O fantasma do último filme

O realizador de Belarmino recebe hoje o Prémio Carreira no Fantasporto. Ele tem medo que seja o "prémio de fim de carreira". Mas tem projectos para novos filmes. Grandes e pequenos

a Havia uma ideia - era mais do que isso, era uma filosofia -, no início dos anos 60, que marcou o Cinema Novo de diferentes países, na sequência do movimento fundador da Nouvelle Vague, em França. A ideia de que o cinema e a vida eram uma e a mesma coisa. Para os realizadores novos desses "verdes anos", fazer cinema não era apenas uma questão estética, era também uma questão ética, era transportar directamente para o grande ecrã as dimensões do real quotidiano e não apenas as ficções distantes do sonho.Era assim que a ficção e o documentário corriam de par em par, e na geração pioneira do Cinema Novo português, um nome se destacava precisamente pelo casamento destas duas dimensões, Fernando Lopes, hoje com 72 anos. Com Belarmino (1964) - e depois de Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha -, o realizador fazia ao mesmo tempo a radiografia de uma personagem real (Belarmino Fragoso, o pugilista e "campeão do desenrasca", nas palavras de Alexandre O"Neill), de uma cidade (Lisboa), de um país e de toda uma geração que nesses anos cinzentos do salazarismo se esforçava por respirar algo de novo.
Se há alguém que personificou bem essa filosofia, fazendo da sua vida cinema, e do seu cinema vida, com os triunfos e as fragilidades de ambos, esse alguém é Fernando Lopes. E é a ele que o Fantasporto decidiu prestar homenagem na edição deste ano, atribuindo-lhe o Prémio Carreira - que lhe será entregue, hoje à noite, na sessão de encerramento do festival. Fernando Lopes acompanhou ao longo desta semana a retrospectiva que o Fantas lhe dedicou (com filmes escolhidos pelo próprio), e foi logo na sessão de abertura do ciclo, na segunda-feira, que o realizador confessou o seu pessimismo. "O Fantasporto atribuiu-me o Prémio Carreira. Deus queira que não seja o prémio de fim de carreira."
Essa incerteza com que o realizador de O Delfim vive os dias de hoje perpassa também pela sua presença em dois filmes que integraram a retrospectiva. Um deles foi o documentário de título bressoniano Fernando Lopes, Provavelmente, de João Lopes, que o Porto pôde ver em antestreia absoluta numa plateia escassa (era dia de Liga dos Campeões, com o Porto a jogar), mas onde sobressaía a presença de Manoel de Oliveira, para visível emoção de Fernando Lopes, que a ele se referiu como "o meu, o nosso mestre" - Fernando Lopes, Provavelmente vai ter estreia em Lisboa na Cinemateca, a 3 de Abril, e depois será exibido numa versão mais curta na RTP.
O outro filme foi The Lovebirds, de Bruno de Almeida (produzido para o IndieLisboa 2007, e que na próxima semana vai chegar às salas). Fernando Lopes é um dos protagonistas das sete short cuts "à la Robert Altman" com que Bruno de Almeida revisita a cidade de Lisboa. Num assumido cameo, é o realizador que tem de recorrer à técnica do desenrasca para conseguir terminar dentro do prazo e do orçamento o filme que tem em mãos. É de novo uma história em volta de um pugilista - a rima com Belarmino é evidente -, e o produtor que o está a pressionar é... Joe Berardo. A certa altura, o realizador confessa que esse pode muito bem ser o seu "último filme". Mas acaba por conseguir convencer um pugilista profissional feito figurante a deixar-se "ir ao tapete". Porque também o realizador já foi "ao tapete várias vezes", e porque "há sempre também uma certa beleza na derrota". O cinema como a vida. Na vida como no cinema.
Um filme "à Billy Wilder"
E na sua vida actual, Fernando Lopes sente-se a ir ao tapete? O realizador confessa-se - foi mesmo numa "confissão" que ele transformou aquilo que o Fantasporto tinha anunciado como uma "aula magistral", na apresentação de Belarmino - "magoado" com a situação actual do cinema português. "O audiovisual tomou conta das nossas imagens" e é para ele que o Governo criou o dito Fundo de Investimento para o Cinema e o Audiovisual. Por outro lado, os subsídios do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) continuam dependentes dos "arbítrios dos júris". "Ao fim de 50 anos de carreira, já não estou disposto a passar por isso", reclama.
A alternativa pode estar no regresso às origens (do Cinema Novo), ao radicalismo que marcou esses anos 60, e que agora pode passar pelo aproveitamento das novas tecnologias digitais, e "por fazer filmes mais experimentais, mais à margem". Fernando Lopes cita o exemplo de The Lovebirds, realizado em digital (e depois passado para película de 35 mm) e com a cumplicidade de muitos amigos de Bruno de Almeida, entre os quais se contam os "sopranos" John Ventimiglia e Vincent Imperioli, além de Drena De Niro.
Também Fernando Lopes tem participado noutras cumplicidades, como as curtas-metragens que recentemente fez com Jorge Silva Melo e Margarida Gil. "Quero também fazer pequenos filmes. Vou agora fazer um documentário sobre um grande pintor, o Michael Biberstein. Depois, há outros "Belarminos" que quero filmar, os pintores, os carpinteiros do meu bairro, gente assim..." E quer também realizar um documentário sobre o padre Fontes. "Fiquei muito impressionado com a entrevista que li na Pública, e quero mesmo fazer um filme com ele."
Mas, apesar de tudo, Fernando Lopes recusa-se a "ir ao tapete" nas longas-metragens. Mesmo sem concurso e sem subsídio do ICA, quer concretizar o seu novo projecto de ficção. Chama-se Os Sorrisos do Destino e é um título "roubado" a Joseph Conrad, mas para uma história original. Será uma comédia, "um jogo de enganos sobre o amor", e que fará raccord com as suas obras anteriores. "Será o meu filme "à Billy Wilder"", promete. Mas adianta que não tem Joe Berardo como produtor.

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