O Portugal de Luiz Pacheco

Era um escritor que nem sempre conseguia ser bom, mas que, quando era bom, era muito bom

Morreu Luiz Pacheco, aos 82 anos. Era um escritor que nem sempre conseguia ser bom, mas que, quando era bom, era muito bom - melhor do que a maior parte dos literatos contemporâneos, mortos e vivos. O Libertino passeia por Braga justifica os elogios. Fátima ou o amor louco, com apenas seis páginas na última edição de Exercícios de Estilo, é talvez a mais directa e melancólica história de amor escrita por cá no último século.Pacheco é datável, o que não o torna menos interessante para uma história intelectual do Portugal recente. No que disse e escreveu, estão os traços da colheita literária de 1945: por exemplo, o culto do "amor" e da "sinceridade". Mas está também um drama: o dos jovens intelectuais (Cesariny, O"Neill e outros) que, no pós-guerra, perante o nacionalismo salazarista e o neo-realismo comunista, resolveram desalinhar (o "surrealismo" foi uma das modalidades desse desalinhamento). Em Portugal, porém, o mundo custou a mudar, e eles passaram os trinta anos seguintes a ser moídos entre a ditadura política do Estado Novo e a ditadura cultural do PCP (bem explicada por Eduardo Lourenço). Com o diário de Virgílio Ferreira ou a correspondência de Jorge de Sena, as inconfidências de Pacheco fazem falar, de uma maneira violenta, essas longas vésperas da liberdade.
Numa literatura colonizada por "antifascistas" e académicos, todos muito respeitáveis, Pacheco recorreu a outro estilo: o de Bocage, o do "desgraçado" que revelava, sobre si próprio e em público, coisas que os literatos portugueses geralmente só dizem dos outros e em segredo: faltas de dinheiro, alcoolismo, homossexualidade, prisões por delito comum. Arranjou até o "ismo" necessário para arrumar tudo isso: "neo-abjeccionismo". Nesta lenda do "escritor maldito", cuja desinibição saciou algum voyeurismo, havia algo de defensivo: sem quase nada a perder, pouco lhe podiam tirar. Só assim pôde conduzir a "guerrilha" que o tornou célebre. O grande segredo da cultura literária portuguesa era que, em privado, pouca gente do chamado "meio" levava a sério os "grandes autores" do momento. Em público, porém, todos faziam as esperadas genuflexões. Pacheco não. Imprimiu a "má língua", lembrou o prazo de validade de certas glórias oficiais. Reivindicou, contra a manipulação política da literatura, um "mercado livre das Letras". Através dele, muitos viveram atrevimentos que não ousavam.

Pacheco veio da classe média com criadas, cultura e acesso aos empregos do Estado. Preferiu viver como "libertino", versão clochard. Havia lugar para isso na sociedade portuguesa. Notáveis da província, como o Dr. Maldonado de Freitas, das Caldas da Rainha; milionários do Estado Novo, como Manoel Vinhas; políticos da democracia, como o Dr. Soares, pagaram-lhe quartos e medicamentos, deram-lhe dinheiro. Uns achavam-lhe "graça". A outros, a educação literária terá feito sentir obrigações. Ele aproximava-se (como no seu tardio acompanhamento do PCP, de cujas capelinhas literárias dissera o pior), mas ressalvando a ambiguidade necessária à sua reputação. Era um jogo cujas regras ele próprio descreveu.

Há dois séculos que a literatura portuguesa anda a tentar inventar imagens fiéis da "nossa terra". Quando se fizer o balanço dessa velha mania, ver-se-á que alguns dos esforços mais memoráveis são de Luiz Pacheco. Por exemplo, Porto-Lisboa a pedir esmola. Eis o resumo (versão de Exercícios de Estilo, a melhor): no Porto, decidido a ir de comboio para Lisboa, o autor só tem dinheiro para o bilhete até Soure. Tenta, com uma mentira, comover o chefe da Estação de S. Bento: espera-o em Lisboa uma pessoa de família doente. O chefe de estação percebe a vigarice, mas decide empurrar para a frente: que compre bilhete para Soure, e, em lá chegando, fale com o chefe do comboio. Em Soure, o chefe do comboio barafusta imenso, mas (e é o que importa) não o põe fora na estação, passando a chatice ao revisor. Este, sem vontade de levantar o devido "auto", tem uma ideia para "legalizar" o viajante: e se ele pedisse esmola aos outros passageiros? O próprio revisor chama a atenção da carruagem (de terceira classe, apinhada de gente, cestos e garrafões), e exibe o desgraçado: sem bilhete, em chegando a Santa Apolónia, irá preso (mentira). Todos se condoem: coitadinho. As moedas aparecem, o bilhete e a multa são pagos. Pela cabeça do autor passa a ideia de recorrer novamente ao truque da próxima vez que viajar.Aldrabice, aversão às responsabilidades, sentimentalismo: é um Portugal imaginado, mas a quem é que apetece dizer que não é verdadeiro? Historiador

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