Sócrates assinou durante uma década projectos da autoria de outros técnicos

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Uma das casas projectadas por José Sócrates, em Valhelhas Rui Gaudêncio

José Sócrates assinou numerosos projectos de edifícios na Guarda, ao longo da década de 80, cuja autoria os donos das obras garantem não ser dele. Nalguns casos, esses documentos eram manuscritos com a letra de Fernando Caldeira, um colega de curso do actual primeiro-ministro que era funcionário do município e que, por isso, não podia assumir a autoria de projectos na área do concelho.

O primeiro-ministro diz que assume “a autoria e a responsabilidade de todos os projectos” que assinou e que a sua actividade profissional privada se desenvolveu “sempre nos termos da lei”. Embora se trate de uma prática sem relevância criminal, as chamadas “assinaturas de favor” em projectos de engenharia e arquitectura constituem uma “fraude à lei”, no entendimento do penalista Manuel Costa Andrade, e são unanimemente condenadas pelas organizações profissionais dos engenheiros técnicos e dos engenheiros.

A actividade privada do actual primeiro-ministro como projectista de edifícios era publicamente desconhecida até que, em Junho do ano passado, um antigo presidente da Câmara da Guarda, o também socialista Abílio Curto, a ela se referiu numa entrevista. “Uma vez disse-lhe [a José Sócrates] que ele mandava muitos projectos para a Câmara da Guarda, obras públicas, particulares. (...) O que sei é que nem todos os projectos seriam da autoria dele. Mas isso levar-nos-ia muito longe e também não vale a pena”, afirmou o ex-autarca à Rádio Altitude, pouco depois de ter terminado o cumprimento de uma pena de prisão por corrupção passiva.

Obra quase desconhecida

Ausente dos seus currículos, o trabalho de Sócrates como projectista é muito pouco conhecido. Mesmo os seus amigos da Guarda ignoram se essa actividade se estendia a outros concelhos. Questionado pelo PÚBLICO, Sócrates confirmou que exerceu “funções privadas” desde 1980, mas nada adiantou quanto ao número, natureza e localização das obras que projectou.

O arquivo camarário da Guarda mostra, porém, que essa actividade, no caso daquele município, teve algum relevo. O PÚBLICO consultou aleatoriamente mil processos de licenciamento de obras particulares de entre os cerca de 4000 submetidos à autarquia entre 1981-1990. E só nessa amostra de um quarto da totalidade dos processos encontrou 27 com a assinatura de José Sócrates. No essencial, trata-se de casas de emigrantes, ampliações e anexos mas também dois edifício de habitação colectiva.

Destacam-se os processos em que o primeiro-ministro, então engenheiro técnico ao serviço da vizinha Câmara da Covilhã, assina – quase sempre com reconhecimento notarial – peças manuscritas, nomeadamente memórias descritivas, termos de responsabilidade e cálculos de betão, em que a caligrafia usada nada tem a ver com a de José Sócrates. Muitas vezes, essa caligrafia, inconfundível, é a mesma que aparece nos autos das vistorias realizadas no fim das obras pelos técnicos da Câmara da Guarda: a letra de Fernando Caldeira, colega de curso do primeiro-ministro e que, por ser funcionário do município, estava legalmente impedido de subscrever projectos na área do concelho.

Noutros casos, os trabalhos manuscritos apresentam uma caligrafia que não corresponde nem à de Sócrates nem à de Caldeira, e alguns deles aparecem dactilografados. Comum a muitos dos projectos assinados pelo técnico da Covilhã, que em 1986 se tornou líder distrital do PS em Castelo Branco, é o facto de serem rapidamente aprovados, apesar dos reparos e observações críticas dos arquitectos da repartição técnica da Câmara da Guarda e até dos pareceres contrários da administração central.

Coincidente em muitos deles é também o facto de os donos dessas obras garantirem que José Sócrates não é o autor dos projectos das suas casas. Dos 13 proprietários que o PÚBLICO conseguiu localizar – muitos dos outros residem no estrangeiro e alguns já faleceram –, apenas um, António Lourenço Fresta, confirmou que foi com ele que “tratou do assunto”.

“Só o conheço da televisão”

Alguns, como Aníbal Beirão, um empresário de Porto da Carne, não só negam que Sócrates tenha tido alguma intervenção nas suas obras, como identificam claramente quem o fez. “Tratei de tudo com o eng. Caldeira e foi a ele que paguei. Agora quem assinou não sei”, diz.

Outros, entre os quais António Caldeira, também empresário na mesma aldeia e irmão do engenheiro Fernando Caldeira, desmentem a ligação do primeiro-ministro às suas obras e apontam para autores mais ou menos incertos: “Isto não tem nada a ver com o Sócrates”, garante António Caldeira. No entanto, o projecto da sua fábrica de blocos de cimento, construída no interior de uma zona urbana, foi assinado em 1990 pelo deputado socialista que então mais se destacava na defesa do Ambiente. Segundo o empresário, o autor foi um conhecido arquitecto da Guarda. Sucede que nessa época este ainda nem sequer tinha concluído o curso.

Já o ex-emigrante José Pereira Ramos não hesita em identificar Cristóvão Pereira, um desenhador da câmara local, como autor do projecto da sua casa. “Foi a ele que paguei. Ao Sócrates só o conheço da televisão.”

Entre alguns engenheiros e arquitectos da Guarda, que pedem anonimato, a versão que corre sobre a ligação profissional de Sócrates à Guarda é simples e é assim resumida por um deles: “Havia aí um grupo de técnicos da câmara que açambarcava uma boa parte dos projectos de casas dos emigrantes. Como não podiam assinar punham o Sócrates a fazê-lo, porque ele era da Covilhã e não tinha esse problema” de impedimento legal.

De acordo com esta versão, o grupo era composto por Fernando Caldeira, António Patrício e Joaquim Valente, todos engenheiros técnicos e antigos colegas de José Sócrates no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra. O primeiro e o segundo são hoje directores de departamento na Câmara da Guarda e o último, que apenas foi técnico da autarquia em 1980 e 1981, tendo depois desenvolvido a sua actividade em duas empresas que criou, tornou-se presidente da mesma Câmara em 2005. Dos três, só António Patrício nega que alguma vez tenha tido relações profissionais com Sócrates. Os outros admitem ter trabalhado com ele, mas sempre “para ajudar pessoas a resolver os seus problemas”.

(mais textos sobre este tema no PÚBLICO de amanhã)
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