Mistérios no nevoeiro

Manoel de Oliveira não está a enganar ninguém quando nega que "Cristóvão Colombo - O Enigma", baseando-se embora numa tese histórica, seja ele mesmo um "filme de tese". A tese, nos seus traços fundamentais, é simples de expor: Cristóvão Colombo, o descobridor da América, não era genovês mas português, alentejano de Cuba.

Assim o defende o investigador Manuel Luciano da Silva, que aliás não está sozinho (outros autores explanaram teses semelhantes) nessa defesa. Apesar de o título escolhido puxar essa questão para primeiro plano, associando o "enigma" a Cristóvão Colombo, e de o filme não deixar de, pelo menos, ilustrar alguma da argumentação de Luciano da Silva, tudo isso talvez se reflicta mais como "trompe l'oeuil" do que enquanto verdadeiro núcleo do filme de Oliveira.

Evidentemente, não se pode, nem Oliveira parece interessado nisso, expurgar deste panorama a História de Portugal, em particular a época dos descobrimentos e as mitologias a ela associadas. Coisas que já correram, diversas vezes, na obra de Manoel de Oliveira, com outro fulgor e outro grau de problematização - em "Non ou a Vã Glória de Mandar", em "Palavra e Utopia", em "O Quinto Império - Ontem como Hoje". Ao pé deles, a presença da história portuguesa em "Cristóvão Colombo" é duma simplicidade evocativa, dir-se-ia mesmo didáctica, quase sempre em articulação com o quadro utópico do "quinto império" e de uma predestinação portuguesa (de Ulisses ao " Mostrengo" de Pessoa, recitado por Luis Miguel Cintra). Algo que, como dissemos, Oliveira já filmou com muito maior profundidade e capacidade de perturbação.

A questão é que tudo isso só aparentemente (e daí o "trompe l''oeuil"), e por mais que o filme para lá chame a atenção, se constitui como o aspecto central deste "Colombo". Oliveira, diríamos, está muito mais interessado em seguir as vidas de Manuel Luciano da Silva e da sua mulher, Sílvia Jorge da Silva.

"Cristóvão Colombo - O Enigma" também é, ou sobretudo é, a história de um casamento. Muito francamente, isto parece-nos tão ou mais importante do que o resto. De resto, os mais espantosos momentos de "Colombo" são gerados por esse curso biográfico - falamos, por exemplo, da cena em Nova Iorque nos anos 40, e da genialmente engenhosa maneira com que o cineasta contorna a impossibilidade de fazer "reconstituição": primeiro, o nevoeiro, depois, ângulos de câmara cuidadosamente escolhidos, e eis como filmar contemporaneamente em Nova Iorque fingindo que se está nos anos 40. Também as cenas propriamente contemporâneas na cidade americana são surpreendentes - Manhattan filmada por Oliveira: eis algo que nunca sonhámos possível e que se revela, obviamente, numa Manhattan como nunca a vimos.

Independentemente destes momentos, que quase valem o filme todo, há que contar com a "projecção" de Oliveira no seu biografado. Ou com a "projecção" do casal Oliveira no casal biografado, visto que são eles, Manoel de Oliveira e a sua mulher, Dª Isabel, quem dá corpo a Luciano e Sílvia da Silva. A "confusão" assim gerada pode ser perturbante - e especialmente num longo plano de diálogo, com os dois de frente para a câmara, a dita "confusão" parece ser estimulada: ouvimos a conversa entre Luciano e Sílvia como se a representação não fosse nada clara, e a conversa pudesse ser (ou também fosse), entre Manoel e Isabel.

Isto é bastante poderoso, e praticamente dá a volta ao filme todo. O amor conjugal, a obstinação profissional, eis os "temas" de "Cristóvão Colombo", eis o seu "enigma". Colombo, em absoluto sentido hitchcockiano, talvez não passe de um "macguffin".

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