Pervez Musharraf fez o seu adeus às armas

Tornar-se um presidente civil poderá resolver a crise política do Paquistão? As apostas tendem para a resposta negativa

a Pervez Musharraf vai tornar-se hoje um presidente civil, vestido com um fato e não uma farda. Ontem, o general Musharraf disse adeus às armas, em uniforme de gala. Numa cerimónia celebrada em Rawalpindi, onde fica o Estado-Maior das Forças Armadas paquistanesas, entregou o bastão de chefe de Estado-Maior ao seu sucessor e protegido, o general Ashfaq Kiani."Tive a sorte de comandar o melhor Exército do mundo", disse Musharraf aos seus generais, comandantes e soldados, com a voz a fraquejar de emoção. "Este Exército é a salvação do Paquistão."
Musharraf chegou ao poder num golpe militar há oito anos. Agora sai do Exército quando o país está sob lei marcial. Só há uma certeza sobre a herança que deixa: seria muito melhor se o longo adeus de ontem tivesse acontecido há um ano.
Se o seu mandato foi sempre tingido de polémica, poucos se negariam reconhecer o seu principal feito - pôr o peso do Exército do Paquistão a suportar o esforço dos Estados Unidos na "guerra contra o terrorismo" após os ataques de 11 de Setembro. Isto permitiu ao Paquistão limpar a sua imagem de Estado pária com bombas nucleares e simpatizante da Al-Qaeda. A economia, que estava à beira da autodestruição, foi recuperada graças a maciças injecções de ajuda norte-americana.
Houve outros sucessos. Fez verdadeiros esforços para iniciar um processo de paz com a Índia, conduzindo as relações entre os dois rivais asiáticos ao nível mais pacífico de sempre. Musharraf esforçou-se também para modular a ideologia oficial do jihadismo para uma veia do islão mais liberal, "iluminada", da qual os maiores beneficiários foram novos meios de comunicação independentes.
Excesso militar
Mas a areia na engrenagem foi sempre a crença de Musharraf em que "o Exército é a única força patriótica capaz de garantir que o Paquistão permaneça forte, estável e próspero", diz o ex-embaixador Tarik Fatemi. Esta atitude levou-o a desprezar os políticos civis e promoveu a penetração do Exército em todas as esferas da governação e da economia.
Foi este excesso da presença dos militares que gerou resistência, sobretudo do sector judiciário.
Em Março, Musharraf tentou afastar o juiz-presidente do Supremo Tribunal, Iftikhar Mohammed Chaudhry, o que desencadeou a maior crise que teve de enfrentar. A 3 de Novembro declarou lei marcial, justificando a medida com a luta contra os militantes islâmicos violentos. Mas, na verdade, a sua intenção era purgar o Supremo, que se preparava para considerar ilegais as eleições presidenciais de Outubro, que deram a vitória ao general.
A contradição inerente da liderança de Musharraf era evidente para todos, incluindo aliados como a Administração Bush. Nunca o Exército do Paquistão foi tão forte, e nunca tinha sido tão contestado pelos 160 milhões de paquistaneses.
A nova troika
A passagem de Musharraf ao mundo civil transformará a situação? Tudo depende das suas relações com os próximos chefe de Estado-Maior e primeiro-ministro. "Esta é a nova troika, o novo centro de poder da política paquistanesa", comentou o analista Hasan Askari-Rivzi.
Kiani é leal a Musharraf. E também apoia as políticas inspiradas pelos EUA contra a Al-Qaeda e os taliban. Mas Kiani acredita "que estas políticas têm de ser aceitáveis para o povo", disse um assessor do general. Isso é uma espécie de quadratura do círculo: as sondagens mostram que 80 por cento dos paquistaneses se opõem à política externa americana, em especial à política no Afeganistão.
As relações com o próximo primeiro-ministro podem ser turbulentas. As eleições de Janeiro é que vão decidir quem ocupa o cargo, mas, se as sondagens são de confiança, deverá ser Benazir Bhutto ou Nawaz Sharif, dois ex-primeiros-ministros.
Musharraf já descreveu Bhutto co-
mo "a política mais corrupta da his-
tória do Paquistão." E Sharif foi quem ele depôs no golpe de 1999. Os dois políticos disseram recentemente que não aceitariam liderar um governo sob Musharraf. E se a lei marcial não for levantada, podem boicotar as eleições.Como Presidente civil, Musharraf disse que trabalharia com toda a gen-
te. Mas a sua recente "reconciliação" com Bhutto acabou-se logo que ela regressou ao Paquistão, em Outubro. E na semana passada foi ele próprio a Riad para tentar que Sharif permanecesse no exílio até depois das eleições. Os sauditas disseram que não. Sharid regressou a 25 de Novembro e teve um acolhimento de herói em Lahore.
"A troika imaginada pelo Exército - ou seja, por Musharraf e Kiani - exige um primeiro-ministro dócil", diz o analista Ayesha Siddiqa. "Bhutto e Sharif não são nada dóceis. É certo que vai haver problemas."

Sugerir correcção