O restaurador excelentíssimo

É portuguesa a melhor edição do mundo a preto e branco do Príncipe Valente. Nacionalismo bacoco, exagero provinciano? Só pode pensar isso quem nunca viu os álbuns

a Houve dois golpes de sorte na vida de Manuel Caldas. O primeiro aconteceu aos 13 anos, quando O Primeiro de Janeiro lhe revelou as magníficas pranchas da série de BD Príncipe Valente. O segundo, já adulto, foi ter sido colocado na biblioteca da escola secundária da Póvoa de Varzim, onde trabalhou como auxiliar de acção educativa até há cerca de ano e meio.O que tem isso a ver com a actual situação de Caldas, editor independente de quadradinhos (Livros de Papel) a quem se deve o ambicioso projecto, em curso, de editar na íntegra o clássico norte-americano de Harold Foster em Portugal e Espanha? A resposta é simples: a paixão pelo Príncipe Valente ("fiquei assolapado", confessa), que nunca mais se extinguiu, pôde ser alimentada pelo tempo vivido no ambiente dos livros.
A escola ficou para trás e, embora beneficie presentemente de uma licença sem vencimento, o editor não tenciona regressar. Agora, o seu local de trabalho é nas águas-furtadas da casa onde vive, um edifício no centro da Póvoa de Varzim. No espaço acanhado e com pouco conforto, as estantes cheias de livros de BD (quase só clássicos americanos) coexistem com pilhas de álbuns prontos a expedir, uma secretária com computador e scanner, e algum mobiliário ali armazenado. Na porta de entrada está colado um poster gigantesco com pranchas de Príncipe Valente, anunciando um território onde Caldas passa horas e horas num trabalho muito solitário. "Eu só vou lá abaixo para sentir o ambiente. Quando os filhos eram mais pequenos e precisavam de mim, vinham bater-me à porta. Agora sou eu que preciso deles..."
Tirando o facto de trabalhar em casa, nada parece distinguir este pequeno editor de outros que elegeram a BD como matéria-prima de edição. Mas há uma diferença, e de peso: Manuel Caldas só publica as bandas desenhadas de que gosta. Antes disso, porém, entrega-se a um laborioso e exigente processo de restauração dos desenhos, das vinhetas e das pranchas até atingir um grau de perfeição que as torna únicas. E isso torna-o também único no mundo.
Trabalho insuportável
Dar à estampa uma edição integral de Príncipe Valente foi o seu sonho de sempre. "Eu costumava dizer que podia morrer quando acabasse de editar "Val" [diminutivo por que é conhecida a personagem no meio da BD]", afirma com um sorriso tímido.
Optou por uma versão a preto e branco - a série original, publicada nos jornais, era a cores - por razões económicas, mas a boa receptividade do mercado já o faz pensar numa outra edição, desta feita definitiva e a cores.
Manuel Caldas sabia no que se metia quando começou a trabalhar há três anos, pois as edições disponíveis deixam muito a desejar, incluindo as americanas. Não existem originais e a sua principal fonte foram fotocópias a preto e branco das provas originais cedidas pelo King Features Sindycate, a agência detentora dos direitos da série. O problema é que faltam bastantes, sobretudo dos primeiros anos da série, e a qualidade de muitas "é péssima". Nesses casos, Caldas teve de recorrer às páginas dos jornais americanos, às quais retirou a cor, restaurou as tramas e as manchas de negro e depois "limpou" pacientemente os cinzentos até obter o traço final pretendido.
Se a prancha está em bom estado, uma ou duas horas são suficientes para obter o resultado final. Quando assim não acontece e é preciso deitar mão às páginas de jornal, são necessários dois dias inteiros de trabalho intensivo para obter uma prancha. "Se não gostasse muito da banda desenhada, fazer este trabalho era-me insuportável", reconhece Manuel Caldas.
A tecnologia digital veio em auxílio do editor. Hoje, todo o trabalho é feito em computador graças a um software já velho e ultrapassado, mas com o qual Caldas se dá às mil maravilhas. Antes disso, a recuperação da obra era feita com tesoura, cola e fotocópias para aproveitar a melhor impressão do material de que dispunha. "Cheguei a obter pranchas compostas por bocados provenientes de três originais diferentes."
Com os seis álbuns publicados até à data, o pior já lá vai. O sétimo volume está pronto e, se tudo correr bem, espera concluir a edição dos 22 volumes previstos dentro de cinco anos.
Aposta ibérica
Os primeiros álbuns estão esgotados e isso demonstra que existe mercado para clássicos da BD de boa qualidade. "O Príncipe Valente interessa a muita gente", diz, lembrando que a série se publicou durante décadas no jornal O Primeiro de Janeiro, mas foi igualmente divulgada pela revista Mundo de Aventuras.
Os nostálgicos da obra não são um exclusivo português. Manuel Caldas cedo começou a ter pedidos de leitores espanhóis, atraídos pela excelente qualidade do trabalho. Tantas foram as solicitações que decidiu editar os álbuns em castelhano. Um dia bateu-lhe à porta um distribuidor espanhol interessado em pôr os livros no mercado. Fez bem em aceitar: "Em Espanha a distribuição funciona muito melhor do que em Portugal."
Quando começou a ganhar dinheiro como editor, Manuel Caldas decidiu que tinha chegado a hora de levar "as coisas muito a sério". Material e ideias não lhe faltam. Assim, no começo do próximo ano surgirá o primeiro de quatro álbuns, a cores, da integral de Lance, um clássico de Warren Tufts que Caldas considera ser "o Príncipe Valente do western". Outra obra prestes a sair, mas apenas distribuída no mercado espanhol, é a série Randall, de Arturo del Castillo (desenho) e Hector Oesterheld (texto) - neste caso, em consequência da insistência do crítico e estudioso Domingos Isabelinho. Little Nemo, de Winsor McCay, e Rip Kirby, criado por Alex Raymond e depois prosseguido por John Prentice, são outros clássicos que pensa seriamente em publicar.
Leonardo de Sá, estudioso da BD, reconhece que só tem "elogios a fazer" ao trabalho do editor da Póvoa de Varzim: "É admirável e quase incrível que isto aconteça em Portugal - as reedições de material americano acabam por ser melhores do que o que é editado naquele país." Ora, acrescenta, isto só se obtém graças a um "trabalho ingrato" e a "uma paciência infinita".
Para o crítico e divulgador João Paiva Boléo, Caldas é um "autodidacta admirável", que revela "um rigor e um amor pelas coisas que é extraordinário". Lamenta que as traduções nem sempre sejam boas, mas é taxativo ao afirmar que "não se pode fazer a história da BD em Portugal sem ele".
Olhando para os projectos e ideias, é fácil concordar com Caldas quando ele afirma: "A minha sina é só meter-me em coisas que dão muito trabalho de restauro e que ninguém quer fazer". Mas não há sombra de mágoa ou resignação no que diz. Pelo contrário: "Nunca me atrevi a sonhar com isto, editar a banda desenhada de que gosto." É o que Manuel Caldas faz, e com imenso prazer.

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