A revolução de Marjane Satrapi deu um filme

Leia o livro e veja o filme? Não. Veja o filme. É candidato aos Óscares. As autoridades iranianas dizem que é anti-iraniano. Marjane Satrapi diz que é pró-iraniano e não é possível não gostar do Irão vendo "Persépolis". É hilariante. Tem uma "cover" de "Eye of the Tiger". É terrível. Tem execuções, guerra. A protagonista é valente e cobarde, deprimida e eufórica. Marjane gostava que o filme fosse como a gente. Leia o livro e veja o filme? Não. Veja o filme. Mas depois de o ver, leia o livro.

Há uma semana, dia 12 de Fevereiro, cerca de 70 pessoas encheram o pequeno centro cultural Ressaneh, em Teerão. Dois dias depois, mais 70 pessoas "apertaram-se" - o verbo é da Agência France Press - para caber lá dentro. E foi assim que uns 140 iranianos assistiram à projecção de um DVD.

Esse DVD continha o que muita gente chama uma autobiografia mas a autora, Marjane Satrapi, prefere chamar autoficção. Nascida em 1969 no Irão, é tetraneta de um príncipe Qajar (mas, como ela própria diz, francamente, os reis Qajar tinham centenas de mulheres e milhares de filhos, que multiplicados pelos filhos que tiveram devem ter dado uns 15 mil príncipes, um deles pai da bisavó da mãe de Marjane).

Esta autoficção não recua tanto no tempo. Concentra-se entre 1978 e 1994, ou seja, é Marjane dos 10 aos 24 anos, desde as vésperas da revolução islâmica até à ida para França. E foi em França que a sua biografia se transformou em autoficção. Recém-chegada a Paris, a palradora Marjane contava tantas aventuras da infância no Irão aos amigos desenhadores de BD que eles lhe disseram para fazer uma BD, a ver se a calavam (claro que esta é a versão dela). Marjane fez mesmo e a banda desenhada "Persépolis", em quatro volumes, tornou-se um sucesso mundial (recentemente a revista "Les Inrockuptibles" colocou-a em 5º lugar no seu suplemento das 100 melhores BDs de sempre).

Depois propuseram-lhe que transformasse os livros num filme de animação, e, com Vincent Paronnaud a co-realizar, Marjane mergulhou de cabeça. Chiara Mastroianni e Catherine Deneuve, que no filme fazem as vozes de Marjane e da sua mãe, vêem-na como Marjane, a Brava. Deneuve já tinha lido os livros, admirava Satrapi, e aceitou logo quando a iraniana lhe telefonou a convidá-la para fazer de mãe. Ao saber disto, Chiara, que também lera os livros e ficara fã da autoironia de Satrapi, telefonou-lhe a pedir para fazer um teste de voz.

Além dos seus outros talentos, Chiara ficará assim imortalizada pela mais humana "cover" de "Eye of the Tiger" - "tam! tam-tam-tam!... Risin''up, back on the street..." -, um esplendor de desafinação que não existe de todo no livro. A propósito, para quem tenha lido os livros e vá ver o filme, Deneuve pode parecer demasiado áspera como mãe, mas Chiara - Marjane adolescente e adulta - é maravilhosa.

As vozes foram gravadas antes de os desenhos serem feitos, para adequar os desenhos às vozes, o que obrigou a um trabalho intenso entre Satrapi e os actores. Deneuve diz que Satrapi sabia o que queria, e ainda assim lhe deixou toda a liberdade. Chiara diz que Satrapi não tem medo de nada, é a liberdade sem convenções. A outra mulher do filme é Danièlle Darrieux, em quem Satrapi pensou logo para avó, e pensou bem.

A formidável avó - que também é protagonista de outra BD de Satrapi, "Broideries" - é uma das grandes personagens de "Persépolis" e só ela vale por toda uma imagem do Irão além do cliché, desde as flores de jasmim no sutiã para cheirar sempre bem, à desdramatização do divórcio porque o primeiro casamento é um ensaio para o segundo, e de resto os homens que a fizerem sofrer, explica ela à neta, são uns parvalhões.

Teerão-cut

Em Teerão, o filme passou em DVD e não em película porque é improvável que seja autorizado a estrear nas salas. Quem lá estava acredita que aquela foi a única oportunidade "legal" de ver "Persépolis" - entretanto Prémio do Júri no Festival de Cannes de 2007, agora candidato aos Óscares de 2008 e sistematicamente "anti-iraniano" segundo as autoridades iranianas.

Um dos espectadores de Teerão citados pela AFP, um estudante, corrigiu: "Anti-iraniano, não, anti-governamental", e vários outros elogiaram o filme. Mas não se pode dizer que tenham visto tudo o que os espectadores portugueses vão ver, dado que a versão exibida foi "censurada de muitas cenas de conteúdo sexual para obter luz verde das autoridades culturais". Um Teerão-cut, portanto.

As notícias não referem cortes de outro tipo, sendo que os conteúdos políticos - os milhares de presos e executados pela revolução islâmica, o milhão de mortos na guerra Irão- Iraque, o constante vigiar e punir dos costumes e da liberdade de expressão - são mais significativos em "Persépolis" do que o "conteúdo sexual" - uns beijos, conversas de mulheres sobre dormir com homens e palavras como "pila" e "seios", aliás ditas pela avó (que dá uma receita para manter o peito rijo mergulhando-o em água com gelo dez minutos todos os dias).

O centro cultural onde o filme passou faz parte de uma rede criada por um antigo presidente da câmara considerado um moderado, que nos anos 90 ajudou a divulgar cultura alternativa e hoje está menos dinâmico. Os responsáveis do centro explicaram que quiseram projectar "Persépolis" porque "quando um filme não é mostrado, as pessoas imaginam todo o tipo de coisas". Estava lá um crítico de cinema considerado conservador, Hossein Moazzezinia, que por um lado elogiou as qualidades técnicas e a escrita do filme para, por outro, criticar a "visão parcial" de Satrapi, considerando que ela "foi selectiva ao omitir certos factos, o que torna o seu filme pouco fiável e desonesto". E concretizou: "Não podemos ignorar que milhões de pessoas aprovaram o ''imam'' [Khomeini]. Não é verdadeiro dizer que a revolução foi feita refém por uma minoria."

No mercado negro em Teerão

"Persépolis" arranja-se por dois dólares, e terá mercado, muito além dos tais 140 espectadores. Num país com 70 milhões de habitantes, dois terços dos quais jovens, haverá um milhão de blogues activos, e muitos se reconhecerão em "Persépolis", a avaliar pelos relatos no livro "We Are Iran" (Portobello Books, 2005, compilação de muitos blogues traduzidos para inglês, a partir do persa, "a quarta língua mais usada no mundo para diários on-line"). Foram os blogues que passaram a palavra para a projecção do filme no Irão.

Além da carta que o centro da cinematografia de Teerão enviou para a Embaixada de França, a protestar por um filme anti-iraninao passar em Cannes - isto, em Maio -, o assessor cultural do presidente Mahmoud Ahmadinejad fez questão de insistir que "Persépolis" promovia a islamofobia, além de ser anti-iraniano. No YouTube é fácil encontrar a resposta que Marjane Satrapi deu a isto num debate no Lincoln Center, durante uma viagem de promoção na América. "Não é um filme anti-iraniano, pelo contrário, é um filme muito pró-iraniano."

Qualquer pessoa que o veja, à excepção das autoridades ortodoxas iranianas, facilmente concordará. "Persépolis" é uma terna, impiedosa, irónica, apaixonada história de amor entre uma rapariga e o seu país. E desfaz os clichés do "eixo do mal" como as autoridades nunca conseguirão. Marjane diz que se as pessoas sentirem "eu sou isto" lhe basta, e que também foi por isso que, no filme, fez questão de desenhar Teerão como Cincinatti, sem exotismo, para que toda a gente se pudesse identificar com estes adolescentes iranianos dos anos 1980, que também queriam casacos de ganga com crachás do Michael Jackson, e cassetes da Kim Wilde e posters punk, para não falar nos que faziam "covers" de "Eye of the Tiger".

Claro que há diferenças, e a empatia que "Persépolis" desperta vem dessa combinação rara entre o que é próximo de todos e o que é próprio desta história - os adolescentes do Cacém ou de Cincinatti não compraram as suas cassetes no mercado negro, não dançaram e beberam às escondidas em festas que eram actos diários de resistência, não levaram com os Guardas da Revolução por não cobrirem a cabeça, não foram combater numa guerra aos 14 anos nem partiram para o exílio aos 14 anos - sendo que esta história é terrível, negra e dolorosa, sem deixar de ser divertida, absurda, patética. Entre livro e filme Quem ainda não leu "Persépolis" - só o primeiro volume foi editado em Portugal, os outros estão disponíveis na tradução brasileira, no original francês em quatro volumes ou na versão americana em um só volume -, não leia antes de ver o filme. "Persépolis" resultará melhor como filme se não tiver a leitura do livro muito próxima.

Em volume único, são quase 400 páginas, com vários níveis de leitura, sempre claras, sem deixarem de ser sofisticadas, subtis, densas. É a história de um, neste caso uma, ou seja, é uma história íntima que constrói o país real da memória. Num filme, necessariamente, não só não há tempo para muitas das histórias dentro da história - o que implica uma condensação relâmpago de alguns anos de vida -, como momentos que mal existiam ou não existiam de todo são ampliados pela própria natureza do meio, porque há som, música, canções, vozes, movimento, fantasia. É assim que "Persépolis" em filme perde em densidade narrativa o que ganha em "feérie" onírica, por vezes de grande delicadeza e expressividade, como em toda a sequência do exílio e morte do tio Anoush, ou durante a depressão de Marji no regresso ao Irão.

Em Cannes, teve ovação de pé e conta-se que Stephen Frears, presidente do júri, ficou em lágrimas. De certeza que também se riu. Aí, entre o humor e a angústia, livro e filme estão quites. Marjane Satrapi vive em França desde 1994, e a última vez que esteve no Irão foi em 2000. Em 2004, numa entrevista ao PÚBLICO, tentou dizer de que é que tinha mais saudades quando pensava no seu país: "Tudo, tudo. A começar pelas montanhas que rodeiam Teerão. Mas do que sinto mais falta é do sentido de humor iraniano. As piadas que mais me fazem rir são as iranianas. O apocalipse pode acontecer no Irão que no dia a seguir há piadas acerca desse apocalipse. E as pessoas... têm uma generosidade que nunca, nunca vi em parte alguma do mundo." Isso vê-se em "Persépolis". E depois, vale mesmo a pena ler.

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