Morreu um mito da música de vanguarda

Artista total e compositor de todas as controvérsias, Karlheinz Stockhausen deixa um legado gigantesco às gerações futuras. Mas esta herança não vai ser fácil de digerir

a Desapareceu o nome mais vezes pronunciado da nova música da segunda metade do século XX: Stockhausen. Venerado e acusado, este nome foi uma bandeira da música de vanguarda e ao mesmo tempo o seu pior insulto. A Fundação Karlheinz Stockhausen anunciou ontem a sua morte, aos 79 anos, revelando em comunicado que desde quarta-feira já não estava vivo o mais controverso compositor alemão do pós-guerra.Stockhausen era admirado, antes de mais, por si próprio. Tal como Wagner (de cuja música ele nem gostava particularmente), encarregou-se ele mesmo de fazer o culto da sua personalidade. Megalómano e artista total, disse um dia que enquanto estivesse vivo, a palavra "vanguarda" ainda faria sentido. Agora morreu. Continuará "vanguarda" a fazer sentido? "Ele provavelmente queria dizer que estaria sempre na vanguarda. Mas nem sequer é verdade. Há muitas vanguardas e há muito que ele tinha deixado de fazer parte dela", diz Miguel Azguime. O compositor português, criador da MisoMusic e organizador do festival de música contemporânea Música Viva, refere-se a Stockhausen como "figura mítica, uma lenda viva, controversa e polémica". O que mais lhe interessa, no entanto, não é "o misticismo ou a megalomania que lhe são características", é o facto de a sua obra, "muito importante para toda música ocidental na segunda metade do século XX", poder agora ser "reavaliada por si só, sem o folclore que Stockhausen lhe acrescentava". Pedro Amaral, compositor, maestro e autor de um doutoramento sobre Stockhausen, diz que a obra deste "vai agora ser digerida." Comparando-o com Wagner, Amaral diz que essa "digestão" talvez só se complete "daqui a 125 anos."
Mais de 360 obras
Stockhausen deixou mais de 360 composições, de todos os géneros (e em muitos deles foi pioneiro) e com quase todos os meios técnicos possíveis e imagináveis, do trabalho de "decomposição" do som da primeira música electrónica aos seus projectos de música para helicópteros. Em 1953 Stockhausen começa a trabalhar no estúdio de música electrónica de Colónia. O primeiro concerto de música electrónica, na rádio da Alemanha Federal (WDR), inclui algumas das suas experiências musicais. Em 1955, com Gruppen, uma composição para três grupos orquestrais colocados em diferentes locais do auditório, começa a explorar efeitos de espacialização do som. É dos primeiros a fazê-lo. Com Gesang der Jünglinge (Canto dos adolescentes, de 1956), combina a voz humana e a música electrónica, e marca o aparecimento da chamada "música electroacústica".
Pedro Amaral confessa que ficou em choque num primeiro momento porque, para além de o ter conhecido pessoalmente, "ele foi um grande homem e um grande artista, um dos maiores do século". Considera que a sua morte é sinal "do desaparecimento de um mundo, o da geração de Darmstadt. Todos desapareceram excepto Boulez, que está vivo e bem vivo". A "geração de Darmstadt" reunia-se nos cursos de Verão daquela cidade desde 1946. Ali se encontravam e discutiam músicos, musicólogos e alguns dos compositores mais importantes da segunda metade do século XX, como Pierre Boulez, Stockhausen ou Luigi Nono. Stockhausen conciliou em algumas das suas obras a rivalidade dos primeiros tempos entre música concreta (experiências com sons gravados em fita magnética) e a música electrónica (transformação electrónica dos sons), duas das grandes novidades da nova música do pós-guerra.
Um artista total
Pedro Amaral diz que a sua morte "é um momento triste, mas por outro lado é uma alegria que um homem acabe assim a sua existência - o fundamental da sua obra está feito", diz o maestro. Pedro Amaral destaca Momente (1969) como uma das suas obras-primas e conta: "Ele disse-me: "Não quero morrer sem editar Momente." E recebeu a edição no dia da sua morte. É o sentido de uma vida realizada." O compositor português destaca ainda a capacidade de Stockhausen "de em cada obra se recolocar em questão e expandir os seus limites", considerando que o compositor alemão deixa "uma herança extraodinária". Miguel Azguime, por seu lado, diz que "vai demorar muito tempo para perceber o impacto real da sua música. Mas o que mais me interessou foi a sua ideia de fazer soar o som, dar atenção ao timbre".
Em Momente, Stockhausen usou um texto de William Blake: "Aquele que beija a alegria em pleno voo, vive uma aurora eterna..." Talvez ele tenha conseguido isso, no meio das polémicas sobre a sua música, das suas megalomanias, arrogâncias e frases-choque (a mais recente foi sobre o 11 de Setembro: "O que aconteceu ali é a maior obra de arte que já existiu").
Morreu um compositor de vanguarda. Um compositor? Não. Morreu um artista total, um pensador, uma lenda. Não se sabe ao certo. Sabe-se que o seu nome era Karlheinz Stockhausen.

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