Medeia fez do esqueleto da cama a sua casa, as suas vestes, a sua jaula

Estudo sobre Medeia, o mito grego segundo Antonio Latella, estreia-se hoje na Culturgest. Nicole Kehrberger encarna a deusa que desceu à terra por amor

a O mundo está cheio de Medeias. Mais do que as leituras pós-Eurípedes - de cineastas, compositores, escritores de todos os séculos, pintores e escultores - alguma vez alcançaram. Uma noite, em Nápoles, após a apresentação de Estudo sobre Medeia, uma mulher que teria perto de 80 anos dirigiu-se a Nicole Kehrberger: "Eu também sou uma Medeia", segredou-lhe. "Foi lindo", recorda a protagonista, "foi a melhor crítica que recebemos". A essa mulher bastou-lhe ver as imagens e os movimentos dos corpos em palco que fazem deste tríptico babélico (11 línguas) um capítulo teatral sobre a condição humana.
Um dia depois de ter chegado a Lisboa para a estreia, na Culturgest, da adaptação livre que o encenador italiano Antonio Latella fez sobre o mito de Medeia, a actriz Nicole Kehrberger não denuncia a viagem cansativa desde Florença (mau tempo, longas esperas nos aeroportos). Com o seu longo cabelo negro apanhado, Nicole, que é também bailarina e coreógrafa, tem muito para contar sobre o processo criativo que culminou com Estudo sobre Medeia, espectáculo repartido em três capítulos.
Ela acredita em coincidências felizes. E foi isso mesmo que aconteceu em 2004 quando, em conversa com Latella, com quem trabalhava na ópera Orfeu, de Monteverdi, percebeu que ambos estavam a recolher documentação para fazer uma versão teatral da tragédia grega. A ela interessava-lhe a condição "de uma mulher capaz de recolher em si todas as mulheres"; ele queria trabalhar a memória arcaica em total liberdade, sem as amarras formais da linguagem teatral.
A eles juntaram-se sete entusiastas - Michele Andrei (actor), Franco Visioli (compositor), Giorgio Cervesi (luzes), Frederico Bellini (dramaturgia), Rosario Tedesco (assistente de encenação), Rosa Futuro e Tobias Marx (figurinos). Era só isto que eles tinham: uma ideia "vaga" sobre a proposta, uma sala alugada num teatro em Berlim, "pouco dinheiro" e umas camas de ferro que o pai escultor de Michele lhes deu. "Foi assim que tudo começou", lembra Nicole.
Esqueleto de camas
Os meios eram escassos, não havia dinheiro para pagar salários, mas a actriz quis celebrar o momento: criou uma companhia em Berlim, a Totales Theater International, e fez de Estudo sobre Medeia o espectáculo fundador do grupo, para o qual convidou todos os colaboradores da peça. Actualmente a companhia está já em ensaios para uma adaptação "muito livre" de Hamlet, de Shakespeare - novo encontro de Latella com Nicole, que interpretará o papel de Gertrude, a mãe do herói shakespeareano.
Foi em torno do esqueleto das camas que Nicole começou a improvisar sobre a memória do texto de Eurípedes. "Depois de alguns dias de trabalho intensivo, o Antonio disse-me: "Vamos fazer três peças: a primeira sobre ela e Jasão, a segunda sobre o nascimento dos filhos e o infanticídio e a terceira em torno do seu regresso à condição de deusa"." As armações em ferro ficariam sempre em cena, definiu Latella.
No momento em que o encenador vislumbrou um tríptico sobre o mito, Eurípedes foi quase postergado - quase porque Latella não prescindiu do artifício cénico (deus ex machina) que o autor grego escolheu para desembaraçar a trama, libertando Medeia do julgamento dos homens ao fazê-la ascender novamente ao plano dos deuses. Nem deixou de ir buscar à obra seminal cenas da vida terrena de Medeia (o casamento com Jasão, o nascimento de Mérmero e de Feres, a traição do marido, o vestido envenenado entregue a Creusa), que dá a interpretar através da dança dos corpos desnudados das personagens.
Infanticídio é amor?
Estudo sobre Medeia tem uma mancha textual escassa, mas, ao longo dos capítulos, encontramos ainda Hans Henny Jahnn (dramaturgo alemão, 1894-1959), Frederico Bellini e Simone Weill ("digo um texto dela sobre o vazio de alguns comportamentos humanos enquanto limpo o corpo de Jasão das impurezas da traição com Creusa", explica Nicole).
Despida das vestes mitológicas, Medeia não assume sempre o poder dominador. "É uma mulher igual a todas as outras, que quebra quando sabe que é traída e que sofre quando os filhos a fecham numa espécie de jaula e percorrem as letras do alfabeto com os piores insultos."
Quando Medeia perde a razão para viver no mundo terreno mata os filhos. Pode o infanticídio ser um actor de amor? A encenação de Latella dá uma resposta ambígua. Diz Nicole que "cabe ao público dar a resposta". Mas a actriz, que afirma nunca ter interpretado um papel tão extenuante ("é como correr a maratona"), admite que "pode ser um acto de amor, porque ela devolve ao seu ventre aquilo que gerou". "É um acto horrível, mas não consigo julgá-la por isso", acrescenta. Com as almas dos seus filhos mortos, Medeia regressa às suas origens, envergando um vestido de noiva. "Terei um vestido de noiva e um vestido pode não ter marido", cita Nicole em italiano, fechando os olhos.

Estudo sobre Medeia

Encenação de Antonio LatellaLISBOA Culturgest, Rua do Arco do Cego. Tel: 217905454. Hoje, Medeia & Jasão (21h30). Amanhã, Medeia & Filhos (21h30) e Medeia Deia (23h). No dia 1, serão apresentados os três capítulos, às 18h30, 21h30 e 23h, respectivamente. Bilhetes a 5? e 8? (para um capítulo) e a 10? e 15? (para os três capítulos).

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