Um ano depois de um assassinato sem perdão

Anna Politkovskaya foi morta há um ano. Ainda não foi feita justiça à jornalista que nunca aceitou silenciar as suas críticas a Putin - mas Putin faz por ignorá-lo. Seria bom recordar-lho quando visitar Lisboa
no final deste mês

Há exactamente um ano, a 7 de Outubro de 2007, à porta do elevador de sua casa em Moscovo, Anna Politkovskaya foi assassinada com vários tiros disparados à queima-roupa, o último dos quais na cabeça, para garantir que estava morta e bem morta. Era uma jornalista incómoda para o Kremlin, uma das mais conhecidas, mas também uma das mais isoladas. Mas não era a primeira nem seria a última jornalista a ser morta: desde que Putin subi ao poder, em Março de 2000, mais 17 colegas seus foram assassinados. Ela própria sabia que, com toda a probabilidade, o mesmo destino lhe estava destinado.Num livro que amanhã será lançado em Lisboa (Um Diário Russo, edição da Temas e Debates), Politkovskaya escreveu uma espécie de posfácio sintomaticamente intitulado "Tenho medo?". Mas a pergunta fica sem outra resposta senão a do seu pessimismo sobre o país em que vive, um país onde se sentia a pregar num deserto. "Vejo que as pessoas gostariam que a vida mudasse para melhor, mas são incapazes de fazer com que isso aconteça, e que, para ocultar esta verdade, se concentram nos aspectos positivos e fingem que os negativos não existem", desabafou.
No seu livro anterior, lançado em Portugal em Julho (A Rússia de Putin, edição da Pedra da Lua), a jornalista da Novaya Gazeta formulava também uma pergunta nas últimas páginas: "Porque é que eu detesto tanto Putin?" Dessa vez a questão não ficou sem resposta pois Politkovskaya acabaria por nos dizer, com dureza, por que detestava o "Estaline" da Rússia dos oligarcas e da nomenclatura da polícia secreta. "Não gosto dele porque ele não gosta das pessoas. Despreza-nos. Vê-nos como meios para atingir os seus fins, como meios para alcançar e manter o seu poder pessoal, nada mais", escreveu então. "Não somos ninguém, enquanto ele (...) é hoje Czar e Deus. Na Rússia, tivemos outrora dirigentes assim. Isso conduziu a tragédias, a sangrias em grande escala, a guerras civis. Não quero mais. É por isso que detesto tanto este típico tchekista soviético quando se pavoneia pela passadeira vermelha no Kremlin a caminho do trono da Rússia."

Estávamos então em 2004. Três anos depois a Rússia não melhorou, antes piorou. E Putin, que a partir da Presidência manipulou as eleições para a Duma em 2004 e para a sua reeleição em 2005, prepara agora uma sucessão que pode nem chegar a sê-lo. Seguindo a tradição soviética, agora travestida de democracia formal, Putin anunciou que se candidataria à Duma e até poderia voltar a ser primeiro-ministro. O gesto não é sinal de humildade, antes mostra que não quer renunciar ao poder e demonstra que sabe que, na Rússia, o poder é de quem o detém, seja qual for o cargo que ocupa. Se os líderes soviéticos não precisaram de ser presidentes ou primeiros-ministros para serem senhores absolutos, bastava-lhes o lugar de secretário-geral do partido comunista, Putin nem disso necessita, pois até o partido que criou para o apoiar, o Rússia Unida, é pouco mais do que uma invenção. O que conta é a rede que montou com base nos que, como ele, serviram no KGB. E se um ano depois, como todos previam, nada se avançou para descobrir os responsáveis pelo assassinato de Politkovskaya, o homem que ela denunciou com a coragem e o talento dos grandes jornalistas estará em Lisboa no final deste mês. Vem reunir-se com Sócrates, presidente em exercício do Conselho Europeu. Quando se encontrou a última vez com Angela Merkel, quando ela desempenhava esse cargo, Putin teve de ouvir palavras muito duras num barco parado no meio do Volga. Em contrapartida, quando Sócrates esteve depois em Moscovo a sua atitude de contemporização embaraçou os portugueses e os europeus, para além de revelar a fraqueza, por incoerência interna, da União Europeia.
O primeiro-ministro tem agora oportunidade de emendar a mão e mostrar que, para ter relações diplomáticas normais, não é necessário calarmos as críticas. E os portugueses também têm uma oportunidade para mostrar que não estão tão indiferentes e resignados como os russos que entristeciam Politkovskaya. Que ainda são capazes de se indignar quando vêem um país voltar a um passado sem liberdade e se incomodam ao receber o arquitecto do regresso dos piores tiques e práticas do sovietismo.

Sugerir correcção