Torne-se perito

A primeira biografia de Costa Gomes

É a primeira biografia de longo fôlego de Francisco da Costa Gomes, que foi Presidente da República entre 1974 e 1976. Marechal Costa Gomes, no Centro da Tempestade é uma obra do investigador Luís Nuno Rodrigues, que hoje é lançado, onde se analisa o percurso do militar e do político que foi Presidente da República durante um dos períodos mais conturbados da história recente, o chamado Processo Revolucionário em Curso (PREC)

a Há muitos episódios nesta biografia de quase 400 páginas. Escolhemos quatro, alguns dos quais com novas e polémicas perspectivas dadas pela consulta da documentação norte-americana desclassificada recentemente. Um é descrito pelos vários telegramas trocados entre a embaixada dos Estados Unidos em Lisboa e o Departamento de Estado, como a assistência dos americanos na evacuação dos portugueses em Angola em troca do eventual afastamento do primeiro-ministro Vasco Gonçalves. A mesma correspondência também analisa a possível "chantagem" do PCP junto do Presidente, concluindo a embaixada que esta chantagem é improvável, mas que o único filho de Costa Gomes (que se suicidou mais tarde) era membro da juventude comunista e próximo da família Gonçalves.

Empurrado para Presidente da República30 de Setembro de 1974
No Palácio de Belém ouve-se o estrondo do bater de uma porta e o som de passos firmes e decididos. Na sequência dos dramáticos acontecimentos dos últimos dias, o general António de Spínola apresentara ao Conselho de Estado a sua renúncia ao cargo de Presidente da República. Spínola fora o primeiro Presidente da República após o 25 de Abril, mas nos meses que se seguiram à "revolução dos cravos" as suas relações com os chamados "capitães de Abril" tinham-se deteriorado muito significativamente.
Spínola tentara já, por diversas vezes, chamar a si o controlo político e militar da situação. Procurara dissolver a Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA), onde se agrupavam os oficiais responsáveis pela revolução; depois, tentara reforçar os poderes presidenciais e adiar as eleições para a Assembleia Constituinte, através do chamado "golpe Palma Carlos". Agora, no final de Setembro, os "spinolistas" tinham planeado uma grande manifestação, a ter lugar na cidade de Lisboa. Nesta manifestação, a chamada "maioria silenciosa" deveria demonstrar, de forma inequívoca, o apoio popular ao general. Serviria assim de pretexto para que Spínola conseguisse operar uma mudança significativa no equilíbrio do poder político, dissolvendo a Comissão Coordenadora do MFA, promovendo a demissão do primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, e legitimando o reforço dos poderes do Presidente da República.
A reacção do MFA foi, contudo, decisiva. As unidades militares afectas ao Movimento foram prontamente mobilizadas e as acções programadas por Spínola e seus apoiantes eficazmente anuladas.
O "25 de Abril" estava, de novo, "sobre rodas", como diria o então capitão Vasco Lourenço. Em torno da cidade de Lisboa ergueram-se barricadas populares, procurando evitar a entrada na capital dos eventuais apoiantes de Spínola. No dia 28 de Setembro, o gabinete da Presidência da República, reconhecendo uma primeira derrota, emitiu um comunicado no qual se afirmava que não seria "conveniente" a realização da manifestação. Dois dias depois, Spínola apresentou finalmente a sua demissão numa reunião da Junta de Salvação Nacional com a presença dos membros do Conselho de Estado.
O homem que tinha presidido aos destinos do país por pouco mais de cinco meses abandonou, por conseguinte, a Sala Cor-de-Rosa do Palácio de Belém onde a reunião se realizava. Mas os restantes membros da Junta de Salvação Nacional e do Conselho de Estado mantiveram-se reunidos. O general Francisco da Costa Gomes assumiu a direcção da reunião. Era ele, desde o início, o "número dois" do novo regime, ocupando o cargo de chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. Com ele, nos dias anteriores, já o MFA tinha discutido a eventual sucessão de Spínola e a necessidade de o homem em quem os capitães tinham depositado a sua confiança antes mesmo do 25 de Abril dar um passo em frente e assumir a Presidência da República.
De pronto, Costa Gomes inquiriu os diversos conselheiros de Estado, em especial os de formação jurídica, sobre o procedimento adequado e sobre a necessidade de se substituir de imediato o Presidente da República. Vários conselheiros, entre os quais os professores Ruy Luís Gomes e Diogo Freitas do Amaral, manifestaram-se a favor da escolha imediata de um novo Presidente. Freitas do Amaral considerava a "designação" de um novo Presidente da República como "a primeira prioridade [nesse] momento" para evitar uma "sensação de vazio do poder". Consultadas as leis constitucionais em vigor, concluiu-se que o Presidente da República deveria ser escolhido pela Junta de Salvação Nacional entre os seus membros. Acontece, porém, que na sequência do chamado "28 de Setembro" os oficiais da Comissão Coordenadora do MFA tinham imposto também a demissão de três outros membros deste órgão, para além, evidentemente, de Spínola: Diogo Neto, Silvério Marques e Galvão de Melo. Restavam apenas três membros na Junta de Salvação Nacional: o general Costa Gomes e os almirantes Pinheiro de Azevedo e Rosa Coutinho, encontrando-se este último ausente em Angola, onde presidia à respectiva junta governativa.
Costa Gomes solicitou então que os membros do Conselho de Estado que não faziam parte da junta permanecessem nessa reunião de 30 de Setembro de 1974, colocando logo de seguida uma outra questão: "Pode a escolha do novo Presidente da República ser feita apenas por duas pessoas, em nome de uma junta que por lei tem sete membros?" Pronunciaram-se de novo os juristas membros do Conselho de Estado: "no rigor dos princípios", o novo Presidente da República não podia ser eleito por apenas três membros da junta, pelo que seria necessário cooptar novos elementos para aquele órgão. No entanto, alertou Freitas do Amaral, este processo seria "demasiado longo" e o país não poderia "ficar quatro ou cinco dias à espera de ter um Presidente da República".
O impasse foi resolvido com a intervenção de Isabel Magalhães Colaço, professora da Faculdade de Direito de Lisboa. Na sua opinião, em situações de declarado "estado de necessidade" a "observância de certas formalidades processuais" poderia ser dispensada. Para além disso, a junta dispunha ainda de três membros, o mínimo para o funcionamento de "qualquer órgão colegial". Possuía, por conseguinte, "toda a legitimidade para fazer [naquele] momento a escolha presidencial que lhe [competia], desde que na deliberação [interviessem] os três membros que (...) a [compunham]. Pela sala ouviram-se suspiros de alívio. "Temos o assunto arrumado", exclamou o almirante Pinheiro de Azevedo, "eu cá por mim voto aqui no sr. general Costa Gomes." Contactado telefonicamente, Rosa Coutinho manifestou, desde Luanda, a sua concordância com a escolha (1).
"Foi quase por uma imposição", confessou depois o novo Presidente da República. Os membros do Conselho de Estado não lhe tinham deixado grande margem para escolha: "Sr. general, estamos perante uma situação muito grave que tem de ser resolvida rapidamente. Não podemos estar sem Presidente. A Revolução poderá sofrer graves perturbações, se o lugar não for ocupado imediatamente. E de momento só o sr. general o pode, de facto, ocupar." (2) "Fui empurrado para Presidente da República sem nunca o ter pretendido", afirmou Costa Gomes (3).

Verão quente: calculista e pragmáticoO Verão de 1975 foi um período de ainda maior intensificação das tensões na sociedade portuguesa. Acentuaram-se as divisões em termos político-partidários, opondo sobretudo o PS ao PCP, e também em termos militares, com a definição cada vez mais clara de vários sectores no seio do próprio MFA. Ao longo deste Verão quente, Costa Gomes procurou, acima de tudo, agir como um "conciliador" entre as partes desavindas. Em meados de Abril já afirmava: "É claro que tenho de ser um conciliador, porque eu defendo, apesar de ter comandado, seis anos e meio, tropas em campanha, à outrance, a todo o custo, as soluções pacíficas." (1)
Porém, esta preocupação em conciliar os vários sectores políticos e militares não significava que o Presidente flutuasse ao sabor das circunstâncias, como chegou a ser acusado, ou que, indeciso, fosse um "neutro", sem as suas ideias próprias sobre o futuro de Portugal. Aliás, o próprio Costa Gomes não gostava de ser acusado de "indeciso". Já em 1976, numa entrevista à televisão sueca, o Presidente viria a contestar esta ideia: "O que contesto, e tenho contestado sempre, é que seja uma pessoa indecisa, uma vez que me tenho habituado, desde muito novo, a decidir por mim próprio e às vezes em circunstâncias difíceis. Não se é impunemente seis anos e meio comandante de tropas em campanha e posso, com certo orgulho, dizer que não dei azo a suspeitas de qualquer indecisão minha durante esse longo período em que comandei o maior número de tropas portuguesas que jamais houve em campanha." (2) Na verdade, o comportamento de Costa Gomes justificava-se sobretudo pelo seu modus operandi muito próprio, assim definido pelo então ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos: uma "maneira muito pessoal de encarar e tentar resolver as coisas: recusando-se a encará-las no ponto crítico, deixando-as amadurecer, e indo encará-las mais adiante, em plena fase desinflamatória" (3). Trabalhando de perto com Costa Gomes, enquanto secretário permanente do Conselho da Revolução, o então major Loureiro dos Santos salienta igualmente a "preocupação permanente" de Costa Gomes em "resolver os conflitos pelo recurso à negociação, explorando e apostando nos interesses que aproximavam as diversas partes em confronto e esbatendo os pontos de discordância". Por outro lado, tratava-se de uma personagem dotada de "impressionante calma e frieza, com um puro raciocínio matemático, em ambientes de excitação e caos" (4).
Politicamente, Costa Gomes gostava de se definir, na altura, como "um católico muito progressista", mas não como um "puro marxista" (5). Com base nas suas declarações e nas suas atitudes é fácil concluir que o Presidente da República defendia, por convicção própria, por princípio ideológico, a evolução do país no sentido de uma democracia pluralista de tipo ocidental e nunca no sentido de um regime de partido único ou de ditadura militar. Considerava fundamental, porém, que essa evolução fosse assegurada pela presença devidamente "institucionalizada" do MFA na vida política portuguesa. Ao longo deste período e à medida que as crises se sucediam, Costa Gomes teve como preocupação essencial, em praticamente todas as suas intervenções públicas, tornar clara a sua defesa de um regime pluripartidário para Portugal e a sua oposição a tentativas de hegemonização da vida política portuguesa por um único partido ou sector, afastando-se assim do "puro marxismo" que repudiava. Sempre que se referiu à construção de uma sociedade "socialista" em Portugal - como era típico do vocabulário político da época - Costa Gomes fez questão de acrescentar qualificativos como "democrática", "pluripartidária" ou "pluralista".
No entanto, o posicionamento do Presidente da República ao longo destes meses decisivos para o futuro do país só será compreendido se entendermos que Costa Gomes pautou sempre as suas declarações e a sua actuação por uma conjugação pragmática entre, por um lado, as suas próprias ideias e desejos para o futuro do país e, por outro lado, uma visão "realista", dotada de sensibilidade aguda aos equilíbrios momentâneos do poder político e militar. Com uma "rara capacidade de discernir em qualquer momento qual era a relação de forças", Costa Gomes avaliava permanentemente os equilíbrios existentes e raramente se opunha de forma directa à "força dominante" num determinado período, procurando sempre evitar a escalada no confronto e, em última análise, a guerra civil (6). Por outras palavras, a sua avaliação constante dos equilíbrios políticos e militares, o seu pragmatismo político, a sua natural tendência para "conciliador", levaram-no, muitas vezes, a fazer cedências e a pactuar com quem defendia um futuro diferente do imaginado por si para a sociedade portuguesa. Essa condescendência verificou-se umas vezes apenas ao nível da retórica, outras vezes ao nível das suas atitudes políticas concretas. Nos meses de Verão e Outono de 1975, até ao momento em que, na sua percepção, tanto do ponto de vista militar como civil, o sector "gonçalvista" conotado com o PCP manteve a superioridade ou, pelo menos, a força suficiente para pôr em perigo a paz civil, Costa Gomes evitou o confronto, fez concessões, avançou passo a passo, por vezes deparando com grande exasperação e alguma incompreensão das forças "moderadas", também tanto no plano militar como civil. [...]

Carlucci defende que influência do PCP vem através do filho
9 de Agosto de 1975
Nessa noite, num jantar privado com Carlucci, os dirigentes socialistas Mário Soares e Salgado Zenha afirmaram ter "sérias dúvidas" acerca de Costa Gomes, apesar de deixarem entender que ainda não o tinham posto "completamente de parte". É certo que o Presidente proferia "discursos moderados", mas tinha acabado por apoiar Vasco Gonçalves em vários momentos cruciais, pelo que Soares e Zenha acreditavam na possibilidade de Costa Gomes estar a ser "chantageado" pelo PCP. Consideravam, porém, que os Estados Unidos deveriam continuar a pressionar o Presidente para que este efectivasse as mudanças consideradas necessárias. Carlucci informou-os de que o tinha feito nessa mesma manhã (69). Intrigado com o comportamento de Costa Gomes, o Departamento de Estado perguntava para Lisboa se eram credíveis os relatos segundo os quais o Presidente da República poderia estar a ser chantageado pelo PCP. Que informações teriam os comunistas acerca de Costa Gomes (70)? De acordo com a embaixada norte-americana em Lisboa, existiam dois "relatos" de alguma importância e credibilidade acerca das actividades de Costa Gomes enquanto comandante militar em África. O primeiro dizia respeito ao modo como teria elogiado a actuação dos "Flechas" e solicitado a criação de mais unidades desta força da PIDE/DGS em Angola; o segundo referia que, enquanto esteve em Angola, teria descoberto que um navio holandês se preparava para partir da Europa para Angola transportando armas para o MPLA e ordenado a sua destruição à bomba. Nenhum destes relatos, porém, constituía motivo suficiente para que os comunistas pudessem exercer qualquer tipo de "chantagem" sobre Costa Gomes. Assim, segundo a embaixada, "ao avaliar a enigmática personalidade política de Costa Gomes é necessário ter em conta que ele e Vasco Gonçalves têm uma longa relação de amizade pessoal, que o filho único do Presidente viveu com a família Gonçalves enquanto Costa Gomes esteve ao serviço em África; e que o filho do Presidente e a filha de Gonçalves, segundo se diz, são namorados e, alegadamente, ambos membros do Partido Comunista Português" (71).
O recurso ao argumento da "chantagem" enquanto categoria explicativa, salientava ainda Frank Carlucci, era muito comum em Portugal, sobretudo quando o comportamento de uma personagem se tornava difícil de entender ou quando as suas acções prejudicavam directamente os interesses de um determinado grupo. Muitas vezes era o grupo que se considerava prejudicado que recorria ao argumento da chantagem. Não obstante, era também do conhecimento geral que, após o 25 de Abril, o Partido Comunista Português se tinha conseguido apoderar de ficheiros da antiga PIDE/DGS, podendo existir, por conseguinte, "terreno amplo" para o exercício de chantagens pessoais (72).
Quanto às questões familiares e ao papel do filho do general Costa Gomes, a embaixada norte-americana voltaria, alguns meses mais tarde, ao assunto. Grande parte da capacidade de influência do Partido Comunista Português sobre o Presidente da República era proveniente do seu próprio filho, membro da "juventude comunista" que, inclusivamente, teria já ameaçado com "greve de fome", caso o pai não assumisse uma determinada posição favorável ao PCP (73). A história é confirmada por militantes comunistas da altura que afirmam ter recrutado o filho do general Costa Gomes e, em determinados "momentos críticos", lhe ter transmitido instruções do Partido Comunista Português (74). [...]

Carlucci diz que ajuda chegaria mais rapidamente com
outro Governo
22 de Agosto de 1975
No dia seguinte, Costa Gomes encontrou-se durante 45 minutos com o embaixador norte-americano. Frank Carlucci começou por salientar que Portugal atravessava agora um "momento crucial" e que as decisões fundamentais estavam nas mãos de Costa Gomes. De acordo com os seus discursos, os Estados Unidos entendiam que o Presidente favorecia um regime de "socialismo democrático". Aguardavam, no entanto, indicações concretas de que este era o caminho que o país iria trilhar. Portugal estava, insistiu o embaixador, num "momento de viragem" e era necessário que o Presidente tomasse determinadas "decisões políticas", caso pretendesse alcançar os objectivos que, acreditava Carlucci, ambos partilhavam. Costa Gomes pareceu inclinar a cabeça em sinal de "concordância", embora, acrescentou Carlucci no relato enviado para Washington, "com ele nunca se saiba". A maior surpresa para Carlucci foi quando Costa Gomes lhe afirmou que o Partido Comunista tinha mudado muito e que era indispensável a sua presença continuada no novo Governo em formação. Carlucci argumentou que as mudanças dos comunistas portuguesas eram meramente "tácticas" e que Cunhal nunca o poderia convencer a ele nem ao Governo norte-americano de que seria "uma força a favor da liberdade e da democracia em Portugal". Costa Gomes admitiu que a mudança de Cunhal poderia ser "táctica", mas que, no contexto de então, era necessário que o próximo Governo continuasse a incluir membros do PCP. O partido tinha uma vasta base social de apoio na classe operária da cintura industrial de Lisboa e de Setúbal e, por conseguinte, o seu afastamento do Governo seria sinónimo de "violência, greves e outras tácticas disruptivas", algo que o novo Governo não conseguiria enfrentar. No final da reunião, Costa Gomes disse não ter dúvidas que a "influência comunista" estava a diminuir e que a situação iria melhorar. As Forças Armadas tinham dado um "forte sinal" de que não pretendiam um "Portugal comunista". Nos comentários enviados para Washington, Carlucci considerava as palavras de Costa Gomes acerca do PCP extremamente naïves, mas reconhecia que ele poderia ter razão quando evocava a capacidade de mobilização dos comunistas em Lisboa e em Setúbal (80).
Na altura em que Carlucci insistia junto de Costa Gomes para que este tomasse uma decisão relativamente ao futuro político de Portugal, também o Presidente português tinha um pedido para fazer ao Governo dos Estados Unidos. No encontro acima descrito, Costa Gomes apresentou ao embaixador norte-americano um "pedido formal" de auxílio para o transporte dos cerca de 300 mil portugueses que pretendiam regressar de Angola. Portugal conseguiria apenas transportar um terço destes "refugiados", utilizando três aviões da TAP, mas não dispunha de meios suficientes para criar a verdadeira "ponte aérea" necessária para trazer de volta de Angola os restantes 200 mil portugueses. Costa Gomes pretendia saber se os Estados Unidos estavam dispostos a ajudar Portugal nesta missão. [...]
O embaixador Frank Carlucci decidiu então estabelecer uma ligação muito directa entre o pedido que acabava de receber por parte do Presidente da República e as mudanças políticas que, na opinião dos Estados Unidos, deveriam verificar-se em Portugal. Carlucci começou por dizer que estava particularmente "preocupado" com o facto de o auxílio norte-americano ao transporte dos refugiados angolanos poder ser interpretado como "um apoio a certas facções políticas na presente luta". Costa Gomes disse não entender onde o embaixador queria chegar. Carlucci explicou o melhor que pôde: "O nosso auxílio tinha objectivos humanitários e nós não queríamos que pudesse ser interpretado como uma forma de apoio político a um governo cujos objectivos e orientação política eram a antítese daquilo que os Estados Unidos defendiam." Daí que Carlucci solicitasse que a carta pedindo auxílio fosse oriunda da Presidência da República e não do Governo e ainda que Costa Gomes nomeasse um dos seus ajudantes directos como interlocutor da embaixada (82).
No dia seguinte [23 de Agosto], o major António Caldas [ajudante militar da Presidência da República] encontrou-se com Carlucci para prosseguir as conversações sobre a ponte aérea. O major Caldas começou por dizer que Costa Gomes tinha ficado muito agradado com a resposta positiva dada por Carlucci. Este afirmou que tinha pensado melhor sobre o assunto. Tal como ficara claro na conversa com o Presidente, Carlucci reafirmou que não estava disposto a trabalhar com o Governo de Vasco Gonçalves. Caldas respondeu que o Presidente concordara e que, por essa razão, nomeara Ferreira da Cunha e ele próprio como interlocutores da Presidência junto da embaixada. Carlucci agradeceu os "esforços" da Presidência, mas argumentou: "Numa operação desta magnitude seria certamente mais fácil, se tivéssemos um governo com o qual pudéssemos trabalhar." O "auxílio americano" poderia tornar-se mais fácil, se o "mecanismo de resposta em Portugal envolvesse mais do que o gabinete do Presidente". Carlucci relembrou a António Caldas que este tinha informado a embaixada de que o Presidente tencionava demitir o Governo no dia 25 de Agosto, ou seja, dois dias depois. Apesar de os Estados Unidos tencionarem cumprir o que fora prometido, a verdade é que "a ajuda [norte-americana] certamente chegaria mais rapidamente, se [essa] mudança fosse operada no calendário previsto". O major Caldas disse entender aquilo que Carlucci lhe pretendia transmitir e debruçou-se, de seguida, sobre os aspectos técnicos da ponte aérea. Aquando da sua saída, o embaixador norte-americano fez questão de frisar novamente: "Não estamos a voltar atrás com a nossa promessa, mas a ponte aérea seria muito mais fácil, se tivéssemos um novo governo." O "povo americano" iria entender o envolvimento do seu Governo na ponte aérea como auxílio a um "governo comunista", a não ser que fossem feitas "certas mudanças". O major Caldas prometeu transmitir a mensagem ao Presidente Costa Gomes (83).
[...]
As instruções da Administração norte-americana apenas chegariam a Lisboa no dia 2 de Setembro, ou seja, já depois de ter sido anunciada publicamente a demissão de Vasco Gonçalves do cargo de primeiro-ministro. O embaixador Frank Carlucci era autorizado a informar Costa Gomes que, em resposta ao pedido efectuado e "numa base puramente humanitária", os Estados Unidos iriam providenciar dois aviões por um "período indefinido" para auxiliar na evacuação dos cidadãos portugueses de Angola para Portugal.
Os voos poderiam iniciar-se dentro de três dias. No entanto, uma vez que tinha também sido aventada a possibilidade de Vasco Gonçalves vir a ser nomeado CEMGFA, Carlucci deveria aproveitar a ocasião para avisar o Presidente português de que o "esforço de evacuação" só seria realmente "significativo em termos humanitários", caso existisse em Portugal uma "atmosfera de tranquilidade, cooperação e democracia". Ora, a manutenção de Vasco Gonçalves numa posição-chave da estrutura político-militar portuguesa apenas contribuiria para prolongar a situação que "[estivera] na origem da crise portuguesa das últimas semanas". Por fim, Carlucci era avisado pelo Departamento de Estado que, "dependendo dos acontecimentos", os Estados Unidos poderiam "expandir ou suspender a ponte aérea a qualquer momento".
O Governo americano levaria "seriamente" em consideração a opinião dos "moderados" quanto a este assunto (90). Nesse mesmo dia, Carlucci efectuou a diligência junto de Costa Gomes, transmitindo-lhe as indicações recebidas de Washington. O Presidente manifestou a sua satisfação. Aos seus colaboradores confessaria, porém, que tinha ficado "desapontado" com a "magnitude" da resposta americana (91).

Os títulos são da responsabilidade da redacção

Marechal Costa Gomes,
No Centro da Tempestade
Autor: Luís Nuno Rodrigues
Editora: Esfera dos Livros

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