Torne-se perito

Os cruéis ocupantes aliados

Giles MacDonogh quis mostrar a vivência dos alemães na derrota. E conseguiu. Mas também atraiu novas atenções para os actos questionáveis da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos durante a ocupação. Execuções encenadas (ou não), espancamentos, violações, milhares de militares e civis transportados em camiões de gado ou mortos à fome e ao frio. A Segunda Guerra Mundial vista do outro lado. Por Patricia Meehan

Oficiais alemães assinam a rendição definitiva
em Berlim a 8 de
Maio de 1945 (à esq.).
Um americano filma
soldados soviéticos que
celebram a vitória nas
portas de Brandeburgo
(ao centro). Festejos
aliados depois da queda
de Saarbrucken
a Na Primavera de 1945, a Alemanha afundava-se no caos e na derrota. Na própria Alemanha ocupada pelos seus inimigos, o trabalho escravo, os campos de concentração, a fome, as detenções sem acusação formal e as execuções não desapareceram com os nazis. As revelações sobre os campos da morte divulgadas por todo o mundo em Abril de 1945 pelas imagens do documentário sobre Bergen-Belsen pareciam dar carta branca aos que detinham agora o controlo. Giles MacDonogh deu-se ao formidável trabalho de fazer a crónica das vidas dos alemães depois de caírem nas mãos dos vencedores. No seu livro Depois do Reich ele procedeu à tarefa com implacável minúcia. É um compêndio da miséria humana. MacDonogh conhece bem a Alemanha e a Áustria e possui aí muitas fontes. Baseou-se em relatos em primeira mão e memórias privadas que conseguiu acrescentar à sua pesquisa de fontes publicadas.
Já em Janeiro de 1943, os Aliados tinham os olhos firmemente postos numa capitulação incondicional da Alemanha. Estaline considerava essa exigência uma má táctica, mas para Roosevelt e Churchill ela possuía uma carga emocional que obscurecia quaisquer considerações sobre aquilo que poderia implicar. No dia 26 de Julho de 1944, foi assinado um Instrumento de Rendição pelos governos aliados: "O Governo alemão e o alto comando alemão... anunciam por este meio a capitulação incondicional da Alemanha." Mas, quando chegou a ocasião, não havia governo alemão para rastejar aos pés dos Aliados e o alto comando só se poderia render militarmente. O conceito de capitulação incondicional não existia na lei. Assim, foram os próprios Aliados que se apoderaram da soberania. No dia 5 de Junho de 1945, teve lugar em Berlim uma sumptuosa cerimónia de Declaração de Derrota e Assunção de Soberania, com grande pompa militar (e dúbia legalidade).
De acordo com a declaração, a Alemanha seria dividida em três zonas ocupadas sob a Comissão de Controlo para a Alemanha e a Áustria, administradas respectivamente pelos americanos, pelos britânicos e pelos russos. (À França foi posteriormente atribuída uma pequena zona retirada dos territórios britânico e americano.) A Áustria seria separada da Alemanha e seria igualmente ocupada. Berlim ficaria dividida em quatro sectores e aí ficaria instalada a sede do Conselho de Controlo Aliado - o governo de ocupação. Os membros do conselho seriam os quatro governadores militares das zonas. A 17 de Julho de 1945, pouco mais de um mês depois, em Potsdam, um subúrbio de Berlim, os Três Grandes reuniram-se pela última vez, mas sem quaisquer modificações: a Roosevelt, que morrera em Abril, sucedera o Presidente Truman; e já a conferência ia a meio quando o primeiro-ministro Clement Attlee substituiu Churchill, que fora derrotado nas eleições gerais britânicas. Em Potsdam, os Aliados estabeleceram as regras pelas quais iriam controlar todos os aspectos da vida alemã no futuro previsível. Estas regras seriam posteriormente ignoradas, manipuladas, desprezadas, aplicadas com excesso de zelo e, em última análise, abandonadas.
Milhões de deslocados
Em Ialta, em Fevereiro de 1945, os Três Grandes haviam concordado que a Rússia ficaria com uma parte substancial da Polónia a leste e a Polónia receberia uma compensação territorial no Ocidente. A população alemã nessas áreas seria evacuada e forçada a regressar à "pátria" alemã. Populações alemãs "étnicas" também seriam expulsas da Checoslováquia, da Hungria e da Jugoslávia. Em Potsdam foi decretado que as expulsões só começariam um ano após o cessar das hostilidades e que deveriam processar-se de uma forma ordeira e humana durante um período de cinco anos. De facto, a realidade foi muito diferente. É aqui que Giles MacDonogh começa a sua história.
Nos últimos meses da guerra, quando o Exército Vermelho libertou os países da Europa de Leste, ao mesmo tempo que cometia violações e pilhagens, as populações nativas desses países viraram-se contra os seus anteriores governantes e alemães "étnicos" na generalidade com uma ferocidade terrível. Mesmo antes da capitulação da Alemanha, comunidades inteiras de alemães que tinham vivido no exterior do Reich, muitas vezes durante gerações, foram desenraizados à força de armas; no total, entre 13 e 16 milhões de pessoas foram expulsas das suas casas.
Roubados, espancados, esfomeados, velhos, mulheres e crianças foram forçadas a caminhar para ocidente ou a amontoar-se em veículos de transporte de gado nos quais por vezes gelavam até à morte. Um membro do Parlamento descreveu na Câmara dos Comuns as expulsões como "fazendo milhões de pessoas atravessar a Europa como um Belsen arrepiante". MacDonogh conduz o leitor ao longo destas terríveis deslocações, quase aldeia por aldeia, descrevendo uma medonha migração.
Estas "pessoas deslocadas"- à semelhança dos seus judeus anteriormente, foram designados por PD pelo governo de ocupação - chegavam a uma pátria onde se encontravam já milhões de pessoas desenraizadas. Quando os disparos e as bombas paravam, emergiam pessoas das ruínas procurando notícias de quem estava vivo ou tinha morrido. Um oficial dos serviços secretos do Comando Supremo das Forças Expedicionárias Aliadas (SHAEF) relatou que aquela movimentação descontrolada ao longo de todas as auto-estradas da Alemanha era atordoante. Hordas de trabalhadores estrangeiros, libertados da sua situação de trabalhadores forçados para os nazis, fizeram-se à estrada para regressarem aos seus próprios países - ou para fugir deles. Somados a estes, havia ainda os milhares de refugiados que debandavam para ocidente devido ao avanço do Exército Vermelho. Alguns sobreviventes viviam em covas feitas no chão.
Os membros da Wehrmacht, um exército derrotado de milhões, esperavam em centros para serem libertados. No final da guerra, haviam sido capturados 11 milhões de soldados alemães. Sete milhões e meio estavam nas mãos dos Aliados ocidentais, refere MacDonogh, cinco milhões dos quais foram libertados ao fim de um ano. Cerca de um milhão e meio desapareceu na Rússia soviética e nos países de Leste; na sua maioria nunca regressaram a casa. Mas muitos outros milhares não foram contabilizados dentro do seu próprio país.
A fome e o frio
Na Primavera de 1945, cerca de 40.000 prisioneiros morreram à fome e ao frio nos 12 centros de detenção ao ar livre que os americanos haviam erguido para alojarem cerca de um milhão de homens. Os prisioneiros, escreve MacDonogh, "haviam sido empurrados para vastos recintos ao ar livre perto das margens do Reno descritas como "áreas de concentração" ou "PWTE - Recintos Temporários para Prisioneiros de Guerra"". Os americanos tinham-lhes queimado as roupas e por isso eles não tinham nada que os protegesse dos elementos. Abril e Maio de 1945 foram particularmente frios e chuvosos, e havia muita neve. Os soldados eram forçados a passar por isto em recintos abertos e sem tendas. MacDonogh escreve: "Muitos deles abriram covas no solo com uma colher ou uma lata ou o que tivessem à mão, mas, com a chuva constante, o terreno amolecia e todas as noites essas covas desabavam e as pessoas que aí tinham procurado abrigo ficavam soterradas. Não se passava uma noite sem que morressem homens nesses locais."
Estes recintos eram abandonados ao fim de alguns meses, mas havia outros na zona americana que não eram mais hospitaleiros.
Günter Grass tinha 17 anos, quando foi feito prisioneiro pelos americanos. No seu recente livro, Descascando a Cebola, descreve de forma brilhante a realidade da fome que passou naquele acampamento. Quando os elementos mais jovens da sua família lhe perguntam o que se passou no fim da guerra, responde-lhes: "A partir do momento em que me puseram atrás do arame farpado, passei fome." Nessa altura, o colapso do Terceiro Reich passou-lhe simplesmente despercebido.
Os britânicos e os americanos instituíram também Centros de Interrogatório Directo com o objectivo de investigar atrocidades em tempo de guerra contra prisioneiros de guerra aliados, descobrir criminosos de guerra importantes e desvendar eventuais actividades subversivas que pudessem ameaçar a ocupação. Mas um ano depois do fim da guerra, as prioridades tinham mudado; deviam concentrar-se na recolha de informações sobre os russos. Elementos de qualquer nacionalidade que houvessem tido quaisquer contactos com a zona soviética enquanto desertores, refugiados ou ex-soldados russos e que haviam caído nas mãos britânicas ou americanas podiam ser levados para um desses centros de interrogatório e submetidos a uma terrível brutalidade. Entre eles, estavam agentes soviéticos. O tratamento que levava à tortura seguia um padrão familiar. Os prisioneiros eram preparados para o interrogatório por guardas que tinham as suas próprias contas a ajustar (alguns deles tinham sido prisioneiros dos nazis ou sido forçados a trabalhar para eles). Entre outras coisas, os seus métodos incluíam espancamentos selvagens, privação de alimentos, privação de sono e remoção da roupa. Os homens eram forçados a ficar de pé durante horas. Alguns deles só conseguiam ir para o interrogatório a rastejar. Muitos não saíam dali vivos.
Execuções encenadas
Sobre Schwäbish Hall, uma prisão particularmente infame perto de Estugarda para oficiais suspeitos de crimes graves, MacDonogh escreve: "Os americanos tinham usado métodos semelhantes aos que eram utilizados pelas SS em Dachau. Um deles era manter o prisioneiro durante longos períodos na solitária.... Pior ainda eram as execuções encenadas, em que os homens eram levados com a cabeça coberta com um capuz, enquanto os guardas lhes diziam que estavam a aproximar-se da forca. Os prisioneiros eram mesmo levantados do chão para se convencerem de que estavam prestes a oscilar.
Métodos de tortura mais convencionais incluíam pontapés nas virilhas, privação de sono e alimento e espancamentos selvagens. Quando os americanos instituíram uma comissão de inquérito para analisar os métodos usados pelos seus investigadores, descobriram que, dos 139 casos examinados, 137 "tinham ficado com os testículos permanentemente destruídos por pontapés infligidos pela equipa americana de investigação dos crimes de guerra"."
Nas prisões geridas por britânicos, quando já nada mais conseguia ser extraído a um prisioneiro, este era trazido perante um tribunal militar secreto onde era julgado por uma acusação fictícia; o seu silêncio era punido com uma pena de prisão pesada. O braço político da Comissão de Controlo britânica rapidamente pôs um fim a esta prática. Segundo um documento do braço político, não se poderia atribuir uma pena fosse de que tipo fosse a alguém "cujo único crime era ter a infelicidade de ter adquirido um conhecimento demasiado detalhado dos métodos [britânicos] de interrogatório".
Um relatório sobre os métodos desumanos usados no centro de detenção Bad Nenndorf na zona britânica chegou às mãos de Hector McNeil, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. McNeil advertiu que, se alguma fez fossem feitas denúncias quanto aos métodos da polícia política na Europa de Leste, "seria o suficiente para intervir em "Bad Nenndorf" e não restar [aos ingleses] qualquer resposta". Uma comissão de inquérito produziu um relatório consternador. O coronel Robin Stephens, o comandante do campo de Bad Nenndorf, seria levado a tribunal marcial. No entanto, houve um alvoroço considerável no Foreign Office e no Exército. A existência de centros de interrogatório, a sua táctica para obter informações sobre métodos operativos e os resultados alcançados poderiam ser revelados em tribunal.
A brutalidade tinha objectivos concretos. Os interrogatórios geravam informações sobre detalhes da organização do MGB (Secretaria de Estado da Segurança), o MVD (Ministério de Assuntos Internos na zona soviética) e os seus contactos com o KPD (o partido comunista) nas zonas ocidentais. Aquilo que também foi compilado era o que mais se aproximava de uma quase completa ordem de batalha do Exército Vermelho no Ocidente. O julgamento foi um fiasco e Bad Nenndorf foi encerrado. Restaria um centro de interrogatórios na zona britânica. Quando o secretário de Estado para os Assuntos Alemães, Lord Pakenham, o visitou em 1947, ficou preocupado ao ver que 11 dos 18 interrogadores tinham sido funcionários em Bad Nenndorf. No entanto, o governador militar, Sir Brian Robertson, insistiu em que, embora se opusesse firmemente a métodos brutais, era responsável por fazer com que o centro "servisse eficazmente o objectivo para o qual fora instituído".
O Exército dos Estados Unidos não desejava tirar partido dos seus prisioneiros de guerra. A ideia de trabalho escravo não seria bem recebida no país. Mas os ingleses tinham outros planos para os seus. Eisenhower dera ordens para que os prisioneiros de guerra fossem classificados como "desarmados a aguardar libertação e à discrição dos comandantes-chefe". Mas, se não eram já prisioneiros, não poderiam ser usados como trabalhadores cujo trabalho gerasse compensações.
Trabalhos forçados
Os ingleses calcularam que precisariam de cerca de meio milhão de homens para trabalhar (sobretudo na agricultura) e em finais de 1946, como escreve MacDonogh, havia perto de 400.000 prisioneiros a trabalhar na Grã-Bretanha. Estes homens estavam classificados como prisioneiros de guerra, mas com o fim das hostilidades isso era um pormenor de ordem técnica. De facto, os prisioneiros realizavam trabalhos forçados. Porém, como observou o Foreign Office, "não havia necessidade de o dizer". Muitos prisioneiros alemães repatriados de centros de detenção no estrangeiro não foram libertados, mas antes mantidos em centros transitórios na Alemanha e na Bélgica enquanto esperavam pela deportação para a Grã-Bretanha.
As condições nesses centros de prisioneiros de guerra eram aterradoras. Eram muitas vezes geridos por Dienstgruppen, forças laborais de ex-soldados alemães sob controlo militar britânico. Os guardas alemães, muitos dos quais eram ex-nazis, ficavam com a maior parte dos alimentos. Não havia camas decentes; os homens dormiam sobre palha no chão. Não havia iluminação adequada (apenas quatro lâmpadas eléctricas num campo inteiro). Não havia nem sabonetes nem toalhas: em alguns casos, 500 homens tinham de usar uma única casa de banho ou uma bacia com água corrente que gelava no Inverno. Relatórios destas condições começaram a ser emitidos pela estação de rádio soviética em Berlim. Os ingleses desmentiram-no publicamente. Mas MacDonogh escreve que o uso dos Dienstgruppen levantou suspeitas a Estaline de que os Aliados mantinham o Exército alemão para uma eventual utilização contra a União Soviética.
Cada uma das quatro potências decidiu criar na sua zona uma Alemanha à sua imagem. Os americanos queriam um país auto-suficiente de onde pudessem sair o mais cedo possível. Os ingleses eram mais controladores. Cada alemão era suspeito e por isso todos os alemães em cargos oficiais tinham de possuir um Doppelgänger (duplo) inglês. O contraste entre as atitudes inglesa e americana é demonstrado pelas estatísticas do Conselho de Controlo. No início de 1947, o número de funcionários americanos era de 5008, enquanto o de ingleses era 24.785.
O general Templer, conselheiro do marechal Montgomery, comentou com tristeza: "Os americanos dominam a arte do controlo indirecto. É evidente que o mesmo não se passa connosco." O Foreign Office britânico reconheceu em privado: "Os russos foram talvez mais eficazes no seu controlo da Alemanha do que nós e com muito menos governadores militares que tendem a ser mais autoritários do que os seus homólogos ingleses." E, no entanto, o próprio Montgomery advertira o Governo: "[Excepto para certos assuntos de controlo reservados em Potsdam,] as melhores pessoas para lidarem com as muitas dificuldades que atormentam o dia-a-dia na Alemanha e para a defrontarem no futuro não somos nós, mas os alemães. Eles sabem muito melhor do que nós como lidar com os problemas do seu país e não são inferiores a nós quer em inteligência, quer em determinação."
Código de conduta
Em Abril de 1945, o Governo norte-americano emitira uma directiva para o general Eisenhower. Isto fora incorporado pelos chefes de estado-maior num manual - JCS1067 - que os Aliados haviam adoptado como código de conduta da ocupação. A primeira tarefa seria a extinção do governo nazi e das leis nazis, bem como a destituição dos seus líderes. Isso foi feito rapidamente. Membros do partido deveriam ser excluídos de cargos públicos e de cargos de topo nas finanças, na indústria e no comércio, na agricultura, na educação, nas editoras e na imprensa. Mas os Aliados reconheceram que a militância no partido fora praticamente uma condição de emprego e, assim sendo, os membros "nominais" não deveriam ser excluídos destas categorias. Seriam necessários para participar na reconstrução do país. Mesmo assim, o Presidente Roosevelt afirmou que não abriria excepções com base em necessidade ou conveniência administrativas. A sua intransigência (e a de Truman, a seguir à sua morte) revelar-se-ia uma enorme dor de cabeça para os ocupantes, em particular na zona britânica industrializada.
Foi decretado que os que haviam sido afastados dos seus cargos deveriam ser substituídos por pessoas seleccionadas pelas suas "qualidades políticas e morais". Contudo, já ficara decidido que a Alemanha tinha falta de pessoas assim. Um folheto distribuído aos militares prestes a entrar na Alemanha referia que "os alemães não estão divididos em duas classes - bons e maus alemães. Só há bons e maus elementos no carácter alemão, sendo estes últimos geralmente predominantes".
Todos os que se candidatavam a um emprego tinham de ser "desnazificados." O instrumento de desnazificação por excelência era o Fragebogen. Tratava-se de um questionário que requeria respostas a 133 perguntas que cobriam todos os aspectos da vida do candidato e remontavam aos anos de 1920. E, para que nada pudesse escapar, num resumo final pediam-se pormenores de "eventual associação, sociedade, fraternidade, sindicato, câmara, instituto, grupo, corporação, clube ou outra organização de qualquer tipo, fosse social, política, profissional, educativa, cultural, industrial, comercial ou honorária, à qual alguma vez [o inquirido tivesse] estado ligado ou associado". Como resultado das deslocações e da destruição de bens desde 1939, prestar essas informações era obviamente difícil. No entanto, declarações falsas, omissões ou respostas incompletas poderiam resultar em acção judicial. E ser-se rejeitado significava que não se conseguiria trabalho e sem trabalho não se receberia cartões de racionamento.
A desnazificação começou demasiado tarde e durou demasiado tempo. Os alemães gracejavam com o Reich de mil anos de Hitler: 12 anos de nazismo e 988 anos de desnazificação. Em Outubro de 1947, dois anos e meio após o fim da guerra, a tarefa foi finalmente transferida para os estados alemães, Länder, com instruções para ficar terminada no dia 1 de Janeiro de 1948.
Em Potsdam, os líderes aliados haviam decidido que os civis não poderiam ser acusados de qualquer delito criminal, mas os que eram considerados "pessoas perigosas para a Ocupação ou os seus objectivos" deveriam ser detidos e internados. Esta definição abrangente teve como resultado que muitos milhares de homens foram colocados em centros de detenção de civis, onde eram mantidos sem acusação formal, julgamento ou expectativas de libertação. Foram aproveitados antigos campos de concentração para esse fim. Na zona britânica, os civis detidos, jovens ou idosos, eram mantidos em condições medonhas: lotação excessiva, tratamento deficiente, falta de condições sanitárias, falta de iluminação, falta de protecção contra os elementos e pouca água e alimentos. Muitos deles dormiam no chão. Os cuidados médicos não incluíam esterilização, nem anestesia.
Corrupção endémica
Em Janeiro de 1948, o governador militar britânico, Sir Brian Robertson, reconheceu que "os métodos [britânicos] têm sido algo rudes e grosseiros " e que três anos após o final das hostilidades procedimentos não compatíveis com a lei britânica não podiam ser justificados. Foi finalmente decidido que era "politicamente desejável que no dia 1 de Setembro de 1948 se enterrasse o passado".
Nesta sociedade fracturada de ricos e pobres, a corrupção era endémica. Os cigarros eram a moeda de facto. O saque ocorria a todos os níveis. Quando a Villa Hügel em Essen, lar da família de industriais alemães Krupp, foi desocupada pela divisão de controlo do carvão da Comissão de Controlo britânica, haviam desaparecido bens no valor de cerca de dois milhões de marcos. Os serviços secretos britânicos e americanos uniram esforços para investigar um vasto mercado negro. Um relatório confidencial regista este mundo de Harry Lime. Todos traficavam: os Aliados, antigos oficiais alemães das SS, checos, jugoslavos, dinamarqueses, suecos, suíços e até mesmo o pequeno número de chineses que surgiram como aliados em tempo de guerra.
Uma fábrica de plásticos foi construída na Bélgica por americanos com maquinaria alemã transportada através da zona britânica em camiões a funcionar com combustível da ocupação. A lista das mercadorias negociadas era interminável: metais preciosos, antiguidades, quadros, peles, tapetes, binóculos, microscópios, equipamento fotográfico, joalharia e pedras preciosas. Todas as drogas estavam à venda. Até a rádio mudava de mãos. Passaportes, vistos, autorizações de entrada e de saída e documentos de identidade, tudo se arranjava. A quantidade de imobiliário em Berlim adquirida por estrangeiros não era contabilizável. A Comissão de Controlo advertiu que o comércio ilegal ameaçava arruinar o pouco que restava da estrutura financeira e económica da Alemanha.
A ausência, por morte ou aprisionamento, de tantos homens e por tanto tempo deu origem a um vácuo social e moral. Muitas mulheres, agora os ganha-pão das suas famílias, trocavam sexo pelo quer que fosse dos PX ou dos NAAFI, para sobreviver ou vender no mercado negro. O consultor de nutrição da zona britânica, Sir Jack Drummond, estabeleceu sucintamente a ligação: "As doenças venéreas entre as tropas da Ocupação estão intimamente relacionadas com o desenvolvimento de carência alimentar entre a população. Diria, inclusivamente, que cada uma delas pode ser tomada como aferição da outra."
Na presença dos oficiais de topo dos serviços e da Comissão de Controlo, o capelão britânico, coronel Geoffrey Druitt, fez um discurso acusador na igreja em Berlim. O povo alemão, declarou, vivendo assim no meio dos escombros das suas cidades ocupadas por nações incapazes de encontrar uma política coerente, não consegue vislumbrar nem um começo nem um fim: "Uma triste percentagem dos exércitos da Ocupação desempenha um papel vergonhoso ao encorajar a podridão. Demasiadas pessoas exploram com lucros financeiros as necessidades materiais deste povo derrotado... A Alemanha tornar-se-á um perigo, não como potência militar, mas como a latrina da Europa, e isto será suficientemente grave para se afogar a si e aos seus vizinhos."
Oitenta e seis por centro da indústria pesada ficavam dentro da zona britânica, a área que fora mais duramente atingida pelos bombardeamentos. Milhares de civis eram agora sem-abrigo. Os britânicos vieram piorar a situação. Os alemães dessa zona deveriam dar lugar às famílias dos controladores militares e civis que vinham da Grã-Bretanha e viam-se forçados a amontoar-se no primeiro abrigo que encontravam: uma adega em escombros, um quarto numa casa em ruínas com apenas três paredes. Milhares mudaram-se para enormes torres destruídas, um conjunto de passagens de cimento sem aquecimento nem ventilação. Em Hamburgo, 38.200 pessoas foram desalojadas para dar lugar à construção de um vasto complexo do Exército britânico (que nunca foi construído). Administradores seniores no terreno estavam profundamente preocupados, mas tinham de cumprir as ordens provenientes de Londres.
Descontentamento britânico
A população fora não só desalojada, como também tinha fome. A falta de mantimentos de que os alemães sofriam não era deliberada, embora muitos pensassem o contrário. Parecia fazer parte do padrão. A área controlada pelos soviéticos fora o celeiro da Alemanha. À luz das disposições das indemnizações, os russos eram obrigados a enviar mantimentos para ocidente. Nunca o fizeram. Capitulação incondicional significava a obrigação de sustentar a Alemanha, se esta não o conseguisse fazer por si. A Grã-Bretanha aceitou ter carências no seu próprio país, o que enfureceu o ministro das Finanças. Isto era como indemnizar os alemães. O conselheiro político do ministro advertiu-o: "Não é por eles que pagamos. Temos de os alimentar ou sair de lá, mas, se sairmos agora, estaremos a convidar os russos a entrar." Todavia, as forças de ocupação não podiam ser responsabilizadas pelo terrível Inverno de 1946-1947, o mais agreste dos 100 anos anteriores. As vias fluviais a norte da Alemanha ficaram geladas durante meses. O efeito na distribuição de alimentos e combustível foi catastrófico. Para a maioria dos alemães, não havia luz, nem calor, nem comida, nem trabalho nem esperança.
O desemprego vinha juntar-se à falta de um tecto. Após a destruição de fábricas de armamento, a política económica dos Aliados deixava inicialmente aos alemães a capacidade industrial suficiente para alcançarem um reduzido padrão de vida baseado nos padrões de antes da guerra. Qualquer excedente produzido deveria ser partilhado como indemnização com todas as nações aliadas na proporção das suas perdas na guerra. O Presidente Truman declarou que os Estados Unidos não pretendiam obter da vitória nem vantagens materiais nem protecção para os mercados americanos. Os britânicos, no entanto, tinham outros planos. ("O objectivo principal da Ocupação é destrutivo e preventivo," escrevera Lord Cherwell, o general tesoureiro britânico, em Abril de 1945. "Espero que nada façamos para encorajar a reconstrução da indústria alemã.") A retirada de capital poderia captar permanentemente mercados de exportação anteriormente abastecidos pela Alemanha.
Indústria e desemprego
Muito do desmantelamento empreendido não era compreensível para os alemães. Maquinaria pesada vital para a reconstrução estava a ser demolida. Os homens estavam a ser lançados no desemprego sem perspectivas de voltarem a trabalhar. Muitos alemães começaram a temer que o que estava a ser levado à prática era algo como o Morgenthau Plan, proposto por Henry Morgenthau, o secretário do Tesouro de Roosevelt, em 1944, um plano para reduzir a Alemanha do pós-guerra a uma sociedade agrária. Isto nunca se tornou uma política efectiva e foi recusado por Truman. Mas gradualmente tornou-se conhecido pelos alemães. Houve motins e sabotagem em toda a zona britânica, em particular no Ruhr. As tropas tiveram de intervir. Os alemães temiam que o desmantelamento de máquinas industriais pelo Aliados estivesse a prepará-los para um futuro trabalho nos campos.
Um ano depois da Ocupação, Winston Churchill, então na oposição, viu com alarme aquilo a que a Alemanha ficara reduzida desde a sua capitulação incondicional. Discursando na Câmara dos Comuns, disse: "Nem nós nem os Estados Unidos nos podemos dar ao luxo de deixar o caos e a miséria continuar indefinidamente nas nossas zonas da Alemanha. A ideia de deixar milhões de pessoas viveram num estado sub-humano entre a terra e inferno até estarem reduzidas à condição de escravos ou aderirem ao comunismo só gerará, no mínimo, uma pestilência moral e provavelmente uma nova guerra. Deixai a Alemanha viver!"
Duas Alemanhas
Finalmente as coisas começavam a mudar. A importante política de unidade económica estipulada pela Conferência de Potsdam fracassara devido à recusa soviética em colaborar. Em Setembro de 1946, os americanos e os britânicos fundiram economicamente as suas zonas, e em 1948 emitiram uma nova moeda reformada - o marco alemão. Como retaliação, os russos bloquearam a entrada de abastecimentos nos sectores ocidentais de Berlim. Os Aliados reagiram com a ponte aérea de Berlim, uma manifestação espectacular não só do apoio dos Aliados à população alemã contra os russos, mas também da divisão formal do país. Agora passaria a haver duas novas Alemanhas.
Giles MacDonogh declara no início do seu livro que o seu tema é mostrar a vivência dos alemães na derrota. E não há dúvida de que o conseguiu. Mas também atraiu novas atenções para os actos questionáveis da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos durante a Ocupação. Como MacDonogh explica no seu prefácio: "Amigos meus, mesmo historiadores reputados, disseram-me frequentemente que os alemães "tiveram o que mereciam" em 1945. Era uma punição justa pelo seu comportamento nos países ocupados e pelo tratamento dos judeus no seu país. Este livro não se destina a desculpar os alemães, mas também não hesita em expor os Aliados vitoriosos no seu tratamento do inimigo em tempo de paz, pois em muitos casos não foram os criminosos que foram violados, mortos à fome, torturados ou espancados até à morte, mas mulheres, crianças e velhos. Aquilo que registei, e por vezes questiono aqui, é a maneira como muitas pessoas foram autorizadas a levar a cabo essa vingança por comandantes militares ou até mesmo por ministros dos governos; e o facto de, quando o faziam, muitas vezes matavam os inocentes, não os culpados. Demasiadas vezes os verdadeiros assassinos morreram nas suas camas."
As comparações
Por vezes o leitor fica quase entorpecido com as estatísticas envolvidas. Mas estes vastos cálculos são necessários para transmitir algo da escala da desumanidade do homem para com o seu semelhante. (As comparações ajudam: MacDonogh escreve que pelo menos 1,8 milhões de civis alemães morreram durante a guerra. No Reino Unido, o número de civis mortos "devido à operação da guerra" está oficialmente registado como sendo de 100.927.)
MacDonogh forneceu um fundo histórico para as histórias que nos contou, embora, como ele próprio o diz, isto tenha tido de ser feito na generalidade. Houve coisas boas e houve coisas más na Ocupação. Homens esclarecidos no topo do comando aliado na Alemanha esforçaram-se por mitigar o efeito de políticas disparatadas dos governos dos seus países. A um nível mais baixo, Günter Grass conta como um "oficial de educação" do seu centro de detenção tinha imensa dificuldade em explicar a prisioneiros alemães ignorantes a amplitude das atrocidades nazis e o Holocausto; e podemos ter a certeza de que este não é um caso isolado. Terminando a sua história no limiar de uma Alemanha nova, se bem que dividida, MacDonogh oferece-nos o relato de uma experiência humana trágica, e demasiado pouco conhecida, nas palavras daqueles que a viveram. Não é apenas uma história fascinante, mas um documento histórico valioso e único.

Exclusivo PÚBLICO/New York Review of Books

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