1939-2008 Pedro Bandeira Freire Ele já não mora no Quarteto

Aos 68 anos, o coração parou o fio da vida do fundador do Quarteto. Foi uma vida intensa, vivida intensamente em múltiplos palcos, para além dos do multiplex que marcou toda uma geração de cinéfilos em Lisboa, e que agora está encerrado. Freire não sobreviveu à morte do seu cinema

a Desta vez, Pedro Bandeira Freire não teve oportunidade de citar Mark Twain: "A notícia da minha morte foi deveras exagerada". Há uma semana, a Lusa noticiara a sua morte, na sequência de um AVC. Mas o desmentido surgiu logo a seguir: afinal, o fundador do Cinema Quarteto tinha sido internado de urgência no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e aí permanecia em coma. Ontem, veio a confirmação oficial da morte. Pedro Bandeira Freire (1939-2008), desta vez, não conseguiu sobreviver ao AVC. O seu corpo está em câmara-ardente na Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), de onde amanhã, pelas 11h00, sairá para o Cemitério dos Olivais, onde será cremado.Ao nome de Pedro Bandeira Freire surge de imediato associado o do Quarteto, o primeiro multiplex existente em Lisboa (junto a Entrecampos), e no país. Mas se Freire teve nesta vertente cinéfila de exibir a principal causa da segunda metade da sua vida, foi também um homem de muitos outros ofícios, sempre com o cinema, o espectáculo e as artes como denominador comum. Foi escritor e livreiro, dramaturgo e actor, argumentista e realizador, jornalista e consultor, crítico e programador. Mas foi, acima de todo, "um homem que tinha uma voracidade enorme de viver", recorda Lauro António, um seu amigo de há muitos anos.
Vizinho do Quarteto e do Café Vává, ali bem perto, o realizador de Manhã Submersa recorda que, quando Pedro Bandeira Freire fundou o Quarteto, ele próprio geria outra sala, o Apollo 70, "numa cumplicidade e competição" que tinham em comum "a mesma paixão pelo cinema". Com Lauro António, Freire viria também a ter uma das suas aventuras no grande ecrã, fazendo de rei em A Bela e a Rosa (1984), adaptação duma versão popular portuguesa de A Bela e o Monstro - um ano antes, tinha feito também uma figuração, sentado numa mesa do Vává, na curta-metragem Paisagem Sem Barcos, outro filme de Lauro António para a série televisiva Histórias de Mulheres.
Ainda no cinema, Freire foi actor em Crónica dos Bons Malandros (1984), de Fernando Lopes, e argumentista de Balada da Praia dos Cães (1987), de José Fonseca e Costa. Antes, tinha também experimentado a realização, com a curta-metragem Os Lobos (1978).
Referindo-se à faceta multifacetada da sua vida, António-Pedro Vasconcelos acha que Pedro Bandeira Ferie foi "um exemplo típico do português que fica aquém daquilo que podia ter sido e de ter feito", em virtude da "pequenez do nosso país, que puxa sempre para baixo". O realizador de Call Girl diz também que lamenta não ter podido contar com ele como actor num filme seu. "Pensei muitas vezes em convidá-lo; ele tinha boa cara, e era um homem muito divertido, mas a oportunidade não surgiu", refere António-Pedro Vasconcelos, chocado com a notícia da sua morte. "Ainda na semana passada estive sentado a seu lado, numa sessão na SPA, onde ele fez uma intervenção muito divertida e muito justa."
A importância do Quarteto
Para o autor de O Lugar do Morto, o Quarteto fica, assim, como "a principal realização" da vida de Pedro Bandeira Freire, uma sala que viria a marcar a vida cinéfila de toda uma geração.
Freire idealizou o projecto do multiplex antes do 25 de Abril de 1974, "ainda no tempo da outra Senhora", como gostava de recordar. Mas foi só depois de Abril que foram criadas as condições para a sua abertura. A inauguração fez-se já no ocaso do Verão Quente de 1975, a 21 de Novembro, quatro dias antes do movimento político-militar que viria a instaurar a democracia no país, depois da Revolução dos Cravos - curiosamente, num dos cartazes mais conhecidos do 25 de Abril, a criança que coloca um cravo no cano de uma G3 segurada por um militar é o seu filho Diogo, um dos dois que Freire chegou a dizer que tinha - o Quarteto era o segundo.
Foi nesse complexo de quatro salas-estúdio que toda uma geração viveu intensamente a arte do cinema, e a emergência dos novos realizadores que começavam a marcar uma nova era, depois do fim do cinema clássico americano, e quando a verdadeira dimensão dos cinemas novos podia finalmente ser desvendada em Portugal.
Pedro Bandeira Freire orgulhava-se de ter revelado no país a importância de autores como Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, Rainer Werner Fassbinder, ou Martin Scorsese, de quem estreou no Quarteto Taxi Driver (1976), que lhe tinha sido apresentado na distribuidora como "um filme de um "gajo" que andava de táxi em Nova Iorque", contou ele ao PÚBLICO, aquando do 30.º aniversário do multiplex.
Mas o Quarteto não foi só templo do cinema. Freire também o tornou palco de outra arte que o apaixonava, o teatro. Carlos Avillez encenou aí, na viragem das décadas de 1970-80, uma versão de Jack, o Estripador, de Isabelle Huppert, com Zita Duarte e Ana Zanatti. "Foi um mês de lotações esgotadas, sempre à meia-noite, porque ele era um homem que cultivava a noite", recorda o encenador, para quem Freire traduziu também uma peça de Jean Genet, Alta Vigilância, levada à cena no Teatro Experimental de Cascais.
Raul Solnado, que privou com Freire quando ele escreveu textos para o concurso da RTP A Visita da Cornélia (1977), recordou-o, à Lusa, como "um homem muito doce e amável, que escreveu excelentes peças de teatro com alguma complexidade". Entre as peças de que foi autor, contam-se Teatro Nome de Jogo, Todo um Elenco, Amor Próprio (esta com Orlando Neves).
Perda de entusiasmo
Carlos Avillez, como outros amigos de Freire, admitem que o seu coração tenha agora sucumbido também ao "desgosto" resultante do encerramento do Quarteto, em Março. Numa vistoria feita em Novembro de 2007, a Inspecção-Geral das Actividades Culturais detectou lacunas estruturais - falta de saídas de emergência, de extintores de incêndio e de acesso para deficientes -, e mandou fechar a sala. O próprio Pedro Bandeira Freire, que na altura tinha a sala alugada a um cineclube, admitiu as falhas. "Mas não tenho dinheiro para reabrir e o meu entusiasmo para lutar por um cinema marginal, que não é visto, já não está disponível", dizia há pouco tempo o exibidor, que decidiu mesmo entregar as chaves ao município. O gesto mobilizou a cidade, e a Câmara de Lisboa admitiu então classificar o Quarteto como "espaço de interesse cultural".
Paulo Portas, reconhecido cinéfilo, era um dos frequentadores do Quarteto, e chegou a escrever um artigo a lamentar a situação da sala, apesar de reconhecer os seus problemas. "Era um lugar de culto para a cidade, que com o tempo se veio a degradar, mas faz falta, porque passava cinema que já não podemos ver noutro lado", diz o líder do PP ao P2. Sobre Pedro Bandeira Freire, Portas acrescenta que o conhecia apenas dos intervalos das sessões. "Encontrávamo-nos quando eu ia lá, e ficávamos a falar dos filmes."
E Pedro Bandeira Freire, frequente frequentador dos festivais em todo o mundo - chegou a ser jurado no de Berlim --, gostava mesmo muito de falar de filmes, dos quais ele dizia: "Há filmes bons e maus; os bons são os melhores".
(Um)a história da sua vida pode ser lida nas suas memórias, Entrefitas e Entretelas (ed. Guerra e Paz).

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