Torne-se perito

Emanuel Ungaro sonha com as divas do passado

A moda e o cinema, para o histórico costureiro, têm uma relação de figurinista com a sua actriz principal. É uma relação que se quer discreta

a Emanuel Ungaro nunca usou top-models nos seus desfiles "porque elas roubavam o espectáculo". A atenção da assistência na passerelle era desviada das roupas para as suas existências enquanto supermodelos, tal como no cinema o olhar do público pode ser sequestrado pelo trabalho de quem faz as roupas das actrizes com demasiada sede de protagonismo. "Não gosto da ideia de um costureiro a fazer roupas para um filme. É sempre demais, demasiado perfeito, parece um desfile, o que penso que é um desastre".Ungaro pertence à geração de Valentino, de Karl Lagerfeld e de Oscar de la Renta, uma geração de alta costura que trabalhou sobre os passos de Christian Dior ou Cristobal Balenciaga e criou novos caminhos. O histórico criador francês esteve este fim-de-semana no Estoril para apresentar uma master class no European Film Festival, organizado pelo produtor e distribuidor Paulo Branco. Mas do topo dos seus 74 anos, 47 dos quais a trabalhar em moda, o reservado costureiro esclarece que não é "um cientista ou um médico". "Sou um designer de moda, não tenho nada para ensinar. Sou apenas alguém que acredita em dignidade, em ética." Sábado, na véspera da master class que garante não o ser, Emanuel Ungaro, o histórico criador de moda de uma geração que praticamente já não costura e se reformou, usava umas calças de ganga cru, botas beges e um casaco de feltro negro com um alfinete com uma joaninha na lapela. Falou com o P2 sobre a sua carreira, sobre a aprendizagem com o mestre maior da alta-costura, o espanhol Cristobal Balenciaga, sobre a sua relação com o cinema, escolhendo "Citizen Kane, que continua a ser o filme mais belo do mundo", mas sobretudo sobre actrizes. Vestiu "com amor" a actriz francesa Anouk Aimée e recorda as estrelas da era dourada de Hollywood como as leading ladies de uma moda cinematográfica.
"Há mulheres icónicas do cinema, da altura dos grandes estúdios (de Hollywood). Eram divas como Greta Garbo, Marlene Dietrich, Joan Crawford, Ava Gardner, Bette Davies que veiculavam um sentido de moda, porque eram vestidas por fantásticos figurinistas do cinema" que as faziam reluzir. Esse deve ser o trabalho de um figurinista, pensar o significado da personagem "e não deixar as actrizes nuas", brincaria no dia seguinte, na apresentação que fez no Casino Estoril.
A sua própria experiência no género do figurino foi uma total surpresa. Convidado para a projecção do filme Gloria (1980), de John Cassavetes, protagonizado pela actriz Gena Rowlands, Emanuel Ungaro viu, espantado, o seu nome nos créditos do genérico. "A Gena Rowlands estava vestida com as minhas roupas e isso foi extraordinário. As roupas já eram dela", frisa, divertido, ao P2. "A minha intervenção foi completamente nula", reiteraria domingo na sua conversa com os espectadores do festival de cinema.
Ungaro testemunhou, ao longo das décadas, mudanças na moda e no cinema. Os filmes e as actrizes sugeriam moda, inspiravam as ruas (pense-se nas escolhas masculinas de Katharine Hepburn, no estilo garçonne de Jean Seberg em O Acossado, no guarda-roupa de Diane Keaton em Annie Hall ou no estilo rendilhado e demasiado maquilhado de Madonna em Desesperadamente à Procura de Susana) e os próprios criadores. "Todas essas estrelas de cinema (do cinema clássico americano) foram grandes influências no design (de moda), o que não é o caso hoje".
Emanuel Ungaro sugere Nicole Kidman e Angelina Jolie como exemplos actuais de ícones. Mas mesmo "elas são influenciadas pela moda que nós fazemos", suspira o criador francês. "Hoje não estou impressionado com as estrelas de cinema", prossegue, sobretudo porque as artistas que actuam ao vivo, "com as suas lantejoulas" e o espectáculo "violento" ocuparam o espaço das actrizes, como as supermodelos fizeram nos anos 1980/90.
Prefere sempre voltar ao passado: "Gosto muitíssimo de Greta Garbo, que foi icónica".
O cinema e os sonhos
Domingo, para a master class, Ungaro trocaria as vestes claras por calças e gola alta negras, ainda com a joaninha ao peito, para falar a cerca de 30 pessoas sobre moda, cinema e criação. O ex-primeiro-ministro francês Dominique de Villepin, na assistência, perguntou-lhe qual a relação entre as suas criações de moda e as outras artes. "Tentei insuflar no meu trabalho todas as emoções que a música me transmite. Jamais trabalhei sem a poesia, sem a pintura", disse à assistência. "Não creio que a profissão de costureiro seja de geração espontânea. Jamais fiz uma colecção sem sonhar".
Diz que ama as mulheres e lhes quis sempre facilitar a vida. "Detesto a normalidade e adoro a cor". E não terá Emanuel Ungaro, o homem que rasgou com as convenções quando, em 1969/70 misturou estampados de forma nunca vista e por isso foi "assassinado pela imprensa", saudades de sonhar e criar? "Não, porque fiz o que fiz e hoje o meu único objectivo devia ser transmitir o que Balenciaga me deu". O costureiro, que chegou, há anos, a ser o único da sua geração a manter a propriedade total da sua casa de moda, vendeu a sua marca a um milionário paquistanês em 2005 e reformou-se.
Entre 1958 e 1961, Ungaro aprendeu de tudo com Balenciaga, que lhe ensinou que "a moda é uma arquitectura do movimento", como partilhou no Casino Estoril. De Balenciaga, "um génio" que "não falava" e mostrava o que fazer "com as mãos e o olhar", guardou "o rigor, a disciplina, a modéstia e o orgulho". "Foi a universidade mais fantástica que tive", garantiu ao P2.
O francês filho de um alfaiate italiano trabalharia depois com André Courrèges até, em 1965, abrir a sua própria casa. "Tive a sorte de encontrar um local na Avenue Montaigne, parte da história da moda em Paris, e cresci, cresci e cresci".
"Era completamente livre", recordava na véspera da sua intervenção pública, que temia não por ser tímido, esclareceu, mas por ser "emotivo".
Sente que trabalhou para mudar o mundo, sem tantos risos quanto pensamos. Sofria? "Ooooh, incrivelmente!" Declara a morte da alta-costura mas não é alérgico às Zaras e H&Ms deste mundo, que conhece bem pelas idas às compras com a filha de 17 anos. "Tenho a sensação que dentro de anos não teremos moda, teremos coisas, roupas, mais baratas e com qualidade".
Emanuel Ungaro não veio a Portugal leccionar, veio recordar histórias. Como a dos 12 vestidos que acabaram em tiras na rodagem de O Meu Irresistível Selvagem (1975), com Catherine Deneuve e Yves Montand. Disse ao P2 que "o cinema mobila os sonhos" e disse aos espectadores do European Film Festival que nunca criou sem sonhar. E lembrou as filmagens, no seu atelier, do filme Manon 70 (de Jean Aurel, 1968), também com Deneuve, durante três meses. "Foi um pesadelo (risos). As pessoas do cinema, onde estão, ocupam o espaço".

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