O menino da bolha

A precariedade tornou-se no novo bode expiatório

O menino da bolha existiu. Chamava-se David Vetter e nasceu em 1971 com uma doença imunológica rara que levou a que fosse criado dentro duma bolha que o protegia das infecções. Nesse ambiente de total assepsia Davidd Vetter passou de milagre da ciência a drama ético, pois nunca surgiu a cura que os médicos tinham prometido aos seus pais aquando do seu nascimento. E assim o mesmo mundo que, nos anos 70, se comovera com o bebé gatinhando feliz na sua bolha, calava-se embaraçado, nos anos 80, perante a criança quase adolescente, prisioneira perpétua daquela cadeia transparente. David Vetter morreu em 1984 e, se é que isso serve de consolo a alguém, acredita-se que os tratamentos a que foi sujeito na sua curta e penosa vida terão servido para que a técnica dos transplantes de medula se vulgarizasse. A bolha de David Vetter não morreu com ele e é hoje a grande tentação metafórica das nossas vidas. Em plena globalização sonha-se em fechar a porta ao mundo e fazem-se discursos sobre aquele maravilhoso tempo em que algures, na Roménia, não abriam fábricas que justificassem o fecho da Delphi em Portugal e em que, para proteger a indústria nacional da concorrência externa, se faziam decretos como o n.º 27868, de Julho de 1937, que obrigava os portugueses a usarem o teclado HCESAR que fez a fortuna das máquinas de escrever Messa.
Hoje ninguém usa máquinas de escrever e a Messa faliu como era inevitável. Curiosamente o edifício da fábrica lá está, em Mem Martins, e nas últimas eleições autárquicas os diversos candidatos à autarquia de Sintra concordaram que no edifício da velha fábrica deveria vir a funcionar um espaço cultural. Sonhavam os candidatos provavelmente que a cultura, à semelhança do teclado HCESAR, se impõe por decreto e muito investimento público. Fazer deste país uma bolha de Vetter que enquanto o mundo descobria os computadores se obstinava em salvar a Messa mais o teclado HCESAR é um apelo irresistível para os mesmos líderes que são incapazes de explicar por que falham no exercício dos seus poderes, aqueles poderes que, em prol da democracia, nunca devem alienar mas dos quais desistiram. Por exemplo, como explicar que a justiça portuguesa tenha demorado aproximadamente duas décadas a resolver o processo de falência da Messa, exactamente a mesma Messa que foram tão lestos a proteger e dessa forma condenar a não evoluir?
É importante recordar agora a história da Messa num momento em que, num dia, o BE reivindica uma ASAE para "os recibos verdes" e no outro o Governo fala de criminalização dos "falsos recibos verdes". A precariedade tornou-se no novo bode expiatório. Curiosamente só se pode falar da precariedade que convém ou seja, aquela que vai fazer saltar a tal "ASAE dos recibos verdes" e que há-de domesticar os "empresários de vão de escada". Esses mesmos tão ridicularizados por quem, como a maior parte dos nossos deputados e ministros, não só nunca fez empresa alguma como não raramente acaba a ser convidado para dirigir exactamente aquelas empresas que saíram do vão de escada e interiorizaram que vivem no país que fez um decreto para impor o teclado HCESAR.
Muita da legislação que alegadamente visa proteger os trabalhadores só será exequível aumentando o policiamento da actividade económica duma forma que não só não é aceitável num Estado democrático como acabará por ter efeitos contraproducentes: a velha fábrica da Messa fechou porque acreditou que podia viver sob a aba de decretos proteccionistas. Várias pequenas e médias empresas não sobreviverão a uma perspectiva criminal da actividade económica. A bolha que nos reserva o Estado que tudo quis garantir e regulamentar está a tornar-se cada vez mais estreita. Jornalista
a Foi nestes paradoxais termos que os ecologistas franceses optaram por passar a referir-se aos biocombustíveis. Onde até há pouco se falava dos biocombustíveis como "alternativas verdes" ao nefando petróleo, alternativas essas que apenas por influência das igualmente nefandas petrolíferas não se tinham implementado, passou agora a falar-se dos mesmos biocombustíveis como os responsáveis por uma nova vaga de fome no mundo. Enfim, dando o devido desconto ao gosto pelo anúncio da catástofre que caracteriza e estrutura boa parte do discurso do movimento ecologista, temos de reconhecer que em termos domésticos também não nos têm faltado "verdadeiramente falsas boas ideias". Ora é uma dessas "verdadeiramente falsas boas ideias" - a suspensão da construção da barragem de Foz Côa - que ainda estamos a tempo de reparar.
Lendo o que se escreveu há catorze anos sobre Foz Côa é-se levado a acreditar que aquelas gravuras representavam algo de tão importante na História da humanidade quanto a descoberta de Machu Picchu ou dos 13 mil soldados de terracota do imperador Qin Shi Huangdi. Mas não só. Igualmente despiciendo era o facto de se deitar fora o enorme investimento feito pois a barragem já estava em construção e sobretudo dava-se de barato a questão da energia. As gravuras não sabiam nadar e os portugueses também pareciam não precisar de se alumiar e lavar. O resultado está aí, à vista de todos: Foz Côa suscitou um interesse residual. Por exemplo, quantas pessoas viram o filme Côa, o Rio das Mil Gravuras que foi apresentado como a derradeira tentativa de chamar a atenção internacional para o parque arqueológico? Agora que as necessidades energéticas parecem justificar tudo - desde um regresso em força ao nuclear até a relações amistosíssimas com qualquer dirigente que esteja sentado em cima dum oleoduto ou dum gasoduto - talvez seja o momento de fazermos o balanço daquela que provavelmente foi a mais "verdadeiramente falsa boa ideia" que se impôs neste país, nos últimos anos.

a Outra "verdadeiramente falsa boa ideia" é aquela que se encontra nas palavras da vereadora da Câmara de Lisboa, Rosália Vargas, sobre o futuro do cinema Quarteto: "Sou sensível a este assunto e é uma pena se se perder o Quarteto. A Câmara de Lisboa gostaria de o preservar, ou pelo menos preservar a sua memória. O que podemos tentar fazer é classificar o espaço como de interesse cultural da cidade, impedindo que se altere o fim para que foi criado." E depois o que acontecerá? O Quarteto tem de ser cinema porque a vereadora Rosália gosta de ser sensível a "este assunto" e entende que impondo um uso a um edifício nascem os seus utilizadores. Rosália Vargas não está só nesta sua concepção de que se preserva a memória como quem seca flores em livros.
O espaço cultural é a capela dos nossos dias. Os governantes e abastados do passado mitigavam as suas culpas custeando a construção de conventos e igrejas. Nos nossos tempos os pecados da política e da economia aliviam-se dizendo que se vai fazer um espaço cultural. Infelizmente na cultura, e ao contrário do que acontece com os espaços religiosos, não basta colocar um altar para que os fiéis acorram. E assim as cidades vão-se atulhando de espaços supostamente salvos para a cultura mas que ninguém frequenta. O caso dos cinemas fechados de Lisboa é exemplar desse processo: um olhar grosseiro sobre a cidade leva-nos ao Paris, cinema que por razões de segurança a CML mandou demolir em 2003 mas que lá continua periclitante à espera que a CML abra os cordões à bolsa para que a cultura ali continue a ter um espaço ou um vazadouro. O cinema Europa, apesar de tudo bem mais firme que o Paris, também espera, devidamente fechado, pela redenção para a cultura. Na Avenida da Liberdade, o São Jorge, propriedade da CML, prossegue a sua letargia de bela adormecida só quebrada por um breve alvoroço quando os organizadores dos festivais de cinema, apoiados pela mesma CML, lá concedem realizar algumas sessões. A esta lista não exaustiva ameaça somar-se agora o Quarteto. Grotesco fim para quem foi moderno.

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