Torne-se perito

Portugal ainda mantém uma relação especial com o Oriente?

Depende de que Oriente falamos. Há os nichos - Goa, Macau, Timor - a que continuamos afectivamente ligados. E depois há todo o "imenso Oriente" que mal conhecemos

a "Entre gente remota edificaram...". As palavras de Camões lá estão, na parede, incontornáveis. Seria possível fazer em Portugal um Museu do Oriente que não passasse por essa "relação histórica"? Possivelmente não. Afinal, como lembram os textos de apresentação do museu, "Portugal foi o primeiro país da Europa a chegar ao Oriente e o último a sair como potência administrante de territórios" (Macau, 1999). Os mesmos textos fa-lam em "irrevogáveis responsabilidades históricas" e em "imperativo nacional".
Mas será que, hoje, faz sentido con-
tinuar a reivindicar uma relação es-
pecial com o Oriente? "Sentido nenhum", considera António Pinto Ribeiro, que foi director do mestrado de gestão cultural do Instituto Europeu de Macau. "Não sabemos nada do que se passa no Oriente. Na vida quotidiana e nas relações culturais, isso não tem praticamente nenhum significado". Reconhece, contudo, excepções. "As antigas cidades da Índia, onde existe uma relação, sobretudo mítica, com a língua, a cultura e a religião. E o Japão, onde, curiosamente, eles têm uma grande admiração pelo que terá sido a presença portuguesa". Uma admiração que se baseia sobretudo em aspectos históricos, o que não impediu que surgisse recentemente um "fascínio pelo fado".
Paulo Varela Gomes, delegado da Fundação Oriente em Goa, confronta-se todos os dias, de forma directa, com o que ficou dessa "relação histó-
rica". "É uma relação encarada com enorme simpatia por quase toda a gen-
te influente na Índia, com excepção de alguns sectores muito minoritários do extremismo religioso. Historicamente, só o Reino Unido tem laços mais fortes com a Índia". Vantagem que, na sua opinião, poderia ser mais bem aproveitada. "Se as empresas portuguesas pensam que a história não é um valor económico e não com-
preendem o partido que podem tirar disso, então é de lamentar profundamente a sua miopia".
Delírio viajante
Mas se é verdade que "basta falar do nome Portugal para, em toda a parte, se abrirem portas", para manter essas portas abertas é preciso, diz Varela Gomes, "menos paroquialismo portugalete", ou seja, "menos a imagem de que o mundo onde houve portugueses foi feito à imagem e semelhança de Portugal ("oh, as nossas igrejas!", "ah, as nossas casinhas!") e mais a noção de que o Portugal do pas-
sado foi um actor entre vários de um processo histórico que continua a ter vários actores".
É preciso "saber o que pretendemos dizer", resume Joaquim Pais de Brito, director do Museu de Etnologia de Lisboa. Há algo que nos liga ao Oriente, mas "é vago", diz. "Andámos pela China, mas depois, à excepção de Macau, não tivemos mais nada a ver com a China, que é uma coisa imensa. Na Índia também ficámos naqueles pedaços de um país imenso. Há ali povos e línguas que nós nunca tocámos. Há algo de mitificação, e às vezes até um pouco de delírio viajante, nesta maneira de designar o outro". E, acredita, "essa marca do passado continua a ser muito constante, e é muito redutora". Precisamos de encontrar "os instrumentos de abertura, de aventura e de leitura para interrogar a partir de hoje e de lá".
Da sua experiência de director de um museu com "colecções que vêm desse imenso Oriente", Pais de Brito confronta-se com essa questão: "Quando queremos pegar em alguns objectos para mostrar, a pergunta é: "O que queremos dizer, de quem é que estamos a falar?". E esta questão é de uma imensa responsabilidade".
Para os portugueses, a ideia de Oriente é antiga, explica Varela Gomes. "A ideia de Oriente como localização cultural da Ásia, que englobava o Norte de África também, ou seja, o mundo árabe, foi inventada no século XIX. Mas, para os portugueses, é mais antiga. Há uma crónica dos franciscanos do século XVII chamada Conquista Espiritual do Oriente e uma dos jesuítas chamada O Oriente conquistado (para) Jesus Cristo. Com Oriente eles queriam dizer a Ásia". Mas esta Ásia "morreu para a vida e a cultura portuguesa com a ascensão do Brasil, primeiro, e depois da Europa", e o Oriente "que a cultura e a imaginação portuguesa herdaram então, nos séculos XVIII e XIX, foi o Oriente dos europeus do Norte, dos ingleses e franceses, inteiramente imaginário, desligado do real".
A Lisboa "exótica"
E assim chegámos aos dias de hoje, em que "continuamos completamen-
te desligados da Ásia-outra" (aquela em que não reconhecemos os tra-
ços portugueses), apesar de em percentagem de imigrantes asiáticos só sermos ultrapassados na Europa, provavelmente, pela Inglaterra e a Holanda, afirma o delegado da fundação em Goa.
Estamos, actualmente, perante um Oriente "que combina a pujança e o esplendor, com o crescimento da população e as novas energias", descreve Pais de Brito. Um Oriente no qual, defende Pinto Ribeiro, devíamos estar atentos a "nichos culturais, de cosmopolitanismo", que existem por exemplo em Xangai ou em Tóquio, e onde deveríamos fazer um trabalho de difusão da cultura portuguesa.
A Fundação Oriente "sempre teve a preocupação de mostrar o Portugal contemporâneo" na Ásia, afirma João Amorim, que está ligado à instituição há duas décadas, foi delegado em Macau, e é agora o responsável pela programação do novo museu. "Do mesmo modo queremos dar visibilidade ao Japão de hoje, à China de hoje. Não temos uma visão concentrada nos Descobrimentos. Não há nenhuma fixação no passado", garante.
A partir de hoje, o museu passa a ser ponto de passagem obrigatório da nossa visão do Oriente. Já não são apenas as peças do Museu Gulbenkian ou outras nos museus do Estado, diz Varela Gomes (e acrescenta a esta lista de "coisas exóticas" o templo hindu de Lisboa e o "jardim budista" de Joe Berardo). "O Museu do Oriente é a primeira instituição inteiramente dedicada às coisas da Ásia na capital portuguesa desde a Casa da Índia dos séculos XVI a XVIII. As capitais das potências imperais do Norte (Inglaterra, França, Holanda, Alemanha) têm museus, institutos e outras instituições dedicadas à Ásia desde o século XIX. Lisboa não tinha. Agora tem". E isso "não é pequeno acontecimento, historicamente falando".

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