Torne-se perito

Francisco Martins Rodrigues, radical em nome da classe operária (1927-2008)

Fugiu de Peniche com Cunhal, matou um pide, voltou a Peniche, de onde foi o último preso a sair após o 25 de Abril. Foi o pai da extrema-esquerda em Portugal. Rompeu com o PCP em nome do maoísmo. Sempre fiel à pureza do ideal de que cabe à classe operária fazer a revolução para superar o capitalismo

a A música clássica ajudou-o a minorar a tragédia que foi saber que tinha um tumor fulminante no cérebro. Foi-lhe proposto tratamento, que poderia prolongar-lhe a vida em mais um ano. Não aceitou. Francisco Martins Rodrigues morreu, com 80 anos, às duas e meia da manhã de 22 de Abril, o dia em que nasceu Lénine, referência até ao fim e ao qual voltava na busca da "pureza da classe operária".A cremação é hoje às 13h30, no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
Antigo dirigente de topo do PCP, teórico e inspirador dos movimentos maoístas em Portugal, Martins Rodrigues manteve-se até ao fim fiel aos seus ideais e por isso foi um homem de rupturas ideológicas. Procurou sempre o caminho para a revolução e abandonou o estalinismo, o maoísmo e as cedências à pequena burguesia. Firme na defesa de que "o proletariado é a única força que pode intervir numa perspectiva para além do capitalismo", disse ao jornalista galego Carlos Morais, numa entrevista em 2004.
Radical até nos afectos - rompeu com João Pulido Valente quando este foi expulso do PCP(R) após o 25 de Abril de 1974 por ter visitado o amigo Jorge de Brito, um célebre banqueiro, preso durante o PREC -, a sua intransigência levou-o à auto-punição: sabendo que tinha falado na PIDE, em 1966, depois de duas rondas seguidas de sete dias de tortura do sono, nunca mais aceitou lugares de topo.
Nascido em Moura a 14 de Novembro de 1927, Francisco Martins Rodrigues é filho de uma família da pequena burguesia, o pai era oficial do Exército. Ao todo são seis irmãos, quatro rapazes e duas raparigas, que vai perdendo ao longo da vida - o mais novo, o pintor João Rodrigues, suicidou-se. Nos últimos anos vive com o único irmão vivo, de quem cuidava. Foi dura a sua vida familiar. Um neto seu, filho do seu filho mais velho Pedro Rodrigues, morreu queimado em 2001 num acidente num aeroporto dos EUA, onde vivia.
É no final dos anos 1940 que Martins Rodrigues integra o MUD. Aí revela as suas qualidades de activista e organizador. Preso no Aljube em 1950, é libertado em 1951, passa a trabalhar como activista do MUD e ingressa no PCP. É preso mais duas vezes e adopta um nome falso. Em 1953 torna-se funcionário do PCP.
A fuga
Internado num sanatório por influência de um médico do PCP, casa, em 1954, com Maria Fernanda Ferreira Alves; nesse dia passam os dois à clandestinidade. Oficialmente, vão em lua-de-mel para o Porto, mas ficam perto de Lisboa. Francisco e Maria Fernanda têm dois filhos, Pedro e Miguel, e separam-se passados anos por decisão mútua, em parte por ele ter sido preso, em 1966, condenado a prisão maior. Já depois do 25 de Abril, Martins Rodrigues teve uma segunda mulher, Ana Barradas, em casa de quem morreu.
Como clandestino do PCP, é responsável por uma tipografia e é nessa altura, com Joaquim Carreira, que começa a ruptura com o PCP. Estamos em 1955 e Martins Rodrigues critica o XX Congresso do PCUS, cuja orientação estava a ser adoptada pelo PCP, sob influencia de Júlio Fogaça. Em 1957 é preso pela quarta vez, em princípio por denúncia. A sua mulher é presa pouco depois e o segundo filho nasce na cadeia e vive em Caxias até aos dois anos. Proibido de falar no julgamento, é condenado e enviado para Peniche. É ai que é colocado na ala de segurança mor e priva com Álvaro Cunhal, Francisco Miguel e Jaime Serra. Aprofunda as suas críticas e as "cedências do PCP".
Em 1960 integra a "grande fuga" - Cunhal, Guilherme da Costa Carvalho, Francisco Miguel, Joaquim Gomes, Jaime Serra, Pedro Soares, Carlos Costa, Rogério de Carvalho, José Carlos, José Alves, um agente da GNR, e ele próprio. Fica um ano numa vivenda em Carnide responsável por uma tipografia. Uma experiência dura: longe da família, ninguém podia saber que ele ali estava, não podia sequer ir à janela.
Em 1961, integra o Comité Local de Lisboa e é cooptado para o Comité Central do PCP. Após a vaga de prisões na direcção do PCP, é chamado a integrar, com Alexandre Castanheira e Fernando Blanqui Teixeira, a Comissão Executiva do Comité Central do PCP, principal órgão de direcção no interior, acima do qual só havia o Secretariado.
O manifesto
É então que escreve um manifesto contra a guerra colonial que é censurado pela direcção. Cunhal escreve outro em substituição e a clivagem ideológica torna-se explícita. Martins Rodrigues defende uma luta do operariado consequente, ou seja, defende a luta armada. Começa a escrever aos outros membros da Comissão Executiva, exigindo debate sobre a linha do partido. Há uma primeira discussão sobre a China e sobre Portugal. Os outros defendem que primeiro há que conquistar a democracia, ele defende a insurreição armada, contou na entrevista a Carlos Morais.
Em 1963 é chamado a Moscovo por Cunhal para discutir o seu caso. As divergências são insanáveis e a ruptura concretiza-se. Ainda há quem proponha que Martins Rodrigues fique a secretariar Cunhal, mas este recusa. Martins Rodrigues tinha-lhe chamado "oportunista".
Em Outubro de 1963 vai para França. Na mesma época, João Pulido Valente e Rui d"Espiney estão em ruptura com o PCP na Argélia e seguem para Paris. Trocam correspondência. Martins Rodrigues rompe com o PCP, ainda integrando o Comité Central. No quarto deixou papéis e uma máquina de escrever, a célebre máquina de cujo roubo é acusado quando, depois, o PCP o expulsa formalmente. Contra a linha do PCP, teorizada por Cunhal no Rumo à Vitória, escreverá, ainda em 1963, Luta Pacífica e Luta Armada no Nosso Movimento.
Em Paris, em 1964, com Pulido Valente e D"Espiney, funda a Frente de Acção Popular (FAP) e, em Março, o Comité Marxista-Leninista Português (CMLP). Martins Rodrigues visita a Albânia e a China. E, em 1965, vem para Portugal com D"Espiney, Pulido Valente já viera.
A decisão
É em Dezembro, já com Pulido Valente preso, que Martins Rodrigues e D"Espiney decidem matar a tiro um agente da PIDE infiltrado no Comité Marxista-Leninista Português. Há uma onda de prisões e Martins Rodrigues é de novo detido. É então que é submetido à tortura do sono, acabando por falar. É condenado em pena cumulativa (política e penal) de 20 anos. Ruy d"Espiney levou 15 e Pulido Valente 12, apenas por motivos políticos.
Em 1974, Martins Rodrigues é o último a sair de Peniche. Spínola não queria a libertação dos dois presos de sangue. Os presos de extrema-esquerda recusam-se a sair e a libertação de todos é feita apenas a 27 de Abril de 1974.
Neste fase, são inúmeros os grupos ml (de marxista-leninista). Martins Rodrigues está no Comité de Apoio à Reorganização do Partido m-l (CARP-ml). Depois integra a Organização para a Reconstituição do Partido Comunista Marxista-Leninista (ORPC-ml), que resulta da fusão de CCR-ml, URML e CARP-ml) e em 1975, está na fundação da frente União Democrática Popular e do Partido Comunista Português (R), que junta várias organizações.
Só num breve período do início da UDP, Martins Rodrigues aceita integrar o Comité Central.
O fantasma
Viverá angustiado com o estigma de ter falado sob a tortura do sono. Recusa a liderança, o seu lugar natural, mas mantém até ao fim um papel teórico. Mesmo quando isso o isola. É em nome da pureza do papel do operariado que, em 1984, abandona o PCP (R) e a UDP, acusando os outros dirigentes de cedências à pequena burguesia.
Escreve então o livro Anti Dimitrov. 1935-1985 meio século de derrotas da Revolução (1985), onde sistematiza a sua crítica ao marxismo-leninismo e ao maoísmo.
Funda a Política Operária, a sua última revista, que manteve praticamente até à morte.
Com uma lucidez e uma capacidade intelectual que não foi abalada pela idade, Martins Rodrigues está na origem do jornal Mudar de Vida, que faz com José Mário Branco, Manuel Monteiro e Manuel Raposo, e dos Tribunais do Iraque, mas acabou por romper também. Sempre com a coerência de quem considera que o papel do proletariado é insubstituível e que é a ele que cabe a revolução.
Amanhã, no PÚBLICO, o capítulo do livro inédito de José Pacheco Pereira O Um Dividiu-se em Dois. Origens e enquadramento internacional dos movimentos pró-chineses e albaneses nos países ocidentais e em Portugal (1960-1965), onde se relata a reunião em Moscovo na qual se concretizou a cisão entre Francisco Martins Rodrigues e o PCP.

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