O mundo sem nós

"Eu Sou a Lenda" é uma espécie de duche de água fria na quadra natalícia e só um astro com a popularidade de Will Smith seria capaz de o elevar ao título de campeão de bilheteira.

Nos primeiros quatro dias de exibição nos EUA, "Eu Sou a Lenda" arrecadou 75 milhões de dólares nos cinemas americanos - deve ser um recorde qualquer, mas o mais extraordinário é que esse recorde é feito com um filme que, por trás da sua aparência de "blockbuster" feito à medida para um actor de estatura global, é um objecto angustiante com uma alma de série-B de género.

Pode-se dizer que lhe está nos genes: a origem de "Eu Sou a Lenda" é o romance de Richard Matheson, argumentista de longa e ilustre carreira na televisão e no cinema (devem-se-lhe alguns dos mais lendários episódios da "Quinta Dimensão" original e muitos guiões para Roger Corman). Publicado em 1954, o romance acompanha o último homem na Terra, um cientista que sobreviveu a uma epidemia devastadora, e foi já por duas vezes adaptado ao cinema (em 1964 por Sidney Salkow com Vincent Price, em 1971 por Boris Sagal com Charlton Heston). Esta terceira versão foi entregue ao expublicitário Francis Lawrence ("Constantine") depois de ter passado pelas mãos de Ridley Scott ou Michael Bay ao longo de quase uma década de pré-produção, e o dinheiro investido para criar uma Nova Iorque deserta e devolvida à Natureza no espaço de três anos vêse em cada centímetro de écrã.

Não serve de nada, no entanto, gastar dinheiro à vara larga se não houver no centro do filme um actor que o mantenha de pé. Ao longo de dois terços da sua hora e meia, "Eu Sou a Lenda" só tem uma personagem: Robert Neville, virologista militar habitando uma Nova Iorque deserta, procurando teimosamente encontrar a cura para um vírus artificial pensado para curar o cancro mas que se transmutou incontrolavelmente e fez a população exposta regredir ao estatuto de animais sanguinários.

Para quem ainda duvidava dos reais talentos de Will Smith, não é qualquer carinha laroca que aguenta sozinho um filme durante uma hora e picos e consegue fazer passar ora a loucura à espreita depois de três anos sozinho numa metrópole deserta, ora a determinação quase maníaca de alguém que, literalmente, vive apenas para cumprir um objectivo.

Essa primeira hora sinistra e angustiante em que o actor vagueia por uma Nova Iorque fantasmagórica instala uma atmosfera inquietante que é ao mesmo tempo eco da ficção científica distópica dos anos 1970 (nomeadamente da estranheza de "THX-1138", "O Homem que Veio do Futuro" ou "À Beira do Fim") e metáfora e espelho do mundo pós-11 de Setembro (invocando a aterrorizante metáfora do 11 de Setembro que era a primeira hora da "Guerra dos Mundos" de Spielberg, uma sensação de horror surdo amplificado pelo silêncio espectral da Times Square deserta saída do livro de Alan Weisman "O Mundo sem Nós").

Enquanto vamos por aí, vamos muito bem - mas os efeitos especiais que transformam Nova Iorque numa selva urbana criam também um punhado de zombies por demais artificiais que vão metodicamente erodindo a credibilidade do projecto. E é pena que assim seja, porque se não fosse esse artificialismo, "Eu Sou a Lenda" teria sido uma grande fita de ficçãocientífica negra e distópica. Assim, é um esforço mais que honroso, um filme singularmente estranho e surreal que, mesmo ficando a meio caminho, continua a ser um dos mais invulgares "blockbusters" americanos recentes.

Sugerir correcção
Comentar