Torne-se perito

Spirou Os heróis são eternos

Este septuagenário inteligente e corajoso já podia estar a gozar uma merecida reforma.
Mas o tempo não mata os heróis e por isso ele continua a meter-se em novas aventuras

a Spirou é um paquete de hotel: usa fato vermelho com botões dourados e chapéu redondo. Nas histórias do personagem enquanto pequeno também e o mesmo acontece com o avô... Já é estranho ver tanta gente vestida deste modo na mesma banda desenhada, mas se acrescentarmos que isso é assim há 70 anos, quem não ficará surpreendido?Um herói nestes preparos já podia passar por um anacronismo à data da sua aparição, a 21 de Abril de 1938, na revista que tem o seu nome. Mas hoje que sentido tem um jovem inteligente e corajoso, que vive aventuras contemporâneas, com farda de groom? "Claro que a indumentária de paquete é um absurdo quando se vivem aventuras. Mas o símbolo é assim!", comenta Didier Pasamonik, chefe de redacção do site Actua BD. Laurent Mélikian, crítico da revista L"Écho des Savanes, lembra a "estatura de miúdo" e o fato "um pouco ridículo" de Spirou, que lhe dão "a imagem de uma juventude eterna e impudente, de certo modo um Tintin divertido". O editor francês poderia, muito pragmaticamente, responder com números: cada novidade de Le Petit Spirou, por exemplo, vende 400 mil álbuns e as histórias assinadas por Janry e Tome, dupla que desenvolveu a série nos anos 1980-90, vendem mais de 100 mil cópias.
Sigam-nos até 1938, data do aparecimento de Spirou. A meio da década, que foi palco de sangrentos combates em Espanha e dos horrores da II Guerra Mundial, o francês Robert Velter ganhava a vida como animador a bordo do transatlântico Île-de-France - tinha começado como groom nos navios que faziam as ligações entre a Europa e a América do Norte.
Numa dessas travessias conhece Martin Branner, desenhador e argumentista norte-americano que criou a série Winnie Winkel. Velter mostra-lhe alguns desenhos seus e torna-se assistente do americano. Passa dois anos nos Estados Unidos, mas regressa a França em 1936, onde enceta carreira como autor de bandas desenhadas.
Em 1938 surge a grande oportunidade da sua vida, quando o editor belga Jean Dupuis o desafia a criar um personagem - cujo objectivo era rivalizar com Tintin - para uma revista que estava prestes a lançar. Assim surge Spirou, o jovem herói de cabelo ruivo, fato vermelho com botões dourados e chapéu redondo, em homenagem aos seus tempos de juventude.
Nas décadas seguintes, a série ganha novos e fascinantes personagens - Fantasio (1943, por Jijé), o conde de Champignac, Zantáfio, Seccotine, Zorglub e Marsupilami (1951-52, todos por Franquin) - e é desenvolvida por diversos artistas (além dos já citados, Fournier, Nic-Cauvin, Chaland, Tome-Janry e Munuera-Morvan).
Ao longo das décadas, a série reflecte bem o espírito dos tempos que atravessa, em especial o período do pós-II Guerra Mundial, marcado pelo esforço de industrialização, crescimento económico e construção da sociedade de consumo.
Com a entrada no século XXI, o esforço de renovação da série - nem sempre bem sucedido - não abrandou, passando por uma revitalização gráfica dos personagens e a exploração de áreas temáticas mais próximas do universo de interesses dos novos (e jovens) leitores.
Envelhecer ou não
Os heróis são eternos, como proclama o título da edição francesa do clássico de Joseph Campbell, The Hero with a Thousand Faces? Claro que sim, e basta olhar para Tintin, cujo criador deixou estatuído que nunca mais viveria outras aventuras, livrando-o assim da acção erosiva do tempo e do jugo das leis da biologia. Pode também ser o caso próximo de Astérix, cujo desenhador, Albert Uderzo, já manifestou a vontade de pôr termo às aventuras do pequeno gaulês após a sua morte. Num caso e no outro, não será demasiado arriscado vaticinar que têm pela frente um espaço de reconhecimento e popularidade que, podendo não ser a medida da eternidade, os fará viver no imaginário popular durante longos anos.
Mas será que os heróis se querem sempre jovens? Talvez não. Na Europa, há os que envelhecem, mas teimam em não morrer - um bom exemplo é o tenente Blueberry (criação do argumentista Jean-Michel Charlier e do desenhador Jean Giraud), hoje mais melancólico e contemplativo do que nos bons velhos tempos em que desafiava a hierarquia militar ou passava o tempo a trocar as voltas aos índios. Na América, a solução é mais radical e não oculta o propósito de incrementar as vendas a partir de um relançamento da carreira dos heróis: o Capitão América já morreu por duas vezes para regressar das suas próprias cinzas e o mesmo se passou com Superman, morto em 1992 pelo poderoso e implacável Doomsday e depois trazido de novo à vida.
Mal estão os criadores que não tornarem os seus personagens imunes à acção do envelhecimento e da decrepitude. Um herói quer-se sempre igual a si mesmo, não defraudando as expectativas e os investimentos emocionais que o leitor anónimo faz nele. É o desaparecimento do que há de perene na figura arquetípica do herói - aquilo que permite a actuação do mecanismo de identificação individual ao longo de gerações - , que nenhum leitor perdoará.
A esta luz, não surpreende que Jacques Martin, que já não dá vida às suas criaturas Alix ou Lefranc, tenha passado o testemunho a outros artistas que procuram injectar naqueles heróis o segredo da longevidade. Ou que a morte de Jacobs, Peyo ou Morris tenha acabado por não constituir problema de maior para a existência aventureira de Blake e Mortimer, Schtroumpfs ou Lucky Luke, respectivamente. Depois dos inevitáveis ajustamentos ditados pela mudança de criadores, eles continuam a ser desenvolvidos por novos artistas e a ter a confiança dos leitores, preparados para mil anos de novas aventuras heróicas.
O mesmo se passou, afinal, com Spirou. Será suficiente para que ele possa sobreviver ao século XXI?
"As aventuras de Spirou sempre funcionaram num ambiente contemporâneo mas, de certa forma, simultaneamente intemporal", diz o investigador de BD portuguesa Leonardo de Sá. "Enquanto as Éditions Dupuis o quiserem, as histórias de Spirou e dos seus companheiros continuarão a deliciar pequenos e grandes. Mas parece-me complicado tentar imaginar ou adivinhar quais os ambientes que as suas aventuras nos podem reservar no futuro."
Laurent Mélikian acredita que o herói pode desempenhar hoje o mesmo papel que teve no século passado:
"Spirou é uma testemunha caricatural da sua época. Infelizmente, o escolho que fez também a força de Spirou é Franquin. Ele marcou de tal modo o personagem que foram necessárias várias décadas para fazer o luto. Hoje, qualquer tentativa de modernização está sujeita às críticas violentas dos "guardiões do templo Franquin". Penso que nem ele nem Delporte [antigo chefe de redacção da revista Spirou] desejariam esta situação absurda."

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