneiros não estão lá, e muitos barracões foram destruídos". Quando entramos nas câmaras de gás, os rostos são filmados um a um, vulneráveis, aterrorizados. "Naqueles últimos minutos todos sabiam que iam morrer. E muitos morreram anónimos, famílias inteiras desaparecidas, e que hoje são apenas um nome num livro. Foi por isso que quisemos mostrar as expressões dos seus rostos nesse último momento".

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