Torne-se perito

A lógica da batata

Perante a escalada nos preços dos cereais, a ONU sugere que o futuro da alimentação mundial está num tubérculo - e designou 2008 como o Ano Internacional da Batata. Portugal já vai lançado: somos o 10º maior consumidor per capita de batata a nível mundial

a A batata já é o terceiro principal alimento da humanidade (os dois primeiros: trigo e arroz). Mas, com o preço dos cereais a subir nos mercados internacionais, as Nações Unidas olham para o tubérculo como o "alimento do futuro". É um futuro para o qual Portugal já parece bem preparado: segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), os portugueses são os décimos maiores consumidores per capita de batata a nível mundial.A FAO (agência das Nações Unidas para a alimentação) organizou em Março uma conferência sobre o futuro da batata. Uma centena de especialistas reunidos em Cuzco, no Peru ("lar" ancestral da batata), notaram que a crescente procura de cereais está a pressionar os seus preços. O aumento da procura está a ser liderado por países em vias de desenvolvimento - especialmente nações como a China e a Índia, cujas populações, à medida que melhoram o seu nível de vida, comem mais e melhor (e, em alguns casos, modificam as suas dietas segundo padrões ocidentais).
A solução para contornar o problema do aumento dos preços dos cereais, considera a FAO, passa por estimular a cultura e o consumo da batata. No ano passado foram produzidos 320 milhões de toneladas de batata em 100 países - um número recorde, mas que mesmo assim a FAO pretende aumentar. Para aumentar a "consciencialização da importância da batata", a ONU designou 2008 como o "ano internacional da batata" (há um site - www.potato2008.org).
Europeus comilões
Porquê a batata? Porque, argumentam os especialistas da FAO, um hectare de batatas produz "o valor alimentar de dois a quatro hectares de cereais"; além disso, tem "o dobro das proteína de um hectare de trigo". Mais: 85 por cento da planta é comestível, contra 50 por cento no caso dos cereais. A batata é também uma planta facilmente adaptável a muitos tipos de solos e climas; e tem um valor nutricional significativo (hidratos de carbono, vitamina C, potássio). A batata é "a bênção de Deus aos pobres", disse ao site da FAO Paul Khurana, director do Centro de Investigação sobre a Batata da Índia.
O tubérculo começou a ser cultivado nos Andes, mas no século XXI ninguém come mais batata que os europeus. Em volume, os maiores consumidores mundiais são os asiáticos (mais de 100 milhões de toneladas por ano); no entanto, cada europeu consome, em média, 96,1 quilos de batata por ano.
A China é actualmente o maior produtor mundial de batata - 72 milhões de toneladas em 2007. O maior produtor per capita é, contudo, a Bielorrússia: 835,6 quilos por habitante.
Os bielorrussos são também, e de muito longe, os campeões mundiais do consumo de batata. Ainda de acordo com os números da ONU, no ano passado cada bielorrusso consumiu em média 338 quilos de batata - o equivalente a quase um quilo por pessoa todos os dias.
Estes números referem-se, contudo, a consumos agregados - consumir não significa necessariamente o mesmo que comer. A batata também pode ser usada para alimentar animais; e, em muitos países da Europa de Leste, produz-se vodka a partir da batata (são precisos perto de cinco quilos de batata para produzir um litro de vodka).
Isso ajudará a explicar que os sete maiores consumidores per capita de batata do mundo sejam todos antigas repúblicas da União Soviética. O oitavo é a Polónia; o nono, o Ruanda; em décimo lugar, então, aparece Portugal. Cada português consome anualmente 118,6 quilos de batatas.
Mais uma vez, consumir pode não ser comer. Segundo os valores mais recentes (para o ano agrícola de 2005/2006) do Instituto Nacional de Estatística (INE), o consumo humano de batata per capita em Portugal atinge os 86,8 quilos. Mesmo isso significa que cada português come, em média, perto de 250 gramas de batata por dia.
Isso são muitas batatas. Mas não foi sempre assim.
Só relativamente tarde na história de Portugal é que a batata aparece. Iberos, celtas, fenícios, romanos, visigodos, árabes, todos a desconheciam. Afonso Henriques e todos os reis da primeira dinastia nunca dela ouviram falar. E, como em Portugal, também no resto da Europa - e em todos os outros continentes, excepto na América Latina - a batata chegou bem tarde.
Os povos que começaram a cultivar e consumir a batata foram andinos - possivelmente dez mil anos antes de Cristo. Cientistas da universidade americana do Wisconsin confirmaram no ano passado, recorrendo a estudos de DNA, que 99 por cento das variedades de batata produzidas hoje em dia descendem de plantas cultivadas no Chile - embora as primeiras variedades fossem provenientes do Peru.
Os primeiros europeus a entrar em contacto com a batata eram conquistadores espanhóis. Em 1537, Jiménez de Quesada escreveu sobre o cultivo do tubérculo na América do Sul. Terá sido contudo só na segunda metade do século XVI que os espanhóis trouxeram a batata para a Europa.
A lepra e os porcos
A início, não teve muito sucesso. "A sua utilização como alimento foi difícil e demorada", disse ao P2 Maria Daniel Vaz de Almeida, presidente do conselho directo da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, "sendo até associada à lepra". O principal aproveitamento que os europeus começaram a dar a batata foi como comida para porcos.
Ainda assim, exploradores, conquistadores e missionários europeus levaram consigo a batata para outros cantos do mundo, contribuindo para a sua universalidade actual. No Velho Continente, as resistências iniciais começaram a ser superadas, e a batata passou a ser plantada especialmente em regiões com solos pobres para cereais.
No final do século XVIII, uma guerra travada entre a Prússia e a Áustria sobre a sucessão na Baviera ficou conhecida como "Kartoffelkrieg" - "guerra da batata" - porque grande parte do conflito decorreu na Boémia (actual República Checa), onde os exércitos de ambas as partes tentavam obter mantimentos. Luís XVI de França mandou cultivar um batatal em Neully; a sua rainha, Maria Antonieta, usou a flor da batateira como enfeite.
Em alguns países europeus, a batata tornou-se um dos alimentos essenciais no século XIX. Um deles era a Irlanda, como mostra a catástrofe de 1846, quando um fungo nocivo chegou às Ilhas Britânicas e destruiu praticamente toda a colheita, provocando uma fome generalizada. A "fome da batata" não se deveu apenas à praga - foi ampliada pelo regime de propriedade agrária e pela indiferença do Governo britânico - mas o nome da batata ficou-lhe associado para a posteridade. Segundo o historiador irlandês Cormac O"Gráda, a fome fez com que a Irlanda perdesse um quarto da sua população entre 1846 e 1852; um milhão de pessoas morreu, outro milhão emigrou numa diáspora dirigida essencialmente aos Estados Unidos.
"Em Portugal, há referências às primeiras plantações nos finais do século XVIII, no Vale do Sado", diz Maria Daniel Vaz de Almeida. "Só em meados do século XIX, com o crescimento demográfico, é que se generaliza a cultura e o uso da batata entre os camponeses. O aparecimento nas mesas abastadas dá-se mais tarde do que nas dos camponeses."
Maria José Azevedo Santos, catedrática da Universidade de Coimbra, confirma que "a introdução da batata foi tardia [em Portugal] em comparação com outros produtos". Mas, ultrapassadas as resistências iniciais, "houve uma adesão muito grande, que teve a ver com o seu baixo custo". Há ainda "outra razão, que é o facto de a batata ser apropriada à pequena agricultura", um dado relevante num país de minifúndios.
Foi contudo no século XX que a batata mais se impôs em Portugal. A disponibilidade da batata para consumo per capita em Portugal disparou mais de 300 por cento ao longo do século passado - muito mais do que qualquer outro alimento.
Quayle e a "potatoe"
Na era moderna, a batata tornou-se um símbolo da globalização. É produzida e comida em todo o mundo; tornou-se o acompanhamento por excelência nos menus das cadeias de fast food. Se os Estados Unidos popularizaram as fries pelo mundo inteiro, a batata também já embaraçou um vice-presidente americano.
Talvez o episódio mais famoso da carreira política de Dan Quayle tenha ocorrido em 1992, quando o então vice de George Bush (pai) visitava uma escola em Trenton (New Jersey) e resolveu corrigir a ortografia de um garoto de 12 anos, William Figueroa, que tinha escrito no quadro a palavra "batata" - em inglês, "potato".
O vice-presidente insistia que a ortografia correcta era "potatoe"; o miúdo teimava que a palavra não tinha nenhum "e" no fim, e tinha razão (em defesa de Quayle, diga-se que na grafia arcaica do inglês, batata escrevia-se de facto "potatoe"). Satirizado impiedosamente pela gaffe, na sua autobiografia, Quayle escreveu que o incidente teve "o pior tipo de simbolismo imaginável" (cinco meses depois do "caso potatoe", Bush e ele foram derrotados em eleições presidenciais por Bill Clinton e Al Gore).
Hoje, a batata é objecto de reflexão científica e política. Há um museu da batata (www.potatomuseum.com); um Parque da Batata (região de 14 mil hectares no Peru dedicada a preservar os modos de vida indígenas); um Centro Internacional da Batata (www.cipotato.org); um Congresso Mundial da Batata (www.potatocongress.org). E, se este é o Ano Internacional da Batata, para 2009 já está agendado a 7ª Convenção Mundial da Batata, na Nova Zelândia.

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