Torne-se perito

Nureiev fugiu da Rússia por causa de um amor secreto

Foi um jovem alemão quem convenceu o mais influente bailarino do século XX a desertar para o Ocidente. A revelação consta de uma nova biografia, publicada em Inglaterra - Nureyev: The Life. Demorou dez anos a escrever e já inspirou um documentário da BBC

a Que terá ele pensado naquela manhã de 17 de Junho de 1961? Fugiu porque já não aguentava a opressão soviética? Temia que o KGB andasse a investigar as suas relações homossexuais? Sabia que a sua conduta libertina durante a estada francesa seria suficiente para que lhe arruinassem a carreira no regresso à ex-URSS? As teorias para a deserção de Rudolf Nureiev (1938-1993) são quase tantas quanto o número de livros que sobre ele se escrevem - a cada ano, sai pelo menos um. Mas a todas faltava uma peça fundamental. Julie Kavanagh, antiga crítica de dança da revista Spectator, encontrou-a. Ao fim de dez anos de pesquisa sobre a vida do bailarino e coreógrafo, descobriu que as questões políticas pesaram pouco na sua decisão. Nureiev fugiu porque Teja Kremke, bailarino alemão por quem estava apaixonado, o convenceu a isso.Esta é a principal novidade do livro Nureyev: The Life, publicado há semanas em Inglaterra e com edição americana prevista para este mês. "É a biografia definitiva de Nureyev", sentenciou no Guardian o professor universitário Peter Conrad. Antes de sair, o livro inspirou o documentário Nureyev: The Russian Years, de John Bridcut, co-produzido pela BBC. Estreou-se em Agosto na televisão pública dos EUA, a PBS, e passou recentemente na BBC 2, sob o título Nureyev: From Russia With Love.
O bailarino que, segundo o destacado crítico de dança John Percival, "mais influenciou a história, o estilo e a percepção pública do ballet" nunca escreveu ou falou em público sobre a relação com Teja Kremke. Mas Ute Mitreuter, irmã de Teja, e o marido, Konstantin Russu, sabiam e revelaram a história a Julie Kavanagh. Através deles, a autora conseguiu contactar as duas mulheres com quem Teja foi casado e os filhos. Todos confirmaram o caso e apresentaram cartas, fotografias e gravações de vídeo que o comprovam.
Franceses proibidos
Teja saíra de Berlim-Leste, onde tinha nascido, aos 17 anos, no Verão de 1960. A irmã também. Tinham ido estudar Dança Clássica para a Academia Vaganova, ligada ao Ballet Kirov, em Leninegrado (actual São Petersburgo). Nureiev terminara os estudos nessa escola no ano anterior. Tinha agora 21 anos e começava já a tornar-se um mito da dança. No fim do curso, o Ballet Bolshoi tinha-lhe oferecido um contrato como solista. O Kirov também. Ele aceitou a segunda proposta. "Nem mesmo Nijinski [considerado o melhor bailarino de sempre] começou a sua carreira no Ballet Imperial como solista", nota a autora. A princípio, Teja via Nureiev como alguém inalcançável. Numa carta à família, confessou sentir-se "pequeno e insignificante" perante Nureiev e as restantes estrelas do Kirov. Mas como era aluno de Alexander Pushkin, um eminente professor em cuja casa Nureiev vivia desde 1959, foi-se aproximando dele. Tal como acontecia com muitos outros novatos, o jovem alemão ia jantar algumas vezes a casa de Pushkin. Numa dessas ocasiões, Nureiev ofereceu-se para o treinar a ele e à irmã. Em Janeiro de 1961, já namoravam, secretamente.
Apesar da personalidade irascível e dos modos rudes de Nureiev, Teja, descrito como uma pessoa ponderada, conseguiu algum ascendente sobre ele. Tinha levado para a Rússia uma câmara de 8mm e Nureiev pediu-lhe para filmar as suas actuações. "Juntos, viam e discutiam as imagens", escreve a autora. "Teja tinha boa capacidade de observação e era uma das poucas pessoas a quem Rudolf aceitava ouvir correcções à sua técnica." Essas gravações inéditas, e outras que fizeram durante aquele período, integram o documentário da BBC. Unia-os uma "profunda paixão", atesta Chinko Rafique, amigo comum. Foi a ele que Nureiev confessou ter aprendido com Teja "a arte do amor entre homens". Ute só mais tarde se apercebeu da relação. Teja dizia-lhe que ele e Nureiev eram "irmãos de sangue", mas ela não entendia o que isso realmente significava.
Uma noite, relata Ute, o irmão disse a Nureiev que deveria ir viver para o Ocidente. "Lá, vais ser o melhor bailarino do mundo. Se ficares aqui, só serás conhecido pelos russos." Daí em diante, o incitamento tornou-se constante, dizem vários amigos. Teja conhecia bem o mundo não-comunista, das viagens frequentes que tinha feito à Alemanha Ocidental (o muro de Berlim ainda não existia). Gostava de contar as suas experiências. Nureiev ouvia-o com atenção.
A 16 de Maio de 1961, quando chegou a Paris para a sua primeira, e última, digressão internacional com o Kirov, a ideia da deserção talvez ainda não tivesse tomado forma. A fazer fé nos relatos dos bailarinos franceses com quem rapidamente fez amizade, nem uma palavra lhe foi ouvida contra o regime soviético. A única coisa de que se queixava era da "falta de oportunidades" no Kirov. "Nunca disse que queria fugir", afirma Pierre Lacotte. Ainda assim, a urdidura de Teja fazia os seus efeitos. Ele andava fascinado com a vida parisiense. Estava a descobrir a liberdade. Um dia, embora não fosse crente, entrou na Igreja de La Madeleine e rezou: "Faz com que eu fique, sem ter de tomar essa decisão. Faz com que aconteça." Semanas depois, escapou-se.
O convívio com os franceses, estritamente proibido, já tinha posto o KGB de sobreaviso. A companhia continuaria a digressão no Covent Garden, em Londres, mas Nureiev estava impedido de seguir viagem. Devido à sua conduta, tinha de regressar imediatamente à Rússia. Ele achou isso inaceitável. Pouco antes da partida do avião, já no aeroporto de Le Bourget, pediu asilo político à polícia francesa. Estava escoltado por elementos do KGB e contou com a ajuda da amiga recente Claire Motte, que tinha sido noiva de Vincent Malraux, filho do escritor e ministro da Cultura francês André Malraux. Ao saber da notícia, Teja foi das poucas pessoas que não ficaram perturbadas. "Ainda bem", disse, de acordo com Ute. "Ele sabia que isto ia acontecer", assegura a irmã. Muito mais tarde, Nureiev comentaria com uma amiga: "Não podia escolher os meus amigos de acordo com o meu gosto. Era como se alguém me censurasse moralmente. Era muito infeliz na Rússia."
Esconder Barishnikov
A melhor prova do peso que Teja exerceu sobre a decisão de Nureiev, e um bom exemplo do clima em que viviam os artistas na União Soviética, surgiria alguns anos depois. Escreve Julie Kavanagh que o professor Pushkin receava que Teja, ainda aluno da Academia Vaganova, voltasse a ser "uma influência maligna", desta vez para Mikhail Barishnikov, que tomara o lugar de Nureiev e era a nova aposta de Pushkin. Se Teja aparecia durante os ensaios, o professor levava Barishnikov imediatamente para outra sala e aí o mantinha o tempo que fosse preciso até Teja se ter ido embora. Em 1974, Barishnikov também pediu asilo político, ao Canadá.
Teja chegou a escreveu uma carta a Nureiev. "Se quiseres regressar, não o faças agora, porque o ambiente aqui está terrível. De qualquer modo, não acredito que queiras tomar essa estúpida decisão." A vontade de Nureiev era a de viver com Teja em Paris. Insistiu muitas vezes. Mas ele tinha apenas 18 anos e a mãe não o deixou partir. Nunca mais se viram. Teja casou-se duas vezes. Morreu em 1980.

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