Massacres nas escolas têm banda sonora?

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Quando Caim matou Abel ninguém culpou a música. Caim matou o irmão por ciúmes. A violência estava dentro dele. Não lhe chegou às entranhas através dos ouvidos. Nessa altura as bandas de "death metal", "black metal", "rap" e "música gótica" ainda não tinham sido inventadas e não podiam servir de bode expiatório para a violência.

O "rocker" norte-americano Marilyn Manson fez esta alusão bíblica quando, em 1999, escreveu uma crónica na revista "Rolling Stone" explicando porque rejeitava a acusação generalizada de ter servido de inspiração a Eric Harris e a Dylan Klebold, que mataram nove alunos do liceu de Columbine. “Era impensável que estes jovens não tivessem uma razão simples para as suas acções. Era preciso um bode expiatório”, escreveu Manson no artigo intitulado “De quem é a culpa?”. A culpa era, evidentemente, da música dele, acusou muita gente. Seria? Aparentemente não. Harris e Klebold nem sequer eram fãs de Manson. Mas já era tarde para esclarecimentos. A paranóia estava instalada.

Na última quarta-feira Pekka-Eric Auvinen, um finlandês de 18 anos, entrou na sua escola, a meio da manhã, e disparou a sua “Catherine”, uma Sig Sauer, calibre 22. Matou oito pessoas. Cinco rapazes, duas raparigas e a directora do liceu. Depois apontou a “Catherine” à têmpora e carregou no gatilho uma última vez. Ficou inconsciente e só viria a morrer horas mais tarde, no hospital.

Antes do massacre, Auvinen – que se auto-definia como um “cínico existencialista, anti-humanista, anti-social e social-darwinista e uma espécie de Deus ateu” - pôs um vídeo no Youtube a falar do ataque iminente. Em fundo ouvia-se a música "Stray Bullet", da banda germano-americana de rock industrial KMFDM (sigla alemã para Kein Mehrheit Fur Die Mitleid, ou seja, “Sem Misericórdia pela Maioria”). “Bala perdida/Preparado ou não/Sou o filho ilegítimo de Deus”, vaticina o refrão posto em prática na pacata província finlandesa. “Sou o teu totem sagrado/Sou o teu tabu doente/Radical e radiante/Sou o teu pesadelo tornado realidade/Sou o teu pior inimigo/Sou o teu amigo mais querido/Malignamente malévolo/Sou um descendente divino”, arranca a música escolhida para banda sonora do derradeiro vídeo de Eric.

Noutros vídeos que Auvinen foi colocando online nas semanas que antecederam o ataque e que estavam agregados sob o nome genérico de “Manifesto do Selector Natural”, o estudante utilizou outras músicas do mesmo grupo, mas também há faixas de outras bandas e artistas. Nos vídeos entretanto retirados da "web", por apelarem à violência, Auvinen – que surge em alguns deles com uma "t-shirt" em que se lê a frase popularizada pelo cínico "Dr. House", “Humanity is overrated” (A Humanidade é sobrevalorizada) – utilizou músicas dos Rammstein, Alice Cooper, Impaled Nazarene, Stealers Wheel, Hatebreed, Macabre, The Progidy, Motörhead.

Mas o finlandês não foi original na sua escolha de KMFDM. Eric Harris, um dos autores dos disparos de Columbine, também já se tinha servido de músicas da banda no seu site. Coincidência ou não, o massacre de Columbine aconteceu no mesmo dia em que os KMFDM lançaram o seu álbum "Adios" e no mesmo dia em que se completavam 110 anos do nascimento de Hitler: 20 de Abril de 1999.

Quando os pais dos alunos de Columbine exigiram culpados, os membros do KMFDM vieram a público retratar-se desta forma: “Os KMFDM são uma forma de arte e não um partido político. Desde o princípio, a nossa música é um protesto anti-guerra, opressão, fascismo e violência contra os outros. Apesar de alguns dos antigos membros da banda serem alemães, nenhum de nós acredita nos ideais nazis”. Depois desta nova ligação dos KMFDM a um acontecimento semelhante, o P2 tentou contactar a banda mas não obteve resposta.

O que nos torna agressivos

Com a nova matança, desta vez num país insuspeito, os dedos acusadores viram-se de novo para a música. Podem as culpas recair nas letras violentas, anarquistas e ímpias? Consegue este género de música despertar o que de pior temos dentro de nós? De acordo com um estudo de 2003, levado a cabo nos Estados Unidos, a resposta é “sim”. Numa série de cinco experiências envolvendo mais de 500 alunos, Craig Anderson e Nicholas Carnagey, da Universidade estatal de Iowa, chegaram à conclusão que as letras violentas “poderão contribuir para o desenvolvimento de uma personalidade agressiva”, embora tenha ficado por provar que esta influência se prolongue a longo prazo. De todas as formas, a polémica ficou à vista.

Em declarações ao P2, o psicanalista Carlos Amaral Dias indicou que as letras violentas só terão efeitos comportamentais nefastos em pessoas que já tenham uma predisposição para psicopatologias graves. “Não há nenhuma evidência que as pessoas que ouçam este tipo de música se tornem violentas para além de um quadro de estímulo-resposta imediato”. É preciso distinguir entre as sub-culturas que podem suscitar comportamentos violentos e as pessoas que sofrem de distúrbios psicológicos, explicou o psiquiatra.

Do mesmo modo, Carlos Alberto Poiares, director da Faculdade de Psicologia da Universidade Lusófona e especialista em Psicologia Criminal e do Comportamento, sublinhou a necessidade de se desenvolverem mais estudos, a nível mundial, que estebeleçam a correlação entre a audição de música agressiva e os comportamentos violentos. “Ainda não existem evidências científicas irrefutáveis que mostrem a ligação entre as duas coisas [...] Não é necessariamente verdade que uma coisa espolete a outra”, referiu, sublinhando que em Portugal, os estudos feitos sobre esta matéria não são fidedignos. Carlos Alberto Poiares frisou, porém, que a associação de ambientes onde se ouve música mais “pesada” com o consumo de drogas poderá, porém, potenciar atitudes desestruturadas.

Desde o massacre de Columbine que o mundo tem reagido fortemente contra as letras de música mais explícitas, que nos EUA, por exemplo, já há anos são identificados com um autocolante na capa dos CDs. Os jovens são, por natureza, um público influenciável e tendem a assumir comportamentos de mimetismo. Se as letras das músicas que ouvem falam de drogas, sexo e violência, é fácil especular que possam querer trazer para as suas vidas as experiências dos outros.

Brian A. Primack, um professor de medicina da Universidade de Pittsburgh, estudou 279 das músicas mais populares em 2005 – compiladas pela Billboard, uma espécie de Top+ americano – e 93 delas (o equivalente a 33,3 por cento do universo) versavam sobre o consumo de drogas. O rap ganhava, de longe, o pódio das referências explícitas nas suas letras. Isto poderá explicar as críticas a um concerto do rapper Nas, que se tinha disposto a actuar num espectáculo de beneficiência em prol das vítimas do massacre deVirginia Tech, em Abril deste ano. Os pais de algumas das 32 vítimas consideraram inapropriado convidar para o evento um cantor cujas letras versam sobre porte de armas e assassinatos.

Em Portugal ficou célebre o caso de Tó Jó, o jovem de Ílhavo que matou os pais à facada, em Agosto de 1999. Tó Jó e a mulher, Sara, eram líderes de uma banda de death metal chamada Agonizing Terror (Terror Agonizante). Ele era guitarrista e vocalista, ela era baterista. Mais do que música violenta, os jovens serviam aos fãs letras sobre a morte e o diabo, figura à qual ambos praticavam culto.

Bem vistas as coisas, as influências chegam de todo o lado. Da música, dos filmes, dos videojogos, da Internet, dos livros, dos próprios media. Mas influência não é sinónimo de inspiração. E muito menos de crime. O mundo precisa de cabides onde pendurar a culpa, defende-se Marilyn Manson, o artista que já serviu de gancho nesse cabide global.

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