Um aborto num quarto de hotel romeno

Roménia, 1987. Duas amigas, uma delas grávida, um problema para resolver. A gravidez (só depois de largos minutos do filme é que sabemos que é disso que se trata) é um problema para ser resolvido. Mas, numa sociedade como a romena, nos últimos anos da ditadura comunista de Nicolae Ceausescu isso significa que há uma série de pequenos problemas a resolver antes, uma série de complexas negociações e de trocas de favores com gente desagradável.

Otília (Anamaria Marinca), a que não vai fazer o aborto, é quem se ocupa das questões práticas, arranjar o quarto de hotel, encontrar o homem que vai fazer o aborto (curiosamente chamado Senhor Bebe) e levá-lo até à amiga Gabita (Laura Vasiliu), de ar permanentemente assustado e perdido - mas se calhar não tão perdida como isso, como diz Cristian Mungiu, o realizador.

"Quatro meses, três semanas e dois dias" - Palma de Ouro no Festival de Cannes e muito elogiado filme de um realizador daquela que é já vista como a nova e promissora geração de cineastas romenos - é um regresso a um passado duro, cinzento, claustrofóbico, a uma vida de sobrevivência diária, em que é preciso convencer a mal-humorada recepcionista do hotel a arranjar um quarto, é preciso subornar, é preciso comprar pílulas e tabaco clandestinamente aos colegas do dormitório. E é preciso fazer sexo com o homem que a seguir nos vai fazer um aborto.

Mungiu conheceu este país, era a Roménia da sua juventude, na qual cresceu, como conta ao Ípsilon, sem referências religiosas, morais ou éticas, porque era demasiado perigoso tê-las e, de qualquer forma, ninguém se atrevia sequer a imaginar que um dia o comunismo chegaria ao fim. O filme veio revelar que esta era a história de muita gente. "Na Roménia ficámos esmagados", contou Anamaria Marinca ao "Guardian". "Não nos tínhamos apercebido da dimensão. Quando as pessoas vêm ter connosco depois de um visionamento e sentem a necessidade de nos contar o que lhes tinha acontecido, esses segredos enterrados que não tinham partilhado com ninguém, sentimos que devíamos ter uma resposta e não temos."

O aborto era proibido, mas era uma prática generalizada. Marinca, que tinha nove anos em 1987, lembra-se das histórias que ouvia. "Ouvíamos falar de bebés encontrados em caixotes do lixo, e as pessoas sussurravam sobre isso. Sabia que era assustador e uma coisa terrível, mas não percebia como é que eles tinham ido ali parar, porque é que não encontravam as mães". Mais tarde, soube o que acontecera a esses fetos e percebeu que as mães tinham, em alguns casos, feito coisas como atirarem-se do cimo de um guarda-roupa ou lançarem-se em água gelada.

Sem nostalgia - nisso Mungiu é peremptório, ninguém tem saudades dos tempos de Ceausescu -, o filme recria o ambiente dessa Roménia, o hotel onde quase podemos sentir o cheiro a mofo, as cortinas, a lâmpada florescente no corredor sempre a falhar, o olhar dos outros, pairando entre o ódio e a indiferença - ou aquela ligeira curiosidade de perceber se podem lucrar ali alguma coisa.

Mungiu filma de uma maneira muito própria (que explica nesta entrevista). Tanto acompanhamos Otília na sua corrida pelas ruas escuras, quase perdendo o fôlego com ela, como nos sentamos num ponto de vista único e, durante longos minutos, vemos diferentes emoções atravessarem o rosto dela - ela que ainda não ultrapassou o nojo de ter tido, pouco tempo antes, relações sexuais para pagar o aborto da amiga - enquanto controla a impaciência e ouve as conversas à mesa do jantar de anos da mãe do namorado, sem saber se Gabita está bem no quarto de hotel ou se se esvaiu em sangue.

E se Mungiu não nos poupa a um grande plano do feto abandonado no chão da casa-de-banho, este não é um filme contra o aborto ou pela sua legalização. É mais do que isso. É o retrato de um tempo e de uma geração. E é uma reflexão sobre o que é crescer sem ter que pensar que há coisas que estão certas e coisas que estão erradas. Crescer sem dilemas, sem culpa. Negociando o nosso caminho pela vida, esperando ter a sorte de não ser apanhado sem bilhete no autocarro, pagando um favor aqui com um maço de cigarros, outro ali com uns minutos de sexo, garantindo a sobrevivência a cada passo. Até um dia, um momento, que nos muda.

Como será Otília no dia seguinte? Mungiu não nos conta. Há, diz ele, muita coisa a acontecer antes daquele dia, e depois dele, tal como há muita coisa a acontecer quando a câmara não está a olhar.

Sugerir correcção
Comentar