Leonor Pimentel, uma quase desconhecida que morreu pela república em Itália

Foi bibliotecária, tradutora, poeta e uma das primeiras jornalistas da Europa. A vida da "portuguesa de Nápoles" deu livros e filmes, que chegam hoje, pela primeira vez, a Portugal

a Há mulheres assim, esquecidas. Leonor da Fonseca Pimentel é uma delas. Talvez porque conseguiu ser muita coisa ao mesmo tempo, numa época em que não era suposto as mulheres serem grande coisa.Bibliotecária, tradutora, poeta, uma das primeiras jornalistas da Europa, pioneira na direcção de um jornal político. Lenor - família e amigos chamavam-lhe assim desde que, em pequena, não conseguia pronunciar o seu nome correctamente - era também uma apaixonada por matemática, astronomia e botânica, disciplinas das quais as mulheres eram geralmente afastadas. Mas o mais surpreendente é o percurso activista e revolucionário de Leonor, que desempenhou um papel de relevo na revolução jacobina de Nápoles, inspirada na Revolução Francesa e que instaurou uma república que viria a durar dois anos (1797-1799).
Leonor foi isto tudo e também aquilo que a sociedade esperava dela - conseguiu um bom casamento (embora infeliz) e chegou a ter filhos (que morreram à nascença).
Leonor da Fonseca Pimentel é a personagem principal do livro A Portuguesa de Nápoles (Il Resto di Niente, no original), de Enzo Striano, editado pela Quetzal e que hoje é lançado, às 18h30, no Instituto Italiano de Cultura, em Lisboa, dois anos depois de ter sido publicado em Itália, país onde a portuguesa viveu toda a vida - consta que viajou ainda na barriga da sua mãe - e que, apesar de tudo, a ignorou menos do que aquele que lhe deu o nome (Il Resto di Niente vendeu perto de meio milhão de exemplares em Itália).
"Em Nápoles, toda a gente a conhece", garante a actriz Maria de Medeiros, que faz de Leonor no filme Il Resto di Niente, de Antonietta de Lillo, que será mostrado hoje, também pela primeira vez em Portugal, durante a mesma sessão no Instituto Italiano de Cultura, com a presença da realizadora napolitana, que corrobora: "É uma figura muito conhecida e está muito presente na cidade".
Em Nápoles, o nome de Leonor foi atribuído a uma escola do Magistério Primário, em homenagem à forma como defendeu o primado da educação. A portuguesa está também no Pantheon dei Martiri della Libertà, ao lado de outras referências do pensamento político italiano. Estudos, teses, colóquios e exposições são regularmente dedicados à sua vida e obra.
Em Portugal, comemorou-se o bicentenário da acção política de Leonor da Fonseca Pimentel, em 1999, numa iniciativa organizada pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pela Secção de Pedagogia e Filosofia da Universidade de Évora, em colaboração com instituições italianas com sede em Portugal.
Jornalismo comprometido
Leonor considerava-se italiana, mas nunca deixou de afirmar as suas raízes portuguesas - sempre cultivou a língua e manteve correspondência com intelectuais portugueses, como a Marquesa de Alorna.
O jornalismo de que Leonor foi pioneira era comprometido politicamente. Os jornais eram "instrumentos colectivos de leitura e de mobilização para a luta", explica Teresa Santos, professora universitária, coordenadora da Secção de Filosofia da Universidade de Évora e uma das organizadoras das actas do colóquio do bicentenário da morte de Leonor (publicadas pela Horizonte, em 2001).
Leonor fundou o jornal oficial da república instalada após a revolução jacobina - Il Monitore Napoletano -, que teve profunda influência na moderação das decisões do governo revolucionário da época. "Fazia-o quase sozinha", realça Maria de Medeiros, acrescentando que Leonor "foi das personagens mais belas" que lhe foi dada a interpretar. Foi uma mulher "original" e "absolutamente moderna e mesmo vanguardista", que "teve a coragem de se emancipar", separando-se do marido que a maltratava, justifica.
O que determinou os passos de Leonor? O tio, seu mentor e protector, desempenhou um papel importante, introduzindo-a no ambiente cultural da corte. Dava-lhe livros de poesia para ler, que inspiraram Leonor a escrever os seus próprios versos. "Era dominada por uma grande paixão, pela actuação, pela intervenção", sublinha Teresa Santos. "O modo como interveio na república napolitana levou o cônsul José Agostinho da Silva, em carta para Lisboa (1798), a dizer dela: "Mulher tão genial quanto louca"", refere a professora universitária.
Na praça pública
Na altura, havia grupos de mulheres intelectuais, mas não havia muitas mobilizadas para a causa política. O que torna o caso de Leonor singular, acrescenta Teresa Santos, é ter aliado às "funções tradicionais da mulher" uma intervenção intelectual e, ainda mais raro, uma "consciência que a leva para a praça pública", três domínios que "raramente se conjugam numa só mulher". "Mais do que uma reivindicadora dos direitos político-sociais das mulheres, encarna a mulher emancipada: salta do espaço doméstico e dos salões académicos para o espaço público efervescente, assumindo-se, com independência crítica, como cidadã. Esta arriscada incursão na cidadania terminaria por conduzi-la à forca e elevá-la à categoria paradigmática da heroína", explica Teresa Santos.
Leonor era "uma mulher de franja", que acreditava que "a revolução era a única maneira de lutar por uma sociedade mais justa". Simultaneamente, era "um pouco ingénua" e sensível à miséria e à pobreza que grassavam na Nápoles do final do século XVIII, num "contraste chocante" com uma "corte poderosa e faustosa", acrescenta a professora universitária. "Esta mulher lúcida, consciente, percebeu a dicotomia."
Em Itália, a família de Leonor nunca conseguiu ver reconhecido o seu título nobiliárquico português. Isso deu-lhe uma condição próxima da de refugiada. Católica devota, a família abandonou Portugal por oposição às políticas persecutórias da Companhia de Jesus ordenadas pelo Marquês de Pombal e partiu para Roma, na qualidade de mediadora do conflito que opôs o primeiro-ministro absolutista à Santa Sé (os jesuítas foram a primeira ordem a fazer juramento de fidelidade ao Papa) - e acabou por ficar, mudando-se mais tarde para Nápoles. Paradoxo dos paradoxos, Leonor viria a admirar a figura do Marquês, dedicando-lhe uma ópera - Il Trionfo della Virtù (1777).
Leonor teve também o destino trágico das poucas outras "grandes" mulheres da época - a forca. A 20 de Agosto de 1799, na Praça do Mercado de Nápoles, Leonor da Fonseca Pimentel foi executada, sob acusação de crimes contra o Estado.

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