Torne-se perito

Nós na voz delas

a Há algum tempo que não ouvíamos falar delas, mas eis que regressam e logo em disco duplo. Será dado a conhecer hoje, pela primeira vez, no mesmo espaço onde foi gravado em Janeiro, Março e Junho de 2007, o Lagar de Azeite de Oeiras (Rua do Aqueduto, às 19h00). O disco chama-se, adequadamente, Vozes de Nós, com o duplo sentido de nos trazer de volta as vozes delas, as cerca de 20 mulheres que compõem o grupo Cramol, mas ao mesmo tempo as de um Portugal que, mais do que apenas memória, é herança viva de ritos que tais vozes preservam com eficácia dificilmente atribuível a qualquer formol. Criado em 1979, no espaço da Biblioteca Operária Oeirense, o grupo diz ter-se empenhado na "busca permanente de sons ancestrais e das suas sonoridades atávicas" e tornou-se presença obrigatória, não apenas em muitos discos alheios (o seu primeiro, e até ontem único, data de 1996) como em vários palcos no país e no estrangeiro. Sem outro som que não o das próprias vozes ou raramente adufes, no reportório do Cramol juntam-se polifonias de vários cancioneiros nacionais, provindas das cuidadas recolhas de Giacometti/Lopes-Graça ou de José Alberto Sardinha, mas também de outras fontes devidamente identificadas. São canções de trabalho, de embalo, de reza, de festa, ecos de um mundo essencialmente rural onde o sagrado e o profano se unem no ciclo único da natureza.O nome do grupo também nasceu assim. O distinto Dicionário de Música de Tomás Borba e Fernando Lopes-Graça (Figueirinhas, 3.ª edição em 1996, fac-similada da 1.ª, de 1956) diz que por "cramois (e também por clamores e cramores) designam, desde tempos primitivos, os povos da Serra da Gralheira, que fica entre o Douro e o Paiva, ao norte de S. Pedro do Sul, os seus cantos a quatro vozes que entoavam nas procissões de penitência e cuja letra talvez houvesse sido em latim." E diz também que "o erudito Rebelo Gonçalves consigna algures o singular cramol". Pois foi a esse singular que este coro de mulheres foi buscar a sua admirável pluralidade.
Quem escutar o Cramol e lhe der o devido valor deve procurar ouvir um outro grupo de mulheres que, a sul, dá pelo nome de Moçoilas e também tem dois discos gravados: Já Cá Vai Roubado (2001) e Qu"é que Tens a Ver com Isso? (2006). Assenta o seu trabalho em recolhas ou recriações do cancioneiro algarvio, menos bucólico que picaresco, e tem-no feito não apenas com esmero e arte, mas também com um espírito de assinalável folia. Do seu nome os dicionários pouco nos dizem que não saibamos já, pois moçoila vem de moça, embora "por processo de derivação ainda não esclarecido", como diz o Dicionário Etimológico de José Pedro Machado (Livros Horizonte, reedição de 2003).
Certo é que, no seu Algarve natal, há muitos outros derivados: do diminutivo mó até mocequeno, móce, mochéco, mochico, moçalho ou moçanhada (a recolha é do Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves, 1996). Pois moçoilas ou "cramolas", aqui são as mulheres que têm voz primeira. E todos ressoamos nela.

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