Quem tramou Jorge Jardim Gonçalves?

O banqueiro saiu derrotado pelas suas próprias acções e estratégias, bem como por algumas pessoas que apoiara no passado.

Como é que um banqueiro visto como inatacável durante décadas pôde, em apenas meio ano, perder uma das maiores batalhas da sua vida? Parece ter sido isto o que aconteceu a Jorge Jardim Gonçalves, que há 21 anos criou o Banco Comercial Português (BCP), uma história que não deixa ainda de ser de sucesso. Mas bastariam seis meses de discórdia e de polémica para que a imagem do maior grupo financeiro privado, que chegou a ser considerado uma catedral pelo mercado, começasse a definhar, ameaçando arrastar consigo o fundador [e os actuais administradores].

Aos 71 anos, Jardim Gonçalves acaba de renunciar a ter qualquer intervenção executiva do BCP, preparando-se para, no dia 31 de Dezembro, deixar o projecto bancário que criou em 1986: uma multinacional portuguesa com actividade relevante em vários países, designadamente, Portugal, Polónia, Grécia, Turquia, Roménia, Angola e Moçambique. A partir daqui, deixará de influenciar o seu destino, mesmo se ainda conta com o apoio de cerca de 22 por cento do capital, através de instituições como a Eureko e pessoas como Ludgero Marques, Goes Ferreira, António Gonçalves.

Em Maio passado, com o consumar da derrota da Oferta Pública de Aquisição (OPA) lançada pelo BCP sobre o BPI, o grupo viu-se envolvido numa luta pelo poder que continua a dividir ao meio accionistas e gestores. Hoje, o banco reflecte para fora uma imagem de caos, com o mercado a assistir perplexo a sucessivas quebras do sigilo bancário, que se vulgarizaram, e que revelam para a praça pública, a conta gotas, dossiers sobre eventuais irregularidades cometidas pelas administrações lideradas por Jardim Gonçalves.

As denúncias surgem associadas a empréstimos de favor e perdões de juros a grandes investidores/clientes, e, até, a uma possível manipulação de mercado em larga escala. De tal forma que o Banco de Portugal entendeu existir matéria para abrir uma contra-ordenação sobre parte dos factos revelados. No fundo, com estas acusações à governação do BCP, poderá estar a assistir-se à desmontagem do modo como o banco foi sendo construído ao longo das duas últimas décadas.

É sob tiros violentos desferidos pelos adversários que Jardim aceita deixar a instituição, não encontrando a solidariedade de accionistas e amigos a quem foi dando apoio, financiando as suas empresas, e de gestores que escolheu para a sua equipa. E abandona o BCP sem condições para influenciar o seu futuro, como pretende.

É neste cenário, inesperado há um ano, que se procura uma explicação para uma questão de resposta múltipla: Quem o fez perder a guerra? Em primeiro lugar o próprio Jardim, que construiu o banco recorrendo a uma estrutura de capital fragmentada (defendia posições qualificadas não superiores a cinco por cento do capital) e sustentada em accionistas nacionais e devedores da instituição. E, portanto, sem voz, mas sempre à procura de salvaguardarem as suas relações de negócio com o BCP.

Em 2005, o balanço revelava que 2.764 milhões de euros de créditos e de garantias estavam concentrados em apenas quatro investidores, com cerca de 13 por cento do capital: a EDP, o Grupo Mello, a Teixeira Duarte e Joe Berardo. Por uma razão, ou por outra, e no quadro do combate pelo poder do banco, todos eles têm dado provas de seguir agendas próprias. Em todo o caso, Jardim sempre olhou para a sua estrutura accionista com preocupação, o que ficou expresso durante a OPA que o BCP lançou sobre o BPI.

Na altura, o CEO, Paulo Teixeira Pinto, deslocou-se ao Porto, acompanhado pelo seu antecessor, para intervir na Assembleia-Geral do grupo rival. Os dois quiseram protestar contra um pedido de autorização feito por Fernando Ulrich aos accionistas do BPI, para o autorizarem a vender sete por cento do capital do BCP. Nesse momento Teixeira Pinto e Jardim deram um sinal de falta de confiança na sua estrutura accionista, o que pode ter ajudado o mercado a intuir que o banco estava frágil, criando o clima para o aparecimento de “raiders” [Berardo, João Rendeiro], que se viriam a constituir como forças hostis ao fundador.

Em 1999, Jardim toma uma decisão audaciosa e que se revelou importantíssima para o futuro do BCP, no bom, e no mau sentido. Ao avançar com a compra a Champalimaud do grupo Mundial Confiança (seguros e Banco Pinto e Sotto Mayor), Jardim permitiu que o BCP ganhasse dimensão, mas como este não possuía estrutura de capital para o fazer, viu-se na contingência de ter de realizar aumentos de capital em 2000 e 2001. E foram estas duas operações que desequilibraram a instituição, obrigando a gestão a tomar um conjunto de iniciativas no mínimo pouco ortodoxas e que estão agora a ser averiguados pelos reguladores e pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

Nesse período, segundo as acusações de Joe Berardo, o banco emitiu títulos que não foram colocadas no público e que acabaram por ser adquiridos por testas de ferro através de veículos “off-shore”. Manobras que, todavia, não chegaram a por nunca em causa a solvabilidade do banco, que continuou a crescer.

O fundador viria a cometer novo erro em 2005, ao lançar o convite a Teixeira Pinto para o substituir, uma iniciativa que beneficiou da concordância dos órgãos sociais do BCP. Teixeira Pinto não mostrou ter a personalidade que o banqueiro procurava para liderar o grupo e os dois acabaram por se desentender. Jardim acusa o seu ex-delfim de ter montado uma estrutura accionista para combater o núcleo duro que o apoiava. Teixeira Pinto construiu uma solução semelhante à adoptada pelo fundador, com accionistas endividados e fracos, mas envolvendo pessoas mais jovens e de outro estrato social (Moniz da Maia, Filipe Botton, Diogo Vaz Guedes, João Rendeiro). Ou seja: reproduziu o modelo anterior.

Quando saiu da presidência executiva Jardim Gonçalves dever-se-ia ter retirado e recusado assumir a presidência do Conselho Geral e de Supervisão, com poderes deliberativos. Esta estrutura seria criada por Teixeira Pinto, no quadro de uma mudança societária que recuperou Jardim. Este, numa primeira fase, manteve-se apenas no Conselho Superior, que não é deliberativo.

De qualquer modo há quem veja na Teixeira Duarte (TD) a chave que explica a confusão que hoje afecta a imagem do maior banco português. O presidente da empresa, Pedro Teixeira Duarte, tem actuado em ziguezague ao longo deste processo, onde, apesar de ter apenas 6,7 por cento do BCP, se mantém omnipresente. Depois de se manter ao lado de Jardim na última década, viria na sequência da última Assembleia Geral (AG) a afastar-se do banqueiro, acabando por unir-se a Berardo para o atacar.

A alteração de comportamento foi súbita e não foi compreendida pelo mercado, que via o construtor como alguém fiel a Jardim, que, por sua, sempre o apoiou. A TD chegou a votar numa AG da Cimpor (onde possui 20 por cento do capital) com procuração do BCP (que tem 10 por cento da cimenteira), o que deu origem a uma polémica judicial movida por Pedro Queiroz Pereira. Este empresário acusou-os de actuarem concertados.

Os primeiros sinais de desentendimento entre Jardim e a TD surgiram na Assembleia-Geral do BCP, de final de Agosto, quando o construtor se posicionou ao lado de Joe Berardo, Manuel Fino e Moniz da Maia, para impedir a ida a votos, como defendia o fundador do BCP. Na altura, Jardim dispunha da maioria dos accionistas do seu lado (como o BPI) e queria aproveitar a ocasião para clarificar de que lado estava o poder dentro banco.

Porque se voltou então a TD contra Jardim Gonçalves? É possível que a partir de determinado momento, Pedro Teixeira Duarte tenha intuído que o “seu amigo” perdera a capacidade de influenciar os accionistas e decidiu posicionar-se para liderar o BCP.

Isto porque durante o Verão se assumira já como o pivô de um novo projecto empresarial e o elo de ligação entre investidores desavindos. E, em Setembro, quando apresentou a sua proposta de mudança societária para o BCP, o empresário já confessava desejos de protagonismo, deixando prever que quisesse integrar o Conselho de Administração não executivo como vice-presidente (Miguel Cadilhe seria o “chairman”). E quando o BPI desafiou o BCP para conversar sobre uma eventual fusão, foi dos primeiros accionistas a movimentar-se para fazer derrapar o projecto. Enquanto decorriam os contactos entre as administrações dos dois bancos, disse a Ulrich que era cedo para avançar com a operação pois o BCP estava fragilizado.

No BCP a TD tem actuado por três vias, pois é accionista, é cliente devedor e está interessado nas acções do BCP na Cimpor. Nesse sentido, quer assegurar que vai ter uma palavra a dizer sobre o futuro do banco, pois receia o impacto da entrada de um novo “player” de controlo. Em síntese, teme duas coisas: que o domínio da cimenteira passe para as mãos de terceiros; e que o BCP passe de credor manso a credor agressivo.

Pelo contrário, Jardim Gonçalves terá avaliado a proposta de fusão como uma boa solução e que lhe permitiria sair do grupo pela porta grande. E criaria as condições para estabilizar o coração do banco (o seu governo), cuja situação se foi degradando, conduzindo a um desalinhamento que tem impedido, para já, a construção de uma alternativa de gestão interna e consensual (a lista encabeçada por Filipe Pinhal candidata à administração executiva do próximo triénio está a ser contestada por 13 por cento do capital).

No quadro dos contactos com o BPI, Jardim, e o seu grupo, admitiam entregar a liderança executiva do novo projecto a Ulrich, por contrapartida da alteração dos termos de troca em discussão. Mais uma vez Jardim enganou-se. O BPI aceitou perder a cadeira de CEO, como defendia Pinhal, mas recusou mexer no valor das acções, o que serviu de pretexto para o BCP fazer derrapar as conversações. Isto, apesar de 33 por cento do capital (BPI incluido) estar disponível para fazer cedências.

Aqui reside outra incógnita de um processo conturbado e que não tem ajudado a pacificar o BCP. Como explicar a falta de protagonismo de Filipe Pinhal durante o processo negocial com Ulrich? Como interpretar o modo como este gestor se posicionou para dizer que a concentração estava acordada, quando não estava? Porque deu sinais contraditórios? Porque não se empenhou em convencer os investidores do BCP a seguir o exemplo do BPI (que aceitou perder a liderança executiva do Millennium BPI), cedendo em certas matérias? É possível que Pinhal tenha visto ali uma janela para poder chefiar o banco, numa nova era, com o amparo de Pedro Teixeira Duarte. E ao negar a operação, sem a levar à AG, Pinhal terá pensado que garantiria o apoio do grupo de accionistas mais activos e que combatiam o projecto, mesmo sendo estes minoritários, já que a TD, Joe Berardo, Manuel Fino e Moniz da Maia contam com somente com 18 por cento do capital. Mas também ele avaliou mal os dados em jogo, pois está a navegar em águas turvas. E a pacificação do banco continua, ainda,  por chegar.  [Suplemento Economia. Leia versão completa na edição impressa]

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