Torne-se perito

Terras do Barroso em dez andamentos

Afiam-se facas pela manhã. A geada cobre os campos. Quando derreter, bota-se o gado. Metro e meio de neve, era dantes. Há menos água, menos braços. Os novos fogem. Mas em véspera de Natal juntam-se aos velhos. Em muitas casas o porco já guinchou. A melhor faca é para ele.
Primeiro de seis trabalhos sobre o meio rural. Por Alexandra Lucas Coelho (texto) e Nélson Garrido (fotos)

1. Ana Maria pousa as couves e reza
A24, Porto-Chaves, zero graus às dez da manhã, sol sobre as montanhas, moinhos de vento ao fundo, quase ninguém. De repente, tudo branco. O termómetro cai, menos um, menos dois. Não se vê nada, nem o capot. Um túnel de nevoeiro. Quando se desfaz, campos cobertos de geada.
Cortada para Montalegre. Mato rasteiro e grandes pedras. Meixide. Ainda casas de granito, já portas de alumínio. Vilar de Perdizes, Solveira, Meixedo. Ainda geada. Placas a apontar: "Forno do povo." E muito ao fundo, dominando tudo, a torre de menagem do castelo de Montalegre, como se fôssemos a caminho do século XIV - não fosse a avenida dos emigrantes à entrada, e logo a rotunda, imortalizando dois bois às cabeçadas.
É a "chega de bois". Só acaba quando um desiste. Faz as vezes de tourada e futebol, aqui.
Até ao Gerês, estas são as altas Terras do Barroso, de muita água, boa para cereais e batatas e para os lameiros onde pastam as vacas. Cada família tem o seu lameiro e o monte é de todos, o monte baldio, das giestas e das urzes, onde vacas, ovelhas e cabras crescem e vão botando crias sem ração, rijas. Esta manhã ainda há-de trazer um auspício de cabrito, vai que não vai.
Cheira a lareira na direcção de Mourilhe, carvalho a queimar com carqueija. Os carvalhos estão por toda a parte, cor de ouro velho ou damasco, quando o sol atravessa as copas outonais. E a carqueija além de chá dá bom lume.
Alminhas de Sabuzedo, depois Nossa Senhora dos Remédios - é isto. A casa do homem que trouxe milhares ao Barroso e os barrosões conhecem e reconhecem. Padre Fontes estreou-se como pároco em Tourém e Pitões, fez-se famoso em Vilar de Perdizes e vive actualmente em Mourilhe, onde recuperou uma antiga casa fidalga do século XVIII, agora Hotel Rural Senhora dos Remédios.
- O Torga diz que Trás-os-Montes é o reino maravilhoso e isto é um pedaço do reino - resume ele, depois de D. Glória, que governa a manhã, ter posto sobre a mesa pão de Pitões, mel de urze e chá de abertónica.
A abertónica, uma das ervas que se dão aqui, tem um efeito fulminante, desde que se respira o vapor. Lá fora, o alecrim inebria.
- Nas altitudes os cheiros são mais fortes - adianta o padre Fontes - Como a gente.
E vai mostrar a capela da casa, que tem altar de talha cor de laranja e verde-garrafa. Junto ao presépio há galos que cantam a pilhas. O padre demonstra. Também toca o pequeno xilofone que ali pôs "para as crianças se entreterem", porque a capela é aberta à gente da aldeia.
É nisto que entra uma mulher de trança fina a embranquecer, galochas sujas de lama e cão atrás. Chama-se Ana Maria. Ajoelha-se e reza.
- Já tá na hora de botar o gado? - pergunta o padre.
- Ainda é cedo, geou muito - responde ela, saindo com o cão.
O padre Fontes continua a tocar o xilofone (É Natal, é Natal). No presépio também há perdizes e um tronco de videira.
Ana Maria apanha a saca de couves que pousara lá fora.
- Fui às couves para dar de comer às vacas.
Tem oito. Quando a geada derreter, vão ser botadas para o monte.
- Toda a gente bota. O monte é de todos. Só os lameiros é que são meus. Venha aqui...
Mesmo por baixo do jardim do padre Fontes
- Este lameiro é meu.
 Vêem-se os regos de água, muitos, entre a erva. Depois aponta um armazém do outro lado do campo.
- É a corte, para meter as vacas. É onde elas dormem, com o feno e as alfaias.
Tem "pr"aí 36 ou 37" anos, Ana Maria, duplamente mãe solteira.
- Fizeram-me duas meninas, uma com 14, outra com cinco.
Em casa são ela, as filhas, o irmão e a mãe. O pai morreu num acidente de tractor. A trabalhar, é ela e o irmão.
- O meu irmão ainda agora foi abrir regos.
O que é que semeiam?
- Batata, milho, couves, beterrabas... fruta não se ajeita aqui. Tenho ali uma ameixoeira, mas já não dá, não vê a geada? Tenho videira com cachos de uva vermelha.
Para comer, que aqui não se faz vinho.
O cão ladra em volta. Ana Maria chamou-lhe Joli, o que não é estranho em terra de emigrantes. Ela não fala francês, mas consegue ler uma carta em português, até escrever "com muitos erros".
- Depois da 4ª classe tiraram-me para ir com as vacas. Já tive rês, mas agora só vacas. A rês cansa a gente, são muitas molhadelas. A minha doença foi o monte.
Põe a mão nas costas, com uma careta. Rês são rebanhos de cabras ou ovelhas. Ao contrário das vacas, não podem ficar na corte quando chove, a comer feno. Com sol ou chuva têm de ir ao monte. Daí as molhadelas.
- Deixava a roupa no corpo, só vinha à noite mudar-me... A vida é fodida. São dores de reumatismo. Fui ao doutor galego, fui metida numa máquina, mas nem posso com a saca.
Mete-a debaixo do braço.
A filha mais velha já chegou mais longe na escola, mas é "até ajeitar um emprego". A história do presumível pai - aliás, pais, porque a mais nova é de outro homem - podia ter 100 ou 200 anos.
- São famílias ricas. Um ainda dá uns escudos, mas o outro nada.
Ana Maria enreda-se numa história de testes de sangue que ainda foram fazer ao Porto e deram em nada. Um dos homens até era primo do seu pai, homem já para cima dos 70 e solteiro.
- Ele disse-me: "Depois os meus irmãos sabem e matam-me."
Por causa da herança. Bem pode a lei dizer que já não há filhos ilegítimos.

2. David bota as cabras antes de ir para FrançaAlgumas casas adiante fica o largo principal de Mourilhe, onde a esta hora se regista uma concentração de cabras, com cães num alarido. Este é o rebanho de David, 18 anos.
- O mais jovem cá da terra... às tantas o único - diz alguém. Uma velhinha de preto olha o fenómeno dos forasteiros. E o padre Fontes, que acompanha a saída da rês, cantarola: "David era pastor..."
Céu azul, ar gelado. Pelas contas de David, 94 cabras e seis bodes de raça bravia arrancam ao som de chocalhos pela estrada que vai para Pitões das Júnias, acompanhados por três cães que ladram muito, dão cambalhotas e parecem morder nada.
- Eu tinha 16 anos quando comprei as cabras - diz David, como se isso tivesse sido há muito tempo. Comprei 50 e fui criando. Elas parem duas vezes por ano.
Multiplicam-se bem. David comprou cada uma a 70 euros, ou seja, gastou 3500 euros para ter um rebanho.
Há terras na família, mas só do lado da mãe, o pai era "de longe". O que o rebanho dá, a 200 cabritos vendidos, são uns 10 mil euros por ano.
- Mais que as vacas, mas também dá mais trabalho.
Porque mesmo que chova, lá está, vão ao monte.
E o monte é isto, saindo da estrada, morros de tojo, urze e giesta, pedra e arbusto que a rês vence a tilintar, e em grande comezaina. Os cães enrolam-se e correm, a arfar. E de minuto em minuto a rês cansa-se daqueles arbustos e corre montes e vales. As cabras dão mais trabalho também porque não páram quietas. David almoçou antes de vir, e até às 16h não vai ter descanso.
Agora a rês está a comer a erva de um pobre campo de futebol enlameado, especialmente na zona de uma baliza, mas já aí vem o pai de David, Sebastião, 50 anos, ajudar a que tudo vá para a frente, com a sua sachola.
Na aldeia de Mourilhe já não há vezeiras, a tradição comunitária barrosã em que se juntam os rebanhos de todos e um dos donos, à vez, vai pastoreá-los.
- Chegou a ser uma vezeira de mil e tal cabeças e cada um fazia três ou quatro dias, mas veio uma doença e as pessoas, com medo, venderam.
Agora, há pouca rês na aldeia, não dá para uma vezeira. Este é o maior rebanho, de longe. No Verão sai cedo, às 7h. Cordeiro assado é mais gostoso que cabrito, acha Sebastião, mas ambos são petiscos. Por que é que a carne do Barroso é famosa?
- Há-de ser por causa do mato, das comidas que aqui comem. Aqui não se deita ração.
Tal como a vezeira, o forno do povo já se perdeu em Mourilhe.
- Agora qualquer pessoa tem o seu forno.
Mas a matança do porco ainda é colectiva, com um a ajudar o outro. Ainda amanhã Sebastião vai ajudar um, sem paga.
- Pagar?! Não custa nada ir lá matar um animal daqueles. Depois de amanhã ele vai fazer uma coisa para mim, é assim uns para os outros, e torna-se bonito.
Sebastião tem olho vivo, azul, sob o boné, feições miúdas que o filho herdou. Na subida para a capela, aponta em volta.
- Em 1980 não vínhamos aqui, era uma altura de neve aí com um metro e meio.
Dentro de dias há-de nevar uns centímetros. Sebastião não diz "alterações climáticas", mas sabe o que é que isso quer dizer.
- Fazia falta a neve. Matava bichos, como ratos. Alguns parecem coelhos. E chove menos.
Lá em baixo avistam-se duas vacas e um burro a caminho do monte. Arbustos de giesta ao longo do trilho, e depois fora do trilho pisam-se carqueijas.
- Isto bota flor, isto flor bota, torna-se lindo em Março - diz Sebastião. Nas partes à sombra a geada ainda está dura. Hoje já não derrete. Além dos ratos e dos coelhos, que bichos há?
- Javali, corça, raposa, lebre, perdiz...
É preciso lavrar sempre os campos, para o javali "não dar cabo de tudo".
Nisto, já o rebanho andou tanto com David que nem se ouve. É preciso correr atrás dele para um vale. Sebastião está inquieto por causa de uma cabra à beira de parir. Pôs-lhe a mão e sentiu a cabeça do cabrito. E um recém-nascido não consegue voltar sozinho. Como cem cabras se espalham bem entre arbustos, ainda demora a encontrar a tal, e quando aparece não parece grávida. Magrita, até, pensam os forasteiros. Sebastião mantém: é hoje.
E vai ter razão. Mas para já há que ir ver umas vacas. Assim, deixando David com a rês, segue-se o trilho para baixo, com Sebastião a contar a animadora história do javali que comeu a barriga das pernas a um desgraçado.

3. Manel tem oito vacas, nenhuma é barrosãNa estrada para Pitões sobem agora tantas vacas como ovelhas, oito de cada.
As ovelhas são do senhor António, 73 anos, que tem uma daquelas caras que parecem estar sempre a rir, como um chinês, mas transmontano de boné. Traz uma sachola para limpar o campo.
Quanto às vacas, pertencem ao senhor Manel, 35 anos, que não pára para conversas até chegar ao pasto, com tudo a arfar atrás, ovelhas, cães e gente. Os bichos espalham-se a comer, António mete a sachola à terra, e Manel enfim fala.
- Comprei cinco vacas há dois ou três anos, as outras foram criadas.
As famosas barrosãs têm uns grandes cornos. Estas, não.
- São cruzadas - confirma Manel.
- Aqui na aldeia é tudo tipo isto. As barrosãs custam mais a desenvolver os vitelos.
Ao longo do Alto Barroso, esta conversa repete-se e o que mais se vê são vacas cruzadas. Dão mais dinheiro mais depressa. E depois discute-se: uma vaca que coma as ervas do Barroso, que faça a vida das outras, ainda que não seja de raça barrosã, não será também barrosã?
Estas que aqui estão custaram entre 900 e 1300 euros cada. Manel consegue por cada vitelo entre 750 e 850. Oito vitelos por ano, dá 500 euros por mês, ou pouco mais.
Tal como as vezeiras ou o forno, o boi do povo - que cobria as vacas de todos - foi outra tradição que se perdeu em Mourilhe.
- Agora são injectadas por um injectador - explica António.
- É, agora é à base de injecções - corrobora Manel, apoiado no cajado. Tem um boné da Benetton, mas bastante gasto.
Os bois continuam a ter serventia é nas "chegas".
Quanto aos campos, um destes dias nem vacas, acham Manel e António.
- Agora já há muito pouca barrosã, mas cruzada também. Os rapazes novos vão-se embora, acaba por não haver quem trabalhe.
E não vale a pena dar o exemplo do jovem David.
- Em Janeiro vai para França, morto por isso anda ele, aqui não há ninguém para casar - revela António.
Por falar nisso, o trintão Manel continua solteiro.
- Pois é, há pouco pessoal. E em Montalegre só moças novitas.
Continua a viver com a mãe e com uma irmã, a quem "fizeram duas filhas".
É assim, portanto, que este Manel é o tal irmão de Ana Maria que andava abrir regos de manhã. Cá estão as oito vacas do sustento familiar.
Trabalho, além do gado e de um ou outro empregado na Câmara de Montalegre, não há.
Manel fala como a irmã.
- É fodida a vida aqui.
Nunca foi a Lisboa, e até tinha uma tia na Pontinha. Esteve em Vila Real durante a tropa, e no Porto. Uma vez também foi a Lamego. E há 15 anos meteu-se num autocarro para França.
- Visitar um tio que me ensinou a Torre Eiffel.

4. Ana do Guilhermino guarda a rês à vezO sol desce a caminho de Pitões das Júnias. Pitões são cornos e júnias virá do deus romano Juno, segundo convicção do padre Fontes. Além de castros e vestígios rupestres, o Barroso tem heranças romanas. Mas o povo não diz júnias, diz unhas.
A paisagem muda, torna-se rasteira. O Parque Nacional da Peneda Gerês começa aqui, e lá ao fundo já aparece o soberbo dentilhado granítico, aos pés do qual vive Pitões, a "aldeia mais alta do país".
Vaquinhas a recolher às cortes, casas de imigrantes, o desvio à esquerda para o mosteiro do século XII em ruínas.
O largo de Pitões é o da junta, chamado Largo do Eiró, que tem o café Rato do Eiró, uma única árvore decorada para o Natal, um bar fechado e bostas na rua. Cheira a gado.
De repente, um rebanho de cabras rua abaixo, e entre elas, troando à direita e à esquerda, as tresmalhadas, a pastora que se apresenta como Ana do Guilhermino, 61 anos - Guilhermino era seu pai.
Primeiro desconfia das fotografias (sabe-se lá quem aí anda e para o quê). Depois já fala, mas sempre a descer, que não há vagar, há que meter a rês na corte. Aliás, nas cortes, porque estas cabras têm mais que um dono. Eis então a vezeira que resta em Pitões.
- Só somos quatro, agora com o tempo isto acaba.
Hoje era dia de ir ela ao monte.
Quando as vacas também começam a descer a rua, é o verdadeiro engarrafamento animal. Vacas a trotar, cabras pelos degraus das casa, umas a serem empurrados para as cortes onde ficam a berrar, uma vaca teimosa que não anda nem levando com um pau literalmente nos cornos, pastores com cajados aos impropérios e uma fímbria de vermelho rubro no recorte negro da serra que daqui toda se avista, com uma lâmina de lua a nascer por cima, crescente.

5. Gracinda-mãe mete a chave no forno
O forno comunitário de Pitões ainda trabalha. Cá está ele, todo recuperado, grande como uma casita de granito, com porta de madeira. Quer a sorte que venha agora a passar uma velhinha de preto com um saco cheio de carcaças. E quando se lhe fala no forno ela diz:
- Por acaso eu tenho a chave.
É Gracinda da Glória, 80 anos, que mora já aqui, na casa vizinha ao forno, onde as galinhas andam muito entretidas. Vai buscar a chave e cá está, a superfície onde os pães aguardam em cima do lençol e a abertura onde se enfiam para cozer, tudo bem cuidado.
- Leva 60 pães. Ainda há um mês e pouco aqui cozemos pão de centeio. Antes cozia-se de centeio, de milho, de cevada. Agora só o de centeio. Quem coze é a minha filha, que tem a padaria, com o meu genro. Agora foi operada e não pode. Mas eu cozi aqui muito pão.
Quando todos o coziam.
- Antigamente, o centeio era segado à foicinha, faziam-se assim uns molhos, atei muitos, como corninhos... desculpe..., até fazer medas em forma de cruz.
Gracinda continua aqui, mas já esteve em França e na Espanha.
- Tive dez filhos, e todos criados a estes peitinhos.
Bate no peito magro. É miúda e rija, com uma fala ágil.
O marido morreu há muito. Era carpinteiro.
- Tinha sete irmãos com a mesma arte. Faziam obras finas. As mãos deles não haviam de ser comidas pela terra.
Dez filhos, pois é.
- Não sabe que não havia televisão? Isto era no tempo da escravidão, no tempo em que não havia uma arca para pôr a comida, a gente vivia da natureza.

6. Gracinda-filha faz bolo-rei na padariaAo cimo da rua por onde desce o gado, Gracinda-filha está a amassar. Ou a máquina por ela. O marido vai palpando e deitando água.
- A massa tem que ficar elástica.
Vai dar cem bolos-rei. Para o Natal também vão fazer pão-de-ló e rabanadas. Há bacias cheias de nozes e amêndoas.
Deixando a porta aberta, vê-se a serra ao poente, mas é melhor não. Gela. O padre Fontes dirá ao jantar que no Barroso existem duas estações, a dos correios e o Inverno. Num forno, como numa padaria, sempre se está quentinho.
- Trabalho no forno comunitário, mas agora que fui operada não posso, para já. E estou à espera que se arranje o tecto por causa da chuva.
O fogão também é a lenha, mas não é igual. Inox, tudo brilhante, e o pão distribuído de carrinha por várias aldeias. O Barroso é uma rede, necessariamente.
O filho e a sobrinha desta Gracinda, por exemplo, vão à escola primária noutra aldeia. A que havia aqui fechou.

7. Seis crianças, duas aldeias e uma escolaA escola de Tourém é uma casinha branca com erva à volta. Há um átrio e uma sala de aula, onde a professora Anabela hoje escreveu no quadro: "Tourém, 13 de Dezembro, prometemos ser amigos."
As mesinhas estão todas unidas ao centro, porque são só seis crianças. O João, a Magali e o Tiago, de Pitões. O Márcio, o Zé e a Gabriela, de Tourém. Uns andam na 3ª classe, outros na 2ª. Há um que já devia estar na 4ª, mas "mal sabe ler", diz a professora.
A Magali, que tem uns grandes totós negros, é a sobrinha da Gracinda da padaria, e o Tiago, meio arruivado e sardento, é o filho. Neste momento estão todos numa algazarra que a professora detém com um único trovão.
A escola é em Tourém e não em Pitões, porque o jardim-de-infância era aqui. Assim, o transporte de Pitões traz também os mais pequeninos. Ao todo, entre as duas aldeias, são seis na escola e oito no infantário.
Amanhã fazem a festa de Natal todos juntos, para os pais.
No 2º ciclo será mais difícil. Terão de ir todos, e os de outras aldeias, para a escola em Montalegre.
- Vão ter que se levantar às 6h30 - descreve a professora.
- Alguns têm que apanhar dois transportes. No Inverno saem de casa de noite e chegam de noite. E ainda dizem que todas as crianças têm as mesmas oportunidades.

8. João desenha uma pêra no chão Olhando para o mapa, Tourém é um dedo espetado em Espanha. O senhor João, que lá vive, prefere chamar-lhe uma pêra. Seja como for, um pedaço de terra cercado por galegos de todos os lados menos um. Tinha que ter história.
E a história, alimentada de lenda, conta que esta era uma zona franca galaico-portuguesa no caminho de Santiago, o que se chamava então "couto misto". Viviam galegos e portugueses, falavam-se ambas as línguas ou a mistura de ambas, pagavam-se impostos a ambos os reinos e os juízes locais é que faziam a lei. Imaginem-se os perseguidos, vagabundos, contrabandistas e aventureiros que por aqui não se acoitavam. Em 1856, numa troca de terras nesta fronteira, Tourém escolheu ser português, sempre de boas relações com o outro lado. Durante a Guerra Civil de Espanha, escondia galegos em casa e até hoje continua a passar a fronteira para ir ao médico ou ao mercado.
É uma aldeia de telhadinhos vermelhos, airosa e arejada, mais ampla do que Pitões ou Mourilhe, e com mais casas nobres.
No largo principal há um Comércio Geral, do senhor Henrique, 59 anos. Esteve emigrado em São Paulo, onde tinha um talho, mas voltou há cinco anos por causa da violência.
- Perdi o conto das vezes em que fui assaltado.
Aqui, é comum a loja estar vazia, como agora.
- É mais para os espanhóis.
A mulher toma conta do café-restaurante lá ao fundo, onde se dá de comer aos meninos de Pitões. Quem os vai buscar é o senhor Fernando, taxista e anfitrião do turismo rural Casa dos Braganças. E não muito longe dessa casa do século XVIII vive o senhor João, que aos 86 anos é o mais velho da aldeia e sai a mancar com bengala numa mão e canadiana na outra para apanhar o sol que dá ao lado de um espigueiro.
- É mais que tolo quem ao mundo dá satisfação, os próprios governos não se entendem - vem a dizer.
Também ele esteve em São Paulo e tinha um talho. Mas só foi uma vez assaltado.
- Ainda lá tenho 33 membros da minha família.
Quando lhe perguntam por Tourém, desenha a fronteira na terra, com a bengala.
- Olhe, é assim, do feitio de uma pêra encravada em Espanha. Já a minha mãe falava: isto havia de ser tudo livre, como quando foi lá da guerra de Afonso Henriques, Portugal e Espanha era tudo uma nação.
Quem vem de Pitões pode ir ter à aldeia de Randín sem dar conta, e só perceber que é Espanha, quando uma velhota falar galego. Não há sequer uma placa. O senhor João aprova. Isso é que é uma grande coisa da União Europeia.
- Toda a vida houve conversa daqui para lá, havia contrabandos, até vieram fazer uns casamentos de Randín, três ou quatro espanholas e daqui moços para Espanha. Os espanhóis vêm cá fazer compras, há quem trabalhe lá na estiva. Morre alguém em Randín e vai tudo daqui acompanhar.
E vice-versa.
Porque entre muito poucos todos se conhecem. Tourém não chega a 200 pessoas, calcula este ancião, e já teve 1200.
- Tínhamos muita lavoura e gado. Antes eram aquelas barrosãs, com os cornos.
Levanta os braços acima da cabeça.
- Dinheiro é que não havia. Dinheiro na mão, só tive aos 50 anos. Salazar defendeu-nos da guerra, mas não da fome.

9. Padre Fontes assa castanhas na lareira
Uma das razões para ir ao Barroso no Inverno é a lareira do padre Fontes. Lareira de chão como não há na cidade, e a gente à volta, antes da ceia. É por esta hora, lá fora escura e gelada, que António Fontes, 67 anos, tanto pode contar lendas do diabo, como falar do que o Barroso é e já não é.
- Vendiam-se batatas, centeio, porcos. Hoje, a maior parte das pessoas não cultiva para vender. Também não há gente jovem, e com a mecanização há mais mortes de tractor e menos entreajuda. O princípio da vezeira ainda existe, mas a maior parte das pessoas são idosas e já não tem pernas para andar com o gado. Os lameiros, que são zonas verdes muito bonitas, vão ganhando ervas. Há menos água, os rios vão mais secos e poluídos. Há menos peixe, truta, escalo e boga, menos lontras. Mais caça grossa e menos caça miúda. Menos pássaros, com os herbicidas. Onde há pesticidas, as ervas desaparecem. E a paisagem alterou-se com os incêndios, que são menos controlados. Como o forno do povo não funciona, não se corta mato para queimar, o que seria uma forma de eliminar material combustível.
Nas 135 aldeias do Barroso, calcula que haja agora 11 mil pessoas. Chegaram a ser 30 mil no tempo das minas de volfrâmio. A primeira emigração foi para o Brasil e Américas, a partir dos anos 20. A segunda para Angola e Moçambique, nos anos 50/60. A terceira para fugir à guerra colonial. A quarta para Alemanha, França, Bélgica, Suíça, Inglaterra, Espanha. Ainda em curso. Toda a gente tem família fora.
Natal é quando se juntam. E muitas casas já têm o porco ao fumeiro.

10. Abre o porco, verás o teu corpoVirgínia deita cebolas, alho e louro para uma velha lata de tinta que faz as vezes de caldeirão sobre brasas. Os porcos acabam de ser mortos e o sangue está a cozer. Vai servir de almoço. Mas por enquanto são nove da manhã. Os homens ainda têm tudo para fazer. António, o pastor de ovelhas que parece estar sempre a rir, vai buscar o maçarico. Este é o seu pátio. Virgínia é a sua mulher.
E todos ajudam. Cá estão Sebastião e o filho David. Cá está o matador Joaquim e mais dois rapazes que também hão-de aparecer na matança de amanhã.
Enquanto António chamusca o primeiro porco, os outros raspam o pêlo e as peles sujas com uma espécie de escova feita de caricas. O corpo balança na tábua suja de sangue. Cheira a pele queimada. Voam pedacinhos. Quando queimam os pés do porco ainda cheira mais. Queimam-nos muito para depois partir a unha. As galinhas cacarejam em torno de um bebedouro. Virgínia vai ver. Gelou. Calca a água rija com a bota.
Ao contrário, o sangue ferve e agora os homens raspam o nariz do porco.
- Isto é tudo para comer em casa, tudo para conservar - diz António.
- É para os netos, que lá não comem disto - acrescenta Virgínia.
Lá já foi Lisboa, mas agora é Portalegre, onde o genro é professor universitário e a filha advogada.
Não há como matar um porco em casa, acham todos.
- Assim sabemos como os matamos - diz António, puxando a mangueira.
- No matadouro lavam-nos com água quente, o que estraga a carne.
Aqui é com água fria.
António comprou estes dois porcos há dias. São comprados mesmo para a matança, de Inverno, para conservar tudo e para o fumeiro - as chouriças e enchidos pendurados na lareira. Se fosse no Verão, não se podia acender o lume.
- As chouriças ficam aí uns 15 dias, os presuntos é até Março, Abril.
Enquanto dois dos homens repetem as operações no segundo porco (chamuscar, raspar, lavar), o matador Joaquim afia a segunda faca, a de abrir.
Dentro da garagem, Virgínia tem um banquete preparado. Rabanadas e filhós, quartos de pão de trigo e fatias de centeio, chouriças e presunto do fumeiro passado, café quente num termo, cesto com loiça e guardanapos. É o almoço da matança, para acompanhar o sangue.
David, que está a esfregar o segundo porco com a mangueira, parte já dia 2 para França. Conta que em Paris tem a irmã e um cunhado. Vai trabalhar nas obras.
Nisto ficou pronta a faca de Joaquim, pedreiro de profissão, barrigudo e de bigode. Ao matador cabe também esventrar o porco.
- Comecei aos 15 anos a matar. Tem que se ter atenção para não rebentar as tripas. E também é o matador que leva a carne, e a salga.
Muita responsabilidade, nenhum pagamento.
- Hoje ajudo eu, amanhã eles ajudam-me a mim, a agarrá-lo, a limpá-lo. Depois os homem tomam um copo, as mulheres vão para o rio lavar as tripas...
É um grande dia.
E o Barroso orgulha-se da forma como mata os seus porcos.
- Os espanhóis não limpam tão bem como nós e abrem à moda do talho, só com um rasgão na barriga. Nós aqui, arredondamos.
Como se vai ver.
Vem então o primeiro porco para uma mesa improvisada, de patas para cima. Fica à mostra a barriga flácida, leitosa, com as tetas pequeninas dos porcos machos. O matador enfia a faca e ela desliza como manteiga, a toda a volta da barriga. Depois agarra-se a pele com a mão e puxa-se, separando as fibras. Sai o chamado courato inteirinho.
Por baixo fica uma camada gelatinosa e trémula, a gordura para os rojões. O matador corta-a sem hesitação e atira-a para outro alguidar. Tudo tem o seu sítio.
Segue-se a banha. Ficam então à vista as tripas, viscosas, semitransparentes. O matador dá um nó para não deixar sair porcaria, tendo já havido o cuidado de deixar o porco sem refeição na noite anterior.
A barriga fumega. As mãos do matador entram na fornalha e vão saindo de lá com formas e cores. Agora um rim roxo, agora outro rim roxo. Depois o enorme fígado castanho. Os intestinos são entregues a Virgínia. Ainda os bofes e enfim o coração.
Jorra então o sangue para fazer o chouriço de sangue e a morcela. A barriga está vazia até às costelas, os homens deitam-lhe vinho, para escorrer com o sangue. É já um tempero. E depois pendura-se o porco de cabeça para baixo, e fica a escorrer melhor até amanhã. O matador limpa as mãos. É hora de comer.

Dia 26, Douro O Padeiro que faz Vinho do Porto

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